CULTURAS

 

Em maio celebra-se o aniversário da abolição da escravatura no Brasil – diga-se de passagem, abolição por decreto e que deixou milhares de libertos à própria sorte –. Que melhor tributo à enorme contribuição que a comunidade afrodescendente deu ao Brasil, senão dar voz e entrevistar o coordenador da comunidade Cultural Quilombaque, Cleiton Ferreira, de São Paulo.

Quilombaque representa – como pudemos experimentar- um símbolo de resistência política e cultural não violenta, de firmeza permanente, de busca e abertura de futuro e emancipação do povo do qual forma parte, através da arte e reinvidacação da própria cultura.

Para nós , povo pobre, negro e periférico, voltar à tal “normalidade” é voltar ao que nós consideramos um genocídio – afirma Cleiton Ferreira.

 

– Vocês são uma referência em São Paulo. Como, quando, por que e para que nasceu a Comunidade Cultural Quilombaque?

A Comunidade Cultural Quilombaque, uma organização sem fins lucrativos que surgiu em 2005, a partir da iniciativa de um grupo de jovens, moradores de Perus, bairro periférico situado na zona norte de São Paulo e que concentra os piores índices socioeconômicos e culturais, onde as maiores vítimas são os jovens. O envolvimento com a arte – forte característica presente no grupo – se revelou uma alternativa de enfrentamento a situação, proposta na qual rapidamente centenas de outros jovens aderiram agregando múltiplas formas de expressões artísticas e manifestações culturais caracterizando e legitimando a missão da organização, fomentando uma rede cultural e uma luta em prol Centro cultural do trabalhador, a Fábrica de Cimento, Universidade Livre e Colaborativa e na elaboração do TICP – Território de Interesse a Cultura e Paisagem.

O ideal da Quilombaque pode ser resumido da seguinte forma: “Promover a produção e a difusão, proporcionando aos moradores, principalmente os jovens, a experimentação, fruição e expressão das diversas e diferentes formas de manifestação artístico-culturais e empoderar o desenvolvimento social, educacional, ambiental e econômico local sustentável”.

Jongo do Coreto_14 anos Quilombaque_Foto Tally Campos-

Jongo do Coreto. 14 anos Quilombaque FOTO Tally Campos

– Como vocês trabalham com o bairro onde a comunidade está localizada? Que papel vocês desempenham?

– A Quilombaque trabalha promovendo a produção e a difusão da arte e cultura, proporcionando aos moradores da região oportunidades culturais e de lazer, para que eles próprios consigam descobrir perspectivas empreendedoras e emancipatórias no lugar onde vivem.

Visando a luta e as ações de cada coletivo, grupo, serviços e instituições, a Comunidade Quilombaque, em parceria com os movimentos do bairro, tem como parte estratégica de seus objetivos a constituição e consolidação do Território de Interesse da Cultura e Paisagem , um instrumento de planejamento, gestão e desenvolvimento de territórios mediados pela arte, cultura, educação e meio ambiente, ou seja, áreas que concentram grande número de espaços, atividades e/ou instituições culturais, bem como elementos urbanos materiais, imateriais e de paisagem significativos para a memória e a identidade da cidade, formando polos singulares de atratividade social, cultural e turística de interesse para a cidadania cultural.

trilha da memória Fabrica de Cimento foto Karen Siqueira

Trilha da memória Fabrica de Cimento FOTO Karen Siqueira

Uma rede cultural de articulação no âmbito municipal e a desapropriação da Fábrica de Cimento Perus e sua destinação para uso público, preservando a memória e o patrimônio com a finalidade de desenvolver conhecimentos através da Universidade Livre Colaborativa, aliados a arte e cultura, bem como geração de trabalho e renda impactando e reorientando a economia local e regional, afirmando e fomentando uma outra matriz de desenvolvimento, inclusivo e em desenvolvimento sustentável local.

Considerando o grande patrimônio histórico-cultural, no território de Perus e região, houve ainda a necessidade de criar um mecanismo em que fosse possível dar forma, articular e organizar de maneira dinâmica e sustentável as lutas locais, para que essa memória fosse acessível à comunidade e a população em geral, preservando, desenvolvendo e contrapondo os danos proporcionados pelas especulações imobiliárias e urbanas.

Com isso desdobrou-se o conceito do TICP criando um museu territorial utilizando dos conceitos de Mário Chagas, museólogo, especialista em museus sociais e comunitários, nomeado de Museu Territorial de Interesse da Cultura e da Paisagem Tekoa Jopo’í, nome no idioma guarani que significa Tekoa – território e Jopo’í lógica econômica dos povos guaranis: “Quanto mais você doa mais prestígio você tem”.

O museu propõe diálogos, conecta movimentos sociais, resgata a memória da região, e divulga as lutas que acontecem no território através de mecanismos vivos de ações coletivas e incentiva a sustentabilidade local. Foram mapeados lugares de interesse da história, do afeto, do ambiente, das lutas sociais abarcados no território Perus e região. Criou-se então os caminhos e narrativas em forma de trilhas que possibilitam diferentes percursos e olhares educativos e culturais por meio de seus atrativos e dinâmicas.

Trilha da memória Fabrica de Cimento. ARCHIVO Quilombaque

Trilha da memória Fabrica de Cimento. ARCHIVO Quilombaque

Consolidando as demandas turísticas gerada pelo Museu Territorial Tekoa Jopo’í a Comunidade Cultural Quilombaque criou a Agência Queixada – Desenvolvimento Eco Cultural Turístico nome dado em homenagem ao movimento Queixada liderado pelos trabalhadores da fábrica de cimento que realizaram a maior greve do Brasil (1962-1969) amparados pela filosofia da não violência.

