OPINIÃO
Por Raphael Pinheiro
Enquanto os EUA tentam forçar a venda do TikTok sob alegação de segurança nacional, o mundo assiste a mais um episódio da série “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” no cenário digital global
Em uma reviravolta digna das melhores narrativas de suspense político, o TikTok, aquele aplicativo onde sua sobrinha passa horas dançando e seu tio descobriu que pode fazer vídeos de receitas, está no centro de uma das maiores disputas tecnológicas da atualidade.
A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que o app chinês pode ser banido a partir de 19 de janeiro, a menos que encontre um comprador americano. Mas espere: Donald Trump, o mesmo que tentou banir o aplicativo em 2020, agora pede “tempo para rever a situação”. E para adicionar mais uma camada de complexidade a esta história, Trump anunciou que Elon Musk, dono do X (antigo Twitter), vai chefiar o Departamento de Eficiência Governamental dos Estados Unidos. Confuso? Bem-vindo ao mundo da geopolítica digital.
A história seria cômica se não fosse tão reveladora do atual estado das relações internacionais no mundo digital. Imagine se o Brasil decidisse que o Instagram precisa ser vendido para uma empresa brasileira porque “vai que o Mark Zuckerberg está espionando nossas dancinhas de carnaval?” Parece absurdo, não é? Pois é exatamente assim que grande parte do mundo vê a atual situação do TikTok nos EUA.
O