LIVRO
A narrativa do cotidiano de um personagem em tempos de pandemia
A história, dividida em capítulos, não segue uma linearidade de tempo que se constrói seguindo a lógica de um relógio, mas se insere acerca de um período imensurável de uma quarentena, durante uma pandemia mundial. As crônicas são narradas na primeira pessoa, mas usam personagens e lembranças do narrador para criar um ambiente de comunicação entre vários mundos em diversos tempos.
Só o que for possível conta com as ilustrações da artista plástica, Fernanda Nóbrega, numa técnica mista de carvão e nanquim.
O conjunto de 12 capítulos será disponibilizado aos leitores de Pressenza ao longo de alguns meses. A cada 15 dias será publicado um capítulo com uma ilustração.*
Na sequência, o Cap II. Boa leitura.
Capitulo II. A pandemia nossa de cada dia
As notícias continuam chegando em todas as plataformas digitais, na TV, no rádio e não são nada animadoras. A morte está avançando sobre todo o território brasileiro. Mais um ministro caiu e o país está à deriva e o capitão dando sinais, cada vez mais claros, de psicopatia em grau máximo, dando seus ares de genocida.
Acabei de escrever dois artigos para o site do Movimento Humanista e, o processo criativo parece começa entrar em pane. Os temas se multiplicam, mas o foco está na pandemia, na morte.
Um vento frio invade o quarto. Me apresso em fechar a persiana para continuar divagando em linhas retas com o pensamento preso nas encruzilhadas que essa pandemia me trouxe.
No computador, uma página em branco, esperando que os dedos recebam algum comando do cérebro e que esses se transformem em palavras, frases, pensamentos, poemas. Mas, a intensidade do movimento dos neurônios é insuficiente para verbalizar qualquer coisa. Na mente reina a pandemia, o vírus, a cloroquina, os berros do palhaço que nos governa, e a falta de perspectiva de se encontrar uma fórmula para fugir de tudo isso para uma outra dimensão. Mas, outra dimensão não existe. O que temos é a realidade de um mundo expiando seus erros e tendo a oportunidade de encontrar um novo caminho para a saúde das pessoas e novos paradigmas para as politicas econômicas e sociais.
Acabo de receber a notificação de que meu artigo sobre política foi publicado no site do movimento humanista. Paro o nada que estava fazendo para dar uma conferida, pois é sempre assim, depois de publicado é que aparecem os erros, que procuramos dezenas de vezes antes de envia-los. Isso parece ser uma saga de todo escritor. As palavras ou expressões usadas inadequadamente parecem que se escondem aos olhos do revisor para depois de publicadas darem o ar da graça…isso, sem falar na pontuação, principalmente, as famigeradas vírgulas.
Leio o artigo publicado no site e, desta vez só encontro um erro, justamente na última palavra do texto – em vez de ideais, ideias. Mas, o erro, não comprometeu o entendimento, pois ideais e ideias caminham bem próximas no universos das significâncias políticas, tema do texto, que fala sobre um rei mal coroado, que não suportava a ideia de prosperar o amor em seu reinado. Um rei medíocre, que acreditava nas armas como forma de controle social e interferia, sobremaneira, nas instancias do estado, que teimavam em investigar suas ações e de seus filhos mal criados e bem versados na prática da ignorância e corrupção.
Enfim, trabalho entregue e publicado. Mas, tudo ainda se encontra paralisado, afinal, estamos em quarentena e nada é seguro. Até os fóruns de discussões e debates nas redes sociais nos imprimem algum ou sérios perigos, pois, não sabemos mais os rumos que esse país está tomando.
Muitas vezes, desconhecemos o pensamento, até de nossos familiares e amigos mais chegados. Onde menos se espera, lá está o ovo do fascismo pronto para eclodir.