O objetivo da Agência Queixada é organizar e realiza a difusão do patrimônio cultural através das Trilhas de Aprendizagem, hospedagem comunitária, formação de guias locais e desenvolvimento de ações que integram a comunidade a fim de garantir a sustentabilidade do território, e que os moradores do Território consigam se organizar de tal forma que os trabalhos desenvolvidos se tornem auto-sustentáveis, criando possibilidades de morar e trabalhar no próprio bairro.

Estas são as potencias e possibilidades que articuladas e integradas de modo sistêmico acreditamos prover as condições necessárias para superar os graves indicadores que haviam e persistem, apesar de ligeira elevação nas faixas que compõem a pobreza, no aprofundamento das desigualdades na faixa mais vulnerável.

– Qual é historicamente o papel dos quilombos? (Breve histórico)

No Brasil Colonial, os quilombos eram locais de refúgio dos escravos fugitivos. A origem em comum dos remanescentes de quilombos é a ancestralidade africana de negros escravizados que fugiram da crueldade da escravidão e refugiaram-se nas matas. Com o passar do tempo, vários desses fugitivos aglomeravam-se em determinados locais, formando essas comunidades. Mais adiante, brancos, índios e mestiços também passaram a habitar os quilombos, somando, porém, menor número da população.

Durante sua trajetória, o quilombo serve de símbolo que abrange conotações de resistência étnica e política. A capacidade de organização do grupo, talvez seja uma das principais características, que particularizam tanto o quilombo colonial quanto o quilombo contemporâneo.

A relevância do conhecimento sobre a História do Negro no Brasil e do continente Africano deve ser entendida como parte essencial na construção da identidade da população brasileira, em especial dos afrodescendentes, através do qual, retoma a história de uma dívida irreparável, daqueles que contribuíram, em uma imensa escala, da produção do enriquecimento nacional e no multiculturalismo que caracteriza e personaliza os brasileiros.

3 semana de direitos humanos- FOTO Munique Guimarães

Falar da complexidade historiográfica do negro no Brasil é um trabalho de empreender uma viagem de volta as raízes culturais, nas quais, que em sua maioria, desconhece sua história e o complexo cultural Africano, essa desinformação produz sentimentos de desagregação dos afro-brasileiros e aumenta um processo de negação na sua origem em relação a história desapropriada do continente Africano.

Proporcionado através da arte, a criação de espaços de reflexão crítica se constitui como importantes instrumentos para a transformação do status qüo dominante na medida em que os sujeitos envolvidos, gradativamente, vão se reconhecendo enquanto agentes sócio-históricos responsáveis na criação e reconstrução do mundo e das suas vidas a partir da construção de uma linguagem de resistência.

Foto ARCHIVO Quilombaque

Foto ARCHIVO Quilombaque

– Sua luta sempre foi não violenta…Como você chegou a esta escolha?

O resgate da memória, como alimento essencial para catapultar nosso futuro, buscando e reconectando-nos com as muitas histórias de lutas por aqui travadas, fundamentalmente a dos Queixadas, trabalhadores em pedreiras e na primeira fábrica de cimento do Brasil – trabalho braçal- que ousaram sonhar e implementar um projeto de sociedade regido pelos princípios da Não Violência, de Gandhi e Martin Luther King, traduzido por aqui em Firmeza Permanente.

A expressão “Firmeza Permanente” regem as práticas de uma ação política direta, constante e pacífica na luta por justiça e garantia de direitos sociais. Foi o que os fez protagonizar uma greve de 7 anos por melhores condições de trabalho na Fábrica de Cimento Perus, na época principal produtor de cimento para o desenvolvimento urbano e perpassou pelo regime militar.

A Comunidade teve o reconhecimento proferido pelo Sindicato dos Trabalhadores Queixadas, como os “Novos Queixadas” e tem como um dos objetivos junto ao movimento de Reapropriação a Desapropriação e Destinação para uso e fins público da antiga Fábrica de Cimento.

Um bairro que é uma fábrica, uma fábrica que é um bairro. Por décadas se viveu por aqui, o que hoje é uma busca moderna em função da busca por um planeta sustentável, pelos fundamentos básicos da qualidade de vida: no mesmo local morar, trabalhar e sonhar.

Fala-se em voltar à “normalidade”, você acha que isso é positivo?

Infelizmente falar em normalidade é difícil pois a democracia nunca chegou à periferia. A periferia foi condenada a fome e a miséria, desemprego em alta, julgada como o lugar do descaso, do abandono e da violência vendida por instituições e as mídias perversas, produzindo até os dias atuais, desinformação no sentimento de exclusão dessa população, em especial da população negra que ainda hoje é maioria nesses territórios, dessa forma constitui-se uma outra cidade fora da existente no centro.

Esses territórios apresentam diferenciais na capacidade de produção em momentos difíceis. As lutas dos movimentos sociais que fizeram frentes para garantia de direitos coletivos deixaram uma herança muito forte de unificação e assumida pelos jovens periféricos que, neste contexto, traz à tona a subjetividade do sujeito periférico.

Herdeiros de uma cidade construída através de muitos esforços dos seu pais e avós não garantiram os direitos a essa própria cidade. Porém, as dificuldades de sobreviverem são tantas que é possível identificar uma nova arte produzida nas periferias, a Sevirologia. E esta arte faz tantas pessoas enfrentar e vencer essas mazelas.

Talvez em tempos como estes, esta arte tenha chamado a atenção da população para entender o tamanho da desigualdade em que os mais pobres vivem. E quando isso passar, a tal normalidade que para nós população pobre, pretos e periférica chamamos de genocídio, volte, pois são poucos que se importam com a população menos favorecida.