Ano 1, dia 26

Continuando a pensar em alternativas para lidar com a situação que estamos a viver, não se trata apenas de encontrar forma de voltar à “normalidade”, mas sim de acabar com a suspensão ou restrição dos direitos fundamentais e de reatar a atividade social, cultural e económica, de forma inovadora e humanizadora.

Com efeito, para que serve voltar à “normalidade”:

  • se a mesma se traduzir na progressiva degradação dos serviços públicos essenciais, nomeadamente do sistema de saúde e de educação, por falta de investimento, hipotecando o nosso bem-estar e progresso?
  • se vier a resultar no aprofundamento das desigualdades sociais que já se agravavam antes da pandemia?
  • se o custo da habitação nas grandes cidades se tornar proibitivo para o comum dos cidadãos, empurrando-os para periferias cada vez mais afastadas e deslocações pendulares mais penosas?
  • se os imigrantes regressarem a situações de clandestinidade e exploração laboral?
  • se os refugiados continuarem em campos de concentração sem condições decentes e sem perspetivas de futuro?
  • se isso implicar o reacendimento dos conflitos armados no mundo?
  • se a deterioração do meio ambiente agudizar a situação de emergência climática?
  • se muitos responsáveis políticos voltarem a colocar os seus interesses pessoais ou grupais acima do interesse público e do bem comum?

Isso equivaleria a passar pela tragédia da pandemia e não aprender nada.

Este é um tempo incomum que pede respostas excecionais.

Por que não aproveitar para pensar fora do horizonte conhecido e ensaiar outras estratégias, ainda que temporariamente…?

Se é preciso alavancar a economia e os mercados de exportação continuam semicerrados, talvez fizesse sentido instituir um rendimento básico incondicional para todos os cidadãos, de modo a fomentar a procura interna e combater a pobreza e exclusão social.

Se é necessário injetar dinheiro nas empresas, talvez fosse uma boa oportunidade para criar linhas de crédito para que os trabalhadores possam subscrever aumentos de capital das empresas onde trabalham, avançando para uma nova configuração empresarial que substitua a subordinação jurídica pela cooperação leal.

Se é importante recapitalizar a economia e se pede o empenho do setor bancário, talvez fosse útil não apenas limitar a distribuição de dividendos, mas também a possibilidade de cobrar juros que ultrapassem o custo da operação.

Se é imperioso diminuir a poluição, talvez se pudesse flexibilizar a possibilidade do trabalho ser exercido a partir de casa, pelo menos uma parte da semana, como se tem feito nestes dias de confinamento, evitando deslocações massivas diárias.

Se vai ser necessário criar emprego, talvez fosse boa ideia reduzir a jornada laboral e repartir o tempo de trabalho excedente com outros trabalhadores desempregados, sem perda de remuneração e com a comparticipação da Segurança Social, alargando eventualmente o período de funcionamento das empresas.

Se o turismo vai demorar a regressar, talvez fosse pertinente incentivar do ponto de vista fiscal o arrendamento de habitação a custos acessíveis com uma duração não inferior a dois anos.

Se o setor cultural está de rastos, talvez fosse finalmente a altura de lhe dedicar o almejado 1% do PIB.

Se o mundo todo está a braços com a pandemia, talvez fosse o momento de colocar os exércitos ao serviço da paz e da população, ao mesmo tempo que se incrementa a cooperação e a coordenação internacional, incluindo para acolher e realojar os refugiados…

De facto, se o tempo é propício para que irrompa uma nova paisagem cultural que combine o afã pela liberdade e a justiça social, a capacidade empreendedora e a compaixão por todos os seres vivos, como se dizia neste diário há uns dias atrás, vai ser necessário que se dêem passos compatíveis com essa direção futura, em vez de se pensar somente em reabrir a economia para fazer “business as usual”, com os resultados que já são conhecidos.

 

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