Estamos vivendo numa era do anacronismo cientifico, principalmente, da filosofia e ciências sociais. A terra não é mais a mesma e os movimentos de rotação e translação foram jogados na lata de lixo pelos defensores do terra-planismo. E, o que era iluminismo virou negaciosismo. O universo, daqueles que opinam sem conhecimento de causa, ganhou o incremento de robôs e as chamadas fake news assolam o mundo, negando inclusive, a importância das vacinas. A web virou um pandemônio de informações falsas e de opiniões sem conteúdo, carregadas de achismos e rompantes ideológicos, onde até a fé ou crença se perdeu na grande babel eletrônica.
Está cada dia mais difícil manter a sanidade, pois além de tudo, ainda temos que pensar nas boletos vencidos e os que ainda estão por chegar.
O jeito é se refugiar naquele compartimento da mente que ainda não nos foi roubado – os sonhos. É fechar os olhos e deixar a imaginação nos levar para onde é possível.
E o possível nesse instante é a memoria de uma experiencia muito marcante em minha vida – o Santo Daime.
Era junho de 1996, naquela época, estava em meio a um turbilhão de experiencias novas. Tinha acabado de ser contratado como repórter de uma TV no Rio de Janeiro, terminado um relacionamento afetivo de mais de oito anos e, com muitas dúvidas sobre de fato, qual era o meu papel no mundo. Sem contar, as dúvidas em que as novas experiencias com pessoas tão diferentes, que eu conhecia nesse novo circulo de trabalho, tinha jogado a minha fé.
E foi nessa ocasião que um amigo me convidou para participar de um hinário de São João Batista numa tapera em Vargem Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro. Já conhecia o Santo Daime, tendo participado de vários encontros, mas nunca havia tomado o chá de ayauasca, somente participado como observador. Resolvi aceitar o convite e partimos para o hinário.
Era final de tarde de uma sexta-feira, véspera das festividades de São João e chovia muito no Rio de Janeiro. Lembro-me, que ao chegar próximo ao sítio, onde ficava a tapera, o carro que estávamos em cinco pessoas, quase ficou atolado na lama da pequena estrada de terra. Eu estava no banco da frente e o amigo que me convidou era quem dirigia, e, no banco detrás, a esposa dele e mais um casal de amigos. O céu estava completamente coberto de nuvens pretas e os raios faziam recortes assustadores de luzes avermelhadas. Confesso que tive medo.
Ao chegar na entrada do sitio, perguntei ao meu amigo, quem eram as pessoas que estavam paradas debaixo de uma árvore, que ficava a uns cem metros do local onde aconteceria o hinário. Meu amigo me olhou assustado, e disse, que não tinha ninguém embaixo da árvore, o que foi prontamente confirmado pelos outros ocupantes do carro.
Mas, estavam lá, desafiando meus sentidos, um casal e mais quatro jovens, dois deles ainda crianças. Todos usavam uma roupa verde com o mesmo corte e indumentarias.
Mesmo dando todos esses detalhes sobre aquelas pessoas que eu estava vendo, todos os ocupantes do carro disseram que não estavam vendo nada. Meu sinal de alerta se acendeu na hora. A partir daquele momento, de alguma forma, sabia que aquela experiencia seria diferente de todas que tivera até então.
Estacionamos o carro e seguimos à pé para a tapera onde se daria o encontro. A maioria das pessoas que ali estavam demonstravam um semblante manso e um olhar extremamente sereno e compenetrado. Fomos apresentados aos chefes, os que conduziriam o ritual e fomos levados para assinar um termo de responsabilidade. Como não pretendia tomar o chá, fiquei sentado junto à janela da ala esquerda daquela cabana de sapé extremamente bem feita, apesar de rústica.
Meu amigo veio até a mim, segurou as minhas mãos e me disse com voz serena: – não perca a oportunidade que está dada a você. Sua visão pode ter sido um sinal. Você precisa perder o medo. Prometo que fico ao seu lado.
