PorConselho Nacional Cimi
Estudo da Fundação Oswaldo Cruz, divulgado essa semana, mostra que 48% de mortes por covid-19 em pacientes internados estão entre os indígenas. Neste quesito, é a maior taxa de mortalidade do país – superando as populações parda (40%), negra (36%), amarela (34%) e branca (28%). Vivemos um contexto absolutamente sombrio, sobretudo com a flexibilização da quarentena, e a pandemia pode gerar no Brasil uma situação de genocídio pela completa falta de um plano de ação para enfrentar uma situação cada vez mais dramática.
Conforme o mais recente levantamento da Articulação dos Povos Indígena do Brasil (Apib), 178 indígenas morreram em decorrência da covid-19. São 1.809 contaminados distribuídos em 78 povos. As organizações indígenas têm se estruturado para contabilizar suas vítimas. São histórias e trajetórias de luta que perderam a batalha para o vírus, mas seguirão sendo contadas para que jamais sejam esquecidas. Já os dados do governo se mostram imprecisos em face de uma metodologia aleatória, desconsiderando indígenas em contexto urbano e consolidando centenas de subnotificações.
Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), além de cobrar das autoridades públicas por suas responsabilidades imediatas e tomar medidas práticas e urgentes, como a distribuição de cestas básicas e insumos sanitários, que o Cimi e outras organizações inclusive têm feito em um esforço solidário, se trata de um quadro que evolui para uma denúncia internacional à Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o governo Bolsonaro de caso flagrante de genocídio, haja vista a forma deliberadamente desorganizada e distraída com que o Poder Executivo trata a pandemia – inclusive barrando recursos.
Os povos indígenas têm demonstrado um grande empenho em manter o isolamento social e praticar autoproteção. Do ponto de vista da assistência, porém, há uma lacuna enorme. O Ministério da Saúde não conseguiu até agora desenvolver um planejamento para combater a pandemia entre os povos indígenas. O movimento indígena indicou caminhos para se estabelecer um plano, incluindo a construção de hospitais de campanha e testagem generalizada, mas nada disso foi levado adiante.
Quando decidiu tomar iniciativas pontuais, se deparou ainda com a completa falta de estrutura: atendimento médico irregular e afastado das aldeias, populações indígenas urbanas lançadas ao colapso do sistema de saúde, falta de saneamento básico nas aldeias, incluindo acesso à água potável, falta de materiais de proteção nos Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (Dsei’s) e condições frágeis de subsistência, sobretudo em regiões com terras não demarcadas. A fome passou a ser um problema permanente.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), por sua vez, seleciona os indígenas que devem ser assistidos pelo subsistema, não atendendo os indígenas em contexto urbano ou os contabilizando entre os infectados e mortos. Na grande São Paulo, levantamento da equipe do Cimi Regional Sul indica 279 casos entre os indígenas, com três óbitos. Soma-se a isso a baixíssima quantidade de testes entre os indígenas, levando muitos a manifestar os sintomas da doença sem a sua confirmação ou se mantendo assintomáticos alheios à presença da doença no organismo.
Por omissão ou racismo institucional, o governo Bolsonaro tenta jogar jogar vidas humanas atingidas pela pandemia para debaixo do tapete com as subnotificações a alta taxa de mortalidade entre os indígenas, o risco iminente de genocídio e não permite a obtenção de um quadro completo e detalhado para que se tome medidas sanitárias adequadas a fim de evitar o genocídio de aldeias e povos. O caso é flagrante e choca a comunidade internacional.
Ocorre que o governo Bolsonaro não vem demonstrando maiores preocupações. A Fundação Nacional do Índio (Funai) se mantém sem planejamento, tomou posição contrária às barreiras sanitárias feitas pelos povos e fez gastos pífios das verbas emergenciais destinadas ao combate à covid-19 nas aldeias, por volta de 33%. Pouco ou nada também tem feito a respeito das invasões às Terras Indígenas, sobretudo de garimpeiros.
