Por Quentin Ravelli/Le Monde Diplomatique Brasil

A França revelou-se incapaz rastrear maciçamente os doentes com Covid-19, revelando a dependência da saúde pública em relação aos laboratórios privados

As crises econômicas são tão seletivas quanto as epidemias: em meados de março, enquanto as Bolsas de Valores entravam em colapso, as ações dos laboratórios farmacêuticos Gilead subiam 20% após o anúncio dos testes clínicos do remdesivir contra a Covid-19. As da Inovio Pharmaceuticals aumentavam 200% após o anúncio de uma vacina experimental, a INO-4800. As da Alpha Pro Tech, fabricante de máscaras de proteção, saltaram 232%. Quanto às ações da Co-Diagnostics, subiram mais de 1.370% graças ao seu kit de diagnóstico molecular do Coronavírus 2 da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars-Cov-2), responsável pela pandemia de Covid-19.

Como explicar que, no centro da turbulência, seja possível enriquecer assim, mesmo quando há falta de máscaras de proteção, inclusive para os médicos e para as equipes de enfermagem, e os testes de triagem permanecem inacessíveis à grande maioria após três meses de epidemia? Por que esses testes estão no centro do debate global, da Coreia do Sul aos Estados Unidos, passando pela Alemanha, Austrália e Lombardia, mas continuam sendo cuidadosamente evitados na França, onde o diretor-geral de Saúde, Jérôme Salomon, só considera seu uso maciço “no final do confinamento”? Ao contrário dos anúncios do governo, longe de ser uma guerra contra um vírus cuja única arma seria a quarentena, a batalha diz respeito à nossa própria organização econômica e social. É uma crise de nossa política de saúde, pesquisa e produção, na qual a indústria farmacêutica desempenha um papel central, mas cuidadosamente mantido a distância do debate público.

Nas últimas semanas, a pandemia de coronavírus revelou as falhas de um modelo social baseado na ideia da rentabilidade econômica da saúde, justificando cortes orçamentários cada vez mais restritivos para funcionários e pacientes. Na França, com a saturação das salas de reanimação e dos serviços de emergência, já lutando há meses no coletivo Inter-urgences para pedir mais recursos, os profissionais devem fazer escolhas dramáticas entre os cuidados vitais, cuja lista está diminuindo, e aqueles que são sacrificados, sempre mais numerosos. Em alguns casos, como na Alsácia, a questão já passa a ser quem deve ser mantido vivo e quem se deve deixar morrer. Mas como explicar que, em 22 de março, já houvesse 271 mortos na região do Grande Leste, enquanto a poucos passos de distância, do outro lado do Reno, em Baden-Württemberg, onde a população é duas vezes maior e a epidemia mais precoce, houvesse apenas 23, ou seja, mais de dez vezes menos?

Uma das respostas a essa pergunta pode ser encontrada no papel político que a indústria farmacêutica desempenha em nossos sistemas de saúde. É ela quem produz as ferramentas que permitem fazer a triagem do vírus, nos vacinar contra ele ou tratá-lo. Ainda que a França seja extremamente carente dos kits de triagem – cuja tecnologia por reação de polimerase em cadeia (PCR) identifica o vírus amplificando seu DNA –, estes são, no entanto, simples de fabricar. Muitas empresas se lançaram nesse mercado colossal, que acaba de emergir como um gêiser: Abbott, Quiagen, Quest Diagnostics, Thermo Fischer, Roche, BioMérieux… A técnica é barata – cerca de 12 euros por um kit vendido por 112 euros na França, dos quais 54 euros cobrados dos pacientes. No entanto, ela pode ser objeto de acordos tarifários proibitivos em um contexto de monopolização do mercado entre algumas grandes empresas, como Abbott ou Roche, que vende plataformas tecnológicas caras a laboratórios menores.(1)

Mais pesquisas sobre obesidade que infecções

Mesmo com essas limitações econômicas, como explicar que a França tenha realizado, em 20 de março, quase metade do número de testes por milhão de habitantes que o Irã ou a Áustria? Que, com menos de 40 mil testes realizados até essa data, esteja muito atrás dos 316.644 da Coreia do Sul, dos 167 mil da Alemanha, dos 143.619 da Rússia ou dos 113.615 da Austrália?(2) Na Coreia do Sul, as pessoas podem ser testadas no carro ou em cabines de vidro, onde os profissionais colhem amostras com luvas de borracha. A triagem sistemática, acompanhada do monitoramento de cada pessoa infectada, possibilita romper as cadeias de transmissão, isolando aqueles que estão doentes, e não os outros. Consequentemente, as medidas de confinamento são muito menos restritivas, a taxa de mortalidade dos pacientes positivos é mais baixa e, acima de tudo, o número de mortes é bem menos elevado que na França, apesar da proximidade do foco infeccioso chinês.

Se a triagem é um dos pontos cegos da luta francesa contra a epidemia, também existe outro ponto cego no interior deste: a escassez de reagentes, esses componentes químicos essenciais para a triagem, que atestam a presença do vírus. Dessas moléculas quase nada se sabe: nem de onde elas vêm, nem para que servem, nem quanto custam realmente. Por que não levantar todos os segredos industriais, todos os segredos comerciais e todas as patentes sobre a composição desses reagentes tão preciosos para a saúde de bilhões de seres humanos, e conscientizar o público sobre a origem de suas matérias-primas, bem como sobre as vias de sua fabricação?