Era a centelha que eu precisava para romper o medo e me abrir para aquela experiencia. Entrei na formação para a cerimônia. Percebi que as pessoas iam formando um octógono, sendo que, homens e mulheres maduros assumiam as posições de norte e sul, jovens, também separados pelo sexo, tomavam as posições leste e oeste e as demais posições iam sendo preenchidas pelas crianças que faziam parte do ritual, também separadas pelo sexo, formando a intercessão entre os grupos maiores.
Me posicionei junto aos homens solteiros e, logo depois foi levado para uma fila atrás do altar onde era servido o chá. Quando chegou minha vez, tomei o pequeno vasilhame com as duas mãos, observei a coloração cor de terra e levantei o copo aos ar, como que pedindo licença ou agradecendo a experiência. Depois, levei à boca e engoli tudo de uma vez. Era um copo pequeno, desses em que se servem café nas repartições públicas. O arrepio foi instantâneo, quando aquela substância de gosto ocre ganhou minha garganta e tomou conta de toda minha boca. Abaixei a cabeça e voltei em silencio para a formação. Logo após, todos os integrantes passarem pela fila e voltarem para o aquele octógono da fé, começaram os cânticos. Eu, até então, estava de olhos fechados e assim permaneci até o terceiro ou quarto cântico ser entoado.
“Essa é a linha do tocum que traz toda lealdade
Castigando os mentirosos aqui dentro dessa verdade
A mãe que vem comigo …me ensinou essa lição
para sempre…para sempre…para sempre amar o irmão” .
Foi nesse instante que meus olhos se abriram e comecei a ter uma percepção diferente daquela formação. Embalado pelos cânticos e pelos passos da dança indígena, que o grupo fazia, fui sendo absorvido e, fui percebendo que as características individuais foram se anexando umas às outras formando uma grande bola de luz. Era impossível identificar as pessoas, apenas luz.
Voltei a fechar e abrir os olhos para ver se o cenário se transformava, mas tudo ia ficando cada vez mais volumoso e luminoso à medida que o hinário ia se desenvolvendo. Percebi também que, no lado de fora da tapera, a tempestade aumentara e os trovões zuniam forte em meus ouvidos. Fui tomado por uma vontade insana de sair da formação, mas não conseguia comandar meus movimentos, apenas cantava e dançava. Desviei meu olhar da formação e vi meu amigo sentado numa cadeira bem próxima a uma das janelas e comecei a me esforçar para chamar a atenção dele. Não sei precisar quanto tempo se passou, até que ele se levantou e veio em minha direção.
Com um leve toque em meus ombros me chamou a atenção e dirigiu sua boca na direção do meu ouvido e me pediu para que eu me concentrasse na força. Olhei para ele e pedi para que me tirasse dali, pois estava me sentindo muito estranho e sem nenhum controle de meus pensamentos. Ele me falou que era impossível, pois eu era uma parte insubstituível daquela energia e se eu saísse poderia atrapalhar o trabalho que estava sendo feito. Insisti e falei que iria sair de qualquer forma. Ele tocou novamente meus ombros e me pediu para esperar, pois iria consultar alguém da casa para saber se isso era possível.
Alguns minutos depois, senti uma mão tocando a minha e me puxando para fora daquela formação. Nem olhei para ver quem era, apenas fui na direção da porta que dava para os fundos da tapera.
Quando senti que meus pés tocaram a grama me soltei da mão de meu condutor e fui andando debaixo da chuva em direção à mata que cercava toda a tapera. Num dado momento fui impedido de prosseguir por causa de uma cerca de arame farpado, que dividia a área da tapera, com o restante do sítio. Toquei aquele arame molhado e desviei meu olhar para o céu. Toda a tempestade sumiu e contemplei o céu mais limpo de toda minha vida. As estrelas, de um brilho intenso, se espalhavam por toda a extensão do meu campo de visão, que devia estar multiplicada em infinitas vezes.
