CINEMA

 

 

Natural de Niterói, Eduardo Nunes estudou cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF) e faz parte da geração de cineastas que hoje se encontram na casa dos 50 anos (Karim Aïnouz, Kléber Mendonça Filho, Marcelo Gomes, José Padilha etc.). Porém, seus filmes sempre se diferenciaram dos trabalhos dos seus contemporâneos. Os curtas-metragens que dirigiu transitam na fronteira do experimental, com um formalismo acurado que denuncia sua busca por uma linguagem própria (os curtas podem ser assistidos no site da 3tabelafilmes). Essas mesmas características foram incorporadas pelos seus longas-metragens (Sudoeste e Unicórnio), fazendo com que o seu cinema se consolide como um ponto fora da curva frente à produção cinematográfica brasileira atual, estabelecida a partir do Cinema da Retomada.

O cinema de Eduardo Nunes rompe com o realismo predominante na produção cinematográfica brasileira nos últimos anos. Produção esta que, apesar de ser possível identificarmos diferenças com relação ao realismo do Cinema Novo como foi apontado no texto anterior (Cinema Brasileiro Contemporâneo: o Cinema da Retomada), ainda se mantém atrelada a uma estrutura simbólica comum que se expressa na abordagem de temáticas sociais, acompanhada de uma narrativa e de um desenho de som naturalistas.

Os filmes de Eduardo Nunes, para além de uma função representativa e constitutiva da realidade social, objetivam refletir acerca da relação entre imagem, tempo e memória, desconstruindo o binômio realismo-naturalismo, seja na sua vertente política, seja enquanto “espetáculo”. Em seus filmes vivenciamos um processo de emancipação da instância temporal, exatamente na medida em que o tempo se torna independente do movimento, estando o mesmo liberado da tirania do presente.

Sudoeste (2011) se passa numa pequena cidade litorânea anônima durante um único dia.  Clarice (Simone Spoladore), a protagonista, vê sua vida se desenrolar de maneira circular, da morte ao nascimento, e depois à velhice mais uma vez. Ela observa as pessoas ao seu redor, que não envelhecem, e que não entendem sua existência.

Unicórnio (2017) é baseado em dois textos de Hilda Hilst – “Unicórnio” e “Matamoros”. Quando o pai (Zécarlos Machado) da personagem central, Maria (Bárbara Luz), deixa sua casa, a menina e a mãe (Patrícia Pilar) voltam ao cotidiano de cuidar da casa e da plantação, enquanto esperam que ele regresse. Porém, esse cotidiano é alterado quando as duas cruzam com um criador de cabras (Lee Taylor) que vive na região.

Apesar de Sudoeste e Unicórnio trabalharem os mesmos elementos de linguagem, quais sejam, um formato de tela pouco usual, mais alongado horizontalmente (janela 1:3,66); predominância de planos-sequência; longos e lentos movimentos de câmera; e um trabalho acuradíssimo de desenho de som, suas propostas estéticas são completamente diferentes entre si, e não apenas pelo fato da narrativa em Sudoeste ser basicamente linear, enquanto Unicórnio é narrado através de elipses. Sudoeste dialoga abertamente com o cinema do diretor russo Andrei Tarkovsky, enquanto Unicórnio flerta com o chamado cinema de fluxo. Duas abordagens sobre o tempo a partir de dois olhares totalmente distintos.

Sudoeste (2011)

Ao contrário do que um olhar superficial possa sugerir, apesar dos planos longos com movimentos de câmera quase imperceptíveis, o tempo em Sudoeste não se dilata, não se trata de um tempo expandido, mas o inverso, trata-se de um tempo comprimido, adensado, compactado. O tempo é a soma do que passou e do que está prestes a passar. Imagem-cristal por excelência, presente e passado ao mesmo tempo, isto é, o presente se transforma em passado no mesmo instante em que se atualiza enquanto presente. A duração em Sudoeste é uma imposição do tempo no âmago de cada plano, matéria compacta esculpida. Acúmulo e entalhe (“esculpir o tempo”). O tempo não flui na natureza, mas é a natureza que tem que ser inventada no tempo. Talvez a imagem que melhor expresse essa potência do tempo em Sudoeste seja o lento travelling ao longo da parede maculada pela erosão. Os planos-sequência têm um ritmo próprio e, se por um lado apontam para a matéria densa desse tempo espesso, estriado, por outro lado eles nunca se completam, com o corte acontecendo sempre antes do plano se esgotar. Sudoeste nos oferece uma imagem do tempo.

Unicórnio, por sua vez, se apoia em dois focos distintos. Por um lado temos a personagem principal, Maria, e sua mãe se movendo num cenário campestre magistralmente fotografado por Mauro Pinheiro Jr., com um trabalho de cor e distorções que remetem a uma pintura neoimpressionista. Por outro, encontramos Maria e seu pai num ambiente totalmente austero, um quarto de azulejos todo branco, que alude a uma instituição psiquiátrica ou, quem sabe, ao purgatório. Nesse segundo ambiente o tempo e a memória têm um tratamento subjetivo, quase psicanalítico. Contudo, para efeito desse texto, o que vai nos interessar mais é o ritmo imposto ao cenário campestre. Apesar da semelhança de certos recursos de linguagem com Sudoeste, em Unicórnio a concepção temporal é o oposto. A duração não é uma imposição do tempo no interior de cada plano, mas antes uma catarse, emanação suave que contém o tempo em si. A superfície do tempo é límpida e lisa, e não estriada como em Sudoeste. Os planos-sequência, também habitados por lentos travellings como em Sudoeste, apresentam um ritmo totalmente diferente. Em Unicórnio os planos são completamente exauridos, absorvidos em sua plenitude. Aqui sim podemos falar que o tempo se dilata, se expande. O espectador de Unicórnio é convidado às fronteiras da percepção, a uma concentração máxima das capacidades ótica e de escuta a partir de uma fruição sensorial que cria um ambiente de imersão. Unicórnio é uma experiência sensória.

Alguns críticos consideram o cinema de Eduardo Nunes purista ou excessivamente formalista, mas acreditamos que não é esta a questão que se impõe. O apuro da forma e o desenvolvimento da linguagem fazem parte da essência da arte cinematográfica, é através do refinamento desses elementos que o cinema transcende o óbvio, trazendo à luz nuances despercebidos, mundos invisíveis, desafiando a percepção e o pensamento. Sudoeste e Unicórnio não se limitam a contar histórias, suas imagens não nos capturam pelo excesso, nem pelo rigor, mas pelo extraordinário.

No atual cenário da produção nacional, o cinema de Eduardo Nunes desponta como único, seja através da forma ou do conteúdo. Seus filmes se impõem como um rico material para a discussão dos rumos da cinematografia brasileira, presa a certas práticas e valores estéticos a despeito da diversidade que o aumento do número de cineastas e de filmes produzidos proporcionou. Pensar, experimentar, radicalizar a linguagem cinematográfica tem sido uma tarefa relegada ao segundo plano na cinematografia brasileira atual, e esse é um território que os filmes de Eduardo Nunes habitam com extrema competência.

Unicórnio (2017)