CRÔNICA

 

 

Discretamente os primeiros raios de luz penetram na maloca adormecida. Silenciosamente os caçadores, com arco, duas ou três flechas e faca, saem encontro ao mato a às fartas caças. Em tom baixo começam as conversas, para não incomodar quem dorme ainda. Um homem, devagarzinho e com cuidado, varre o chão, enquanto a mulher esquenta a comida que sobrou da janta. Alguém come. Alguém docemente na rede se balança.

Uma mulher, sentada no chão, rala a mandioca já descascada e lavada. A vizinha, segurando o tipiti entre as cochas, espreme massa ralada. Outra ainda, sentada na rede, abana o fogo e cozinha beiju em cima duma chapa de metal. Umas mulheres saem para ir recolher algo na roça: o filho menor no colo; outro filhinho sentado no paneiro que carregam nas costas, segurando-o com uma alça de envira passada na cabeça; os filhos maiores atrás delas, um atrás do outro, enfileirados.

Uns solteiros e jovens homens resolvem se cortar os cabelos. Pacientemente, um deles corta os cabelos de todos, entre piadas e risadas alegres. Os solteiros se reúnem em seguida no local onde uns deles estão morando e, sentados ou balançando nas redes, se pintam, se penteiam, se espelham, lançando de vez enquanto uma exclamação de alegria, amavelmente conversando entre si.

De repente o grito de alguém alerta o grupo contra o “perigo”: “Um beija-flor entrou na maloca!”. É um verdadeiro grito de guerra: homens, mulheres e crianças se armam de paus, vassouras, arcos e flechas sem pontas. Na animação crescente, o coitado espantado perseguem e, inutilmente, tentam afugentar. A guerra dura vinte minutos. Quando enfim o beija-flor alcança uma das portas da maloca e se manda, os guerreiros alcançam as redes e, suados, mortos de cansaço, sem fôlego, imploram o justo descanso.

Uma mulher, deitada na rede de barriga pra baixo, esfregando-as contra uma pedra encaixada no chão, amolda conchas com as quais enfeitará a tanga própria e as das filhinhas. Um homem volta da roça com folhas de curauá. Segurando uma extremidade a um pau, com puxadas seguras e rápidas as desfia. Coloca depois as fibras perto da fogueira, no alto, para secar. A mais velha do grupo conversa com o macaquinho de estimação, enquanto amarra para ele uma banana no pau onde o bichinho anda e se balança o dia inteiro.

Um barulho que vem de longe anuncia que a chuva está chegando. Ela irrompe no pátio central da maloca pela grande abertura do teto.   É a ocasião para os meninos fazerem o jogo mais animado e divertido: se rolam no chão e emergem barrentos, correm em baixo da chuva, que rapidamente os limpa, e de novo se jogam no lodo, felizes, contentes, rindo, cantando. Tem mulher que fia algodão; tem outra que, com cipó-titica e mãos ágeis, confecciona um cesto que usará como prato, para depósito de comida.

Alguém está voltando da coleta no mato e da caça. Gritos de alegria acolhem o pessoal e suas cargas. Vozes murmuram: “É anta!”. “É bacaba!”. “É mel!”. As mulheres que querem comer anta e as parentes dos que querem comê-la, sentam perto do local onde a carne está sendo espedaçada para, cada uma delas, ter direito a um pedaço. Quem recolheu fruta o mel, prepara várias porções e as distribui entre parentes e hospedes. Quando já o dia está para acabar, um grupo de mulheres vai até a roça para recolher lenha. Voltam carregadas até o incrível. Jogado no chão o pesadíssimo paneiro, alimentam as fogueiras ou as acendem indo buscar um tição da fogueira mais próxima.

Quando já é escuro, todo mundo deitado, os fogos acesos, alguém ainda comendo, começam as conversas: comentando os fatos do dia, planejando o dia de amanhã, rindo de tuto o que de engraçado se deu ou se falou. Um fala, o outro escuta, o outro intervém, a mulher sugerindo ao marido o que deve dizer: horas de ternura e descontração.

Quando a conversa morre e o sono começa a chegar, deixando assim aos outros a liberdade de escutar ou não, um dos anciões faz um longo discurso: dá dicas, sugestões e informações; ele transmite assim, para os mais novos, seus conhecimentos, sua sabedoria, sua filosofia, que já foram dos antepassados.

Quando tudo é silêncio, quando olho para a grande abertura do teto e estrelas brilhantes enxergo, só eu branca, no meio dos pagãos amigos vermelhos, longe dos que falam de Deus, posso até ouvir a voz de Deus.