As estrelas formavam várias constelações e todas se comunicavam num grande teorema. Tudo estava matematicamente explicado naquele grande quadro azul petróleo diante de meus olhos. A percepção era tanta, que meus olhos atravessaram as estrelas e alcançaram várias formas diferentes do céu. Muitos universos diante dos meus olhos e em cada um deles um buraco negro era a porta de entrada. Aquela visão me assustou e, abruptamente foi desfocando a visão e trazendo o foco para mais perto – as estrelas, os trópicos, as constelações e fui aos poucos voltando, até que meus olhos se tornaram paralelos e pude enxergar a mata que estava em minha frente. Identifiquei cada folha, ramo e percebi que eles estavam ali para curar as doenças do mundo. Cheguei a perceber o principio ativo de cada uma daquelas plantas e quais as doenças que elas poderiam curar. Essa visão foi demais para mim e explodi em choro compulsivo. Soltava urros que chegaram a doer meus maxilares.
Percebendo o que estava acontecendo, meu condutor me tocou as mãos e disse que já era hora de voltar, pois já havia passado muito tempo e eu precisava da proteção da grande luz do universo.
Assim, fui sendo reconduzido de volta à tapera. Mas, antes de chegar a entrada principal, avistei uma imensa árvore. O seu tronco era tão grosso que precisavam da braçada de pelo menos três homens para poder envolvê-lo. Nesse tronco havia um nó imenso, completamente corroído pela ação do tempo, mostrando que aquela árvore deveria ter pelo menos uns 100 anos. Escapei do enlace do meu condutor e me sentei naquela oca, me colocando em seguida em posição fetal. O cheiro forte de madeira molhada tomou meu corpo de tal forma que me senti parte daquela árvore. O meu condutor se aproximou, segurou minhas mãos e ali ficou me velando por alguns instantes, que eu nunca soube precisar quanto.
O tempo que eu passei dentro daquele tronco foi uma espécie de vácuo em toda essa experiencia. Me lembro de ter entrado, me acomodado e saído, mas, por mais que me esforce não consigo lembrar de absolutamente nada. Segundo meu amigo a árvore, numa simbologia, seria o útero da natureza me preparando e zelando para o meu renascimento dentro do que eles chamam de a Força.
Voltei para a tapera e fui levado pelo meu condutor, que era uma espécie de fiscal, para tomar mais uma dose do chá, que é uma mistura do ayahuasca com a chacrona. Tomei, voltei para a formação e segui durante toda a noite cantando e dançando e parecia que, eu tinha feito aquilo a vida toda, pois sabia todos os hinos e dançava com a desenvoltura de um índio em suas cerimônias.
Já no início da manha, por volta das sete horas, o hinário chegava ao fim depois de doze horas.
A formação se dispersou e as pessoas estavam demonstrando uma felicidade que parecia um sonho. Todos sorriam e se abraçavam. Nesse momento em que me congratulava com meus amigos, senti alguém me tocar nos ombros e quando eu virei para ver quem era, me deparei com os mais limpos e lindos olhos azuis que já havia visto na vida. Era um senhor bem miúdo, de cabelos e barba muito brancas, que me abraçou e começou a chorar. E foi com os olhos cheios de água, que ele disse para mim e meus amigos, que aquela noite tinha sido mágica e que eu proporcionei a ele uma alegria nunca vivida em todos os anos dele dentro do Santo Daime.
Eu o abracei e choramos juntos.
Na despedida, o senhor, que se chamava Antônio cantou para mim a canção que tocava, enquanto eu olhava o universo.
As estrelas já chegaram
Para dizer o nome seu
Sou eu, sou eu, sou eu
Sou eu um filho de deus
As estrelas me levaram
Para correr o mundo inteiro
Pra conhecer esta verdade
Para poder ser verdadeiro
Eu subi serra de espinho(s)
Pisando em pontas agudas
As estrelas me disseram
No mundo se cura tudo
As estrelas me disseram
Ouve muito e fala pouco
Para poder compreender
E conversar com meus caboclos
Os caboclos já chegaram
De braços nus e pés no chão
Eles trazem remédios bons
Para curar os cristãos.
Depois dessa experiência, nunca mais tomei o chá.