LIVRO
Apresentação
Só o que for possível não é um livro de mensagens ou de autoajuda para os tempos de pandemia, mas, uma tentativa de construir uma narrativa, que fuja da simples compreensão do cotidiano de uma pessoa numa quarentena, se defendendo de toda normalidade que lhe foi roubada de uma hora para outra e sem nenhum aviso.
A história, dividida em capítulos, não segue uma linearidade de tempo que se constrói seguindo a lógica de um relógio, mas se insere acerca de um período imensurável de uma quarentena, durante uma pandemia mundial. As crônicas são narradas na primeira pessoa, mas usam personagens e lembranças do narrador para criar um ambiente de comunicação entre vários mundos em diversos tempos. Cada capítulo segue seu próprio curso e não tem compromisso de dar ao leitor uma sequencia lógica de tempo ou de ação, apenas a narrativa importa.
Só o que for possível – não tem a pretensão de defender teses e, muito menos disseminar ideias, apenas deve funcionar como um antídoto que reconecte o leitor a um mundo possível, mesmo diante do caos.
O conjunto de onze capítulos será disponibilizado aos leitores de Pressenza ao longo de alguns meses. A cada 15 dias será publicado um capítulo* com uma ilustração, num total de 11 postagens. Todo o conteúdo do livro pode ser descrito como uma obra de realismo fantástico, como muitas vezes, encontramos nas histórias das crianças, mas não se engane, toda a fantasia está presente nas memórias do autor e, podem sim, ser parte de uma realidade ou, simplesmente, de sonhos.
Nessa obra, a palavra é usada para abraçar, unir, o tempo real com as ilusões construídas na memória no passado ou no futuro do narrador, que funciona como uma pequena embarcação num mar aparentemente calmo da solidão de uma quarentena ou na tormenta interna que ela pode provocar nos seres humanos.
Cada linha ou conjunto delas são minutos, horas, dias, semanas e meses trancafiados num apartamento, onde a companhia principal é o medo da morte ou do futuro que poderá vir depois que a pandemia for debelada. Só o que for possível é uma viagem que se estabelece dentro de um quarto, um apartamento, onde cada compartimento da casa e do homem que a habita é um refugio contra a angustia que a solidão imprime na alma, que se obriga a manter-se viva e atenta a tudo que não se movimenta a sua volta. Pode parecer paradoxo, mas a obra é um exercício para o desapego, onde a personagem principal tenta si ensinar que amar é dar novos significados a vida.
As ilustrações ficam a cargo da publicitária e artista plástica, Fernanda Nóbrega, que recebeu os capítulos para dar vida a narrativa do autor. Para Isso, usou uma técnica mista com nanquim e carvão, criando a partir dos textos, uma imagem de referência à fantasia do autor.
Fica o convite a todos que se interessarem em conhecer essa aventura, que se passa dentro do quarto de um apartamento, em Copacabana, onde a principal ligação com o mundo externo é uma janela lateral, que se conecta com a luz do sol, apenas míseros 15 minutos por dia.
Boa leitura a todos. Espero que gostem.
Guido Mendes
Capítulo I. Jonas e a baleia
Uma fresta na janela e o facho de luz entrando, iluminando um pequeno raio da varanda do apartamento, onde sou prisioneiro nos últimos sessenta dias. Estamos em maio de 2020 e o mundo está em pânico com a ameaça de um vírus mortal. Lá fora, o sol incendeia o planeta se segurando sob uma imensidão azul de um dia de outono.
Tenho pouco tempo. Um tempo de vida que não sei precisar e um tempo para receber do sol as vibrações dos raios que fogem da minha janela à medida que os ponteiros do relógio avançam para o meio dia. São apenas 15 minutos de luz para um dia todo de sombras. A perspectiva não é propriamente a melhor, mas é a única possível.
Tudo está fora de ordem, apesar de estar tudo em seu devido lugar. Apenas a mente caminha sem rumo sobre as informações desencontradas e uma enxurrada de análises pouco referendadas em conhecimento.
O suor vai tomando conta dos poros e a pele, a grande célula do corpo, vai se avermelhando numa febre que logo vai passar. Tudo é inconstante. Todos os gestos ficam sem sentido à medida que o tempo avança na solidão de uma quarentena que não tem protocolos científicos, apenas o medo de uma contaminação em massa e a necessidade de se achatar a curva no sistema de saúde.
A cada minuto mais mortes. Os defuntos, até então, classificados como números numa estatística desumana vão ganhando nomes, sobrenomes e, cada vez mais proximidade com as barreiras que guardam meu corpo ainda sadio.
Pela casa vão se amontoando tarefas que eu nunca fiz por falta de tempo. E, quanto mais tempo em tenho, menos a vontade se apresenta. O paradoxo entre o discurso e ação vai ficando cada vez mais claro e eu tento não pensar.
Na escrivaninha do quarto, o computador empoeirado e a caneta sobre o bloco de notas. Tantas missões, projetos, poemas inacabados e frases soltas em linhas ávidas para receber o conteúdo sem sentido de um homem acuado pelo medo da morte e as dores que a precedem. Tento organizar-me numa rotina produtiva para não enlouquecer: faxina, banho, almoço, leitura, música, relaxamento, televisão, mas nada se concatena. Comer e pensar parecem ser o melhor antídoto contra a necessidade de parecer ou ser produtivo diante das circunstâncias.