Além da triagem, a segunda arma essencial nessa guerra é a da droga que permitiria curar a Covid-19. De acordo com um anúncio do governo chinês, o favipiravir – o princípio ativo do antigripal Avigan, produzido pela empresa japonesa Fujifilm – teria dado “resultados muito bons” contra o vírus, reduzindo o tempo de cura. Outro candidato, o Kezvara, um anticorpo monoclonal que inibe os receptores da interleucina-6, indicado para a poliartrite reumatoide, avaliado numa parceria entre Sanofi e Regeneron, poderia reduzir a reação pulmonar inflamatória do vírus em pacientes gravemente afetados pela Covid-19. Essas reconversões de moléculas em regime de urgência significam uma falta de planejamento para problemas de saúde e uma febrilidade oportunista em vez de uma política industrial.

Muitos diriam que, por definição, é impossível predizer uma pandemia e que a pesquisa está fadada a ser pega de surpresa. Esse argumento não se sustenta: podemos prever, orientar a pesquisa com base em uma visão geral da ciência, da medicina, da ecologia. Essas pesquisas não podem ser realizadas a curto prazo, com imperativos de lucro. Elas são conduzidas a longo prazo, de acordo com as reais necessidades da população. No entanto, essas necessidades não correspondem estruturalmente aos mercados solventes: 85% dos medicamentos são consumidos em países que abrigam 17% da população mundial, e há mais pesquisas sobre medicamentos para depressão e obesidade que para doenças infecciosas, que são a principal causa de mortalidade no mundo.

Quando a crise ocorre, essa discrepância leva a situações aberrantes, cuja terceira arma – as vacinas – já está repleta de exemplos. Donald Trump, por exemplo, propõe a compra da patente da vacina contra o coronavírus da empresa alemã CureVac para uso “somente nos Estados Unidos”, causando uma recusa categórica por Angela Merkel e uma concessão relâmpago de 80 milhões de euros da União Europeia. Essa corrida diplomática, não desprovida de segundas intenções eleitorais, reflete uma realidade industrial: como a pesquisa é feita principalmente por incentivo financeiro e por patentes, as grandes empresas farmacêuticas estão reduzindo seus investimentos em áreas médicas essenciais, das quais fazem parte as infecções, sejam elas bacterianas ou virais. Mas aqui novamente o ritmo real da pesquisa não está adaptado: a empresa Moderna Therapeutics, considerada a primeira a desenvolver uma vacina, só poderá colocá-la no mercado daqui a vários meses – o que não impediu que suas ações dessem um salto após o anúncio de seu projeto.

Esses impasses da pesquisa privada não são compensados pela pesquisa pública. Os cortes orçamentários geralmente caem como guilhotinas em projetos pacientemente desenvolvidos. Em 4 de março, o pesquisador Bruno Canard, especialista em replicação dos “vírus para RNA” – um vírus cujo material genético consiste em ácido ribonucleico –, como o coronavírus, explicava numa coluna: “A partir de 2006, o interesse dos políticos pelo Sars-CoV desapareceu; não sabíamos se ele voltaria. A Europa se retirou desses grandes projetos de antecipação em nome da satisfação dos contribuintes. Agora, quando um vírus emerge, pede-se aos pesquisadores que se mobilizem urgentemente e encontrem uma solução para o dia seguinte. Com colegas belgas e holandeses, enviamos há cinco anos duas cartas de intenção à Comissão Europeia, dizendo que era preciso se antecipar”.(3) O pesquisador pode afirmar que “a ciência básica é nosso melhor seguro contra epidemias”(4) e constatar que certos ramos da virologia e da bacteriologia permanecem os primos pobres da pesquisa – quer se trate de pesquisa farmacêutica aplicada ou microbiologia básica. O “chamado instantâneo” da Agência Nacional de Pesquisa, dotado de 3 milhões de euros, parece irrisório quando chega após anos de desinvestimento e de outras epidemias semelhantes. Após o coronavírus responsável pela síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers) em 2015 e pela Sars de 2003, que surgiu na China (8.096 pessoas infectadas em cerca de trinta países, causando 774 mortes), a Coreia do Sul finalmente reorientou suas políticas de saúde pública e preparou as bases para sua ação atual. Para que os governos se lembrem, o trauma obviamente precisa ser forte e repetido. E, mesmo assim, geralmente é a amnésia que prevalece.


*Quentin Ravelli é pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique, da França, e autor de La stratégie de la bactérie [A estratégia da bactéria], Le Seuil, Paris, 2015.

1 Comunicado de imprensa, Observatoire de la Transparence dans les Politiques du Médicament [Observatório da Transparência nas Políticas de Medicamentos], 18 mar. 2020.
2 Esteban Ortiz-Espina e Joe Hasell, “How many tests for Covid-19 are being performed around the world?” [Quantos testes para o Covid-19 estão sendo realizados em todo o mundo?], plataforma de dados Our World in Data, 20 mar. 2020. Disponível em: https://ourworldindata.org.
3 Bruno Canard, “Coronavirus: la science ne marche pas dans l’urgence!” [Coronavírus: a ciência não funciona em termos de urgência!], site Université ouverte, 4 mar. 2020. Disponível em: https://universiteouverte.org.
4 Bruno Canard, “La science fondamentale est notre meilleure assurance contre les épidémies” [A ciência básica é nosso melhor seguro contra epidemias], CNRS Le Journal, 13 mar. 2020.

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