DIREITOS HUMANOS

Por Justiça Global

A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro pelo assassinato do trabalhador rural sem-terra Manoel Luiz da Silva, ocorrido em 19 de maio de 1997, no município de São Miguel de Taipu, na Paraíba.

A decisão reforça a necessidade de medidas efetivas contra a violência no campo e de proteção aos direitos humanos dos trabalhadores rurais.

A sentença anunciada hoje foi antecedida por uma audiência perante a Corte IDH, ocorrida em  em 8 de fevereiro de 2024, em San José, na Costa Rica. O caso foi apresentado pela  Justiça Global, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Dignitatis após anos de impunidade e negligência estatal na apuração do crime. As organizações peticionárias denunciaram o Brasil pela violação dos direitos às garantias judiciais, à proteção judicial e à integridade moral e psíquica dos familiares da vítima.

Entenda o caso

Manoel Luiz da Silva, à época com 40 anos, foi assassinado por capangas quando voltava de uma mercearia junto a outros três trabalhadores sem-terra. Eles foram atacados ao passar por uma estrada dentro da Fazenda Engenho Itaipu, que estava em processo de expropriação para reforma agrária. Os agressores atiraram contra os trabalhadores, e Manoel morreu no local. O caso teve uma investigação falha e parcial, com demora na realização de perícia e desconsideração do contexto de violência contra trabalhadores rurais.

Em 2003, os dois acusados foram absolvidos pela Justiça brasileira, e o terceiro suspeito nunca foi localizado. Nenhuma investigação foi conduzida contra o proprietário da fazenda, apesar das ameaças contra trabalhadores rurais na região.

Decisão da Corte Interamericana

A Corte entendeu que o Estado brasileiro falhou em garantir justiça e proteção aos direitos dos familiares da vítima, permitindo a impunidade do crime. A decisão cita a falta de uma resposta efetiva do Estado na investigação, violando também a integridade e o direito à verdade dos familiares de Manoel Luiz.

O Brasil foi condenado a indenizar os familiares de Manoel Luiz, oferecer suporte psicológico adequado e garantir a reparação do caso a partir de um ato público de reconhecimento da responsabilidade do Estado Brasileiro.

Emblemática, ainda, foi a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos de implementação, no prazo de dois anos, de um sistema regional específico para o Estado da Paraíba para a coleta de dados e estatísticas relativas a casos de violência contra pessoas trabalhadoras rurais. Segundo a sentença, este sistema tem o objetivo de “avaliar de forma precisa e uniforme o tipo, a prevalência, as tendências e os padrões da referida violência, desagregando os dados por estado, origem étnica, militância, gênero e idade”, especificando a quantidade de casos  “que foram efetivamente judicializados, identificando o número de acusações, condenações e absolvições” . Todas as informações deverão obrigatoriamente ser divulgadas pelo Estado da Paraíba, com amplo acesso à população em geral.

Impacto e contexto da decisão

A condenação do Brasil pela Corte Interamericana insere-se em um contexto alarmante de violência no campo. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, conflitos por terra aumentaram 16,7% no Brasil em 2022, afetando mais de 180 mil famílias. Em 2023, registraram-se 973 ocorrências no primeiro semestre, evidenciando a crescente tensão fundiária e a falta de respostas efetivas do Estado para conter a violência.

Com esta decisão, espera-se que o governo brasileiro tome medidas concretas para evitar a repetição de casos semelhantes e promova a proteção dos direitos humanos dos trabalhadores rurais, garantindo acesso à terra e justiça para vítimas da violência no campo.

Aspas das peticionárias:

Tânia Maria – representante da Comissão Pastoral da Terra/Nordeste (CPT-Nordeste) – 

“Hoje eu estou com sentimento de justiça, apesar dos quase 28 anos da passagem do assassinato de Manoel Luiz. Uma vez que a justiça no Brasil absolveu os acusados, essa iniciativa da Justiça Global com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Dignitatis de levar à Corte Interamericana de Direitos Humanos para julgar o país, dá uma sensação de que, mesmo tarde, a justiça tá acontecendo. É bom para a família. O Manoel Luiz (filho) perdeu o pai ainda muito criança e ficou desprotegido porque a mãe ficou doente. Depois ele teve que se virar na vida ainda menino e nós ficamos firmes aqui na luta para que essa justiça acontecesse. Hoje essa luta foi coroada. Pra mim foi a maior satisfação ver a Corte ler uma sentença contra o Estado brasileiro, que nega os direitos humanos, violenta o trabalhador que luta pela terra e não faz a reforma agrária.

A sentença de hoje também cria mais expectativa para que no caso de Almir Muniz (outro caso julgado junto ao de Manoel em 2024 na Corte) a gente também tenha um resultado positivo e a família seja justiçada também por esse ato de negação do Estado brasileiro”.

Hugo Belarmino – professor da Universidade Federal da Paraíba e advogado da Dignitatis 

“A condenação do Estado brasileiro hoje retrata um momento histórico. Como continuamos com o contexto de tantas violências no campo, essa sentença é um documento importantíssimo, não só para reconhecer e colaborar no processo de reparação das vítimas e dos familiares de Manuel Luiz, mas também para que a gente possa ter um instrumento a mais de luta e de monitoramento de políticas públicas efetivas para combater a violência no campo na Paraíba, em outros estados do Nordeste e em todo o Brasil. Então acho que é muito simbólico que poucos dias depois do centenário de Elizabeth Teixeira, que completou 100 anos na semana passada, a gente tenha uma sentença que reconhece a responsabilidade do Estado brasileiro pela ausência de reforma agrária, pela ausência de políticas públicas para populações do campo. Então, nesse sentido estamos muito felizes e satisfeitos com a sentença. Seguiremos comprometidos com o processo de monitoramento das atividades que decorrerão a partir da sentença, assim como o monitoramento da sentença aqui na Paraíba perante o Estado brasileiro”.

Daniela Fichino – diretora adjunta da Justiça Global 

“A condenação do Estado Brasileiro nesta terça-feira é fruto de quase trinta anos de luta por justiça. Nesse tempo, pouco se avançou no país para efetivamente sanar a chaga da violência no campo, enfrentar os crimes cometidos pelo latifúndio e garantir justiça a todas as violações perpetradas. Em um país em que trabalhadores rurais sem terra e seus movimentos de luta seguem criminalizados, ameaçados e intimidados, esta condenação abre mais um precedente internacional para que mudanças estruturais  sejam implementadas”.