Os segundos avançam se transformando em minutos, horas, dias e noites sem dormir. Não há vacina contra o vírus e nem para a angustia que ele provoca nos corpos que ainda não invadiu. É uma saga sem heróis, uma luta constante contra o invisível. Ele está lá fora me afrontando, desafiando minha coragem e, seguindo, avançando, se multiplicando. Está em toda parte, na fechadura da porta que me acena com a liberdade, no elevador que me conduz e no ar das ruas salpicadas de seres humanos que não têm a mesma sorte dos aquartelados em seus apartamentos de luxo.
O gari que caminha sem proteção pelas ruas esvaziando lixeiras abarrotadas de sucatas, restos de alimentos, embalagens, máscaras contaminadas, vidros quebrados e sangue. Tudo ali… o terreno fértil para a propagação da epidemia. Bem diferente do “home office” que mantem vivos os sistemas político e econômico. Mas, é no gari que eu ainda consigo vislumbrar um broto de esperança. A corrosão dos pensamentos nas lideranças políticas e nos controladores dos meios de produção e especulação da vida humana sempre foi e sempre será maior que qualquer ameaça pandêmica. Por ano milhões de seres humanos padecem pela fome, pela poluição, pela falta de saneamento básico, pela falta de um sistema de saúde humanitário, pelas guerras, e, principalmente, pelas anomalias que se tornaram os poderes executivos em várias partes do planeta. Todo sistema politico-financeiro é milimetricamente desenhado para explorar mão de obra barata e ceifá-las quando deixam de ser necessárias.
À tarde, parece que a razão foi passear nas nuvens que começaram a cobrir o céu. Com o corpo apoiado no parapeito da janela do quinto andar é possível contemplar a vizinhança. Dezenas quase centenas de janelas abertas e num silêncio total. Uma cor de penumbra sai de cada apartamento, sendo quase impossível pensar que vida ali existe. Num espasmo de loucura cheguei a pensar que todos já estivessem contaminados e mortos pelo vírus. Chegou a arrepiar a pele. Mas, num gesto brusco sacudi a cabeça para jogar para fora tais pensamentos e mirei o céu. As nuvens cinzas começando a se formar coreografavam um balé diferente. Saias esvoaçantes de fumaça ganhavam diversas formas e iam se aglutinando. Bem perto delas, as gaivotas plainavam com todo garbo e circunstancias, totalmente alheias ao desespero dos moradores daqueles prédios sem vidas.
Em cima da mesa, o relógio começa a ser vencido pelo tempo. As nuvens já cobriram completamente o azul do céu e as gaivotas sumiram para os ninhos. A noite se aproxima. E a medida que a escuridão toma conta do ambiente, luzes azuis piscantes começam a fugir das janelas sombrias, que antes não demonstravam nenhuma possibilidade de vida.
É o alimento se revelando em forma de frames e informações distorcidas da realidade. Análises monocórdicas e dicotômicas povoam os lares e as mentes lacônicas de seus habitantes.
A penumbra avança sem a magia de estrelas ou da lua. É noite de outono e uma leve brisa sinaliza mudança no tempo. Copacabana tem essa magia no outono quando se está na beira do mar. O bairro exprimido na fina faixa de terra, com o silencio dos carros, proibidos pela quarentena, nos permite, dependendo da localização, ouvir o bater das ondas bem ao longe, nos aquecendo o peito de esperança de que dias melhores nasçam e, que tudo volte ao normal.
Nesse devaneio respiro profundamente e mergulho na fantasia de uma viagem no tempo, bem longe da quarentena, dos vírus, mas aqui mesmo, em Copacabana. Final de tarde de domingo, em pleno outono, minha estação do ano preferida. Deitado na areia branca ouvindo as ondas do mar cantar uma das mais belas canções que a natureza é capaz de nos brindar. Ao longe, à direita, vejo o Forte com sua imponência imprimindo um ar nada republicano à paisagem e, do outro, o costão do Pão de Açúcar. Estou relativamente na mesma distancia dos dois pontos. Com o corpo jogado na areia, a pele quente sentindo a brisa, levanto-me e decido caminhar até o Caminho dos Pescadores . Sigo pela areia bem junto ao mar sentindo o bater das ondas nas pernas, mergulhando e ouvindo alguns gritos de crianças felizes que ainda brincam na areia com seus pais. Todos os sons fazem musica em meus ouvidos.
Paro e miro o horizonte. O sol caindo no mar transformando a imensidão azul num facho dourado acobreado. Pisco os olhos e pontos prateados me envolvem o corpo num quase transplante de energia da mãe natureza para seu filho.
Caminho alguns passos e sento na areia branca para aproveitar o momento. Fico ali, calado, ouvindo as ondas, o vento e as vozes finas das crianças. Uma delas se aproxima e se senta ao meu lado. Me olha com serenidade e profundidade e começa a desenhar formas na areia molhada. Seus desenhos são bem primitivos, mas é possível identificar formas e duas delas se destacam para mim. A figura de um homem e de um peixe.
Por um instante concentrei toda minha atenção naquele menino e foi quando ele me disse apontando para os desenhos na areia.
– Esse homem é você, seu nome é Jonas – apontando para a figura humana mal traçada na areia.
– Essa baleia é a vida que está te engolindo. E isso é alheio a sua vontade. É a sua sina, o destino.
Senti um calafrio ao ouvir voz daquela criança que mostrou firmeza e muita sobriedade no que me dizia.
Segundos depois, uma mulher com um lenço branco na cabeça se aproxima, pega o menino pelo braço e me pede desculpas pelo o que ela classificou como abuso da criança. Pegou-o e saiu com um sorriso no rosto. O menino ao se distanciar virou para mim e se despediu:
– Muito prazer seu Jonas. Se cuida.