Na Terra Indígena Yanomami, estimativas do Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana dão conta de que 20 mil garimpeiros seguem operando lavras ilegais no interior do território, sendo hoje os principais vetores da doença entre a população indígena que ainda conta com grupos em situação de isolamento voluntário e secularmente alvo de epidemias levadas de forma deliberada por invasores. Um abaixo-assinado circula pedindo a imediata retirada dos garimpeiros.
Enquanto os indígenas lutam pelas suas vidas sem o apoio governamental e tentam afastar a doença das aldeias, ficando nelas e erguendo barreiras sanitárias, os invasores seguem motivados e presentes nas Terras Indígenas. No Congresso Nacional, seus correlatos que compõem a bancada ruralista tentaram aprovar a MP da Grilagem, que agora se converteu em PL da Grilagem. Tudo em plena pandemia. A incidência religiosa de grupos evangélicos nas Terras Indígenas também é motivo de preocupação, tanto que a Justiça Federal proibiu a entrada destes indivíduos na Terra Indígena Vale do Javari (AM). Em plena pandemia.
Há povos com baixos índices de incidência do vírus e em outros com contaminação generalizada, caso dos Kokama, no Amazonas, região com a maior contabilidade de mortos entre indígenas no país. Os indígenas sequer conseguiam enterrar seus mortos conforme as tradições em Manaus e entorno. Entre os 178 mortos (Apib), mais de 40 vítimas fatais estão entre os Kokama. Em outras regiões, como no Mato Grosso do Sul, a covid-19 chegou à Reserva Indígena de Dourados: são mais de 18 mil indígenas Guarani Kaiowá e Terena vivendo em 3.475 hectares de área. Conforme o Boletim Epidemiológico da Sesai de 30 de maio de 2020, foram confirmados 74 casos de covid-19 no local, aumento de 7.400% em apenas 17 dias. A Terra Indígena Chapecozinho, do povo Kaingang, está em situação semelhante à Reserva de Dourados e saltou, em poucos dias, para 52 infectados.
O Estado se organizou para atender a primeira onda de contaminados, os ricos, garantindo o isolamento social e a urgência de ações. Houve um planejamento minimamente adequado, sobretudo pelos governos estaduais. Mesmo em isolamento, os milionários não perderam seus negócios. Donos de frigoríficos, caso da JBS, seguiram com suas fábricas em funcionamento e com dezenas de funcionários se contaminando, entre eles os indígenas. No Rio Grande do Sul, casos de indígenas Kaingang contaminados se aceleram em função dos trabalhos em unidades frigoríficas. O governo federal decidiu escolher quem salvar e quem assistir.
Agora chegou o momento em que a flexibilização da quarentena começa a ocorrer em diversos estados. Nos hospitais, a faixa mais pobre da população segue sofrendo com a precariedade do sistema público de saúde, que ainda assim tem sido a base fundamental para que uma tragédia ainda maior não evolua. Para o governo cumprir suas responsabilidades, os tribunais vêm sendo acionados. O Ministério Público Federal (MPF) no Mato Grosso do Sul ingressou com ação na Justiça Federal exigindo que a União adquira e distribua equipamentos de proteção individual (EPIs) ao Dsei do estado.
É urgente que o Ministério da Saúde e a Funai garantam o abastecimento de EPI’s aos Dsei’s, que garantam a chegada de cestas básicas nas aldeias e use os recursos emergenciais para atender as comunidades. Muitas não podem escoar suas produções de agricultura. A diferenciação entre indígenas “aldeiados” e “urbanos” segue sendo uma forma de gerar subnotificação e mascarar a realidade da pandemia, tornando-a ainda mais mortífera. Situações como a de Manaus e entorno exigem, por exemplo, hospital de campanha específico para os indígenas.
Em plena pandemia, resta ao governo Bolsonaro agir. Sem muitas expectativas de que isso ocorra, não restará saída ao conjunto das forças indígenas e indigenistas a não ser cobrar na Justiça por ações, como já vem acontecendo, e responsabilizações em sistemas internacionais pelo genocídio que está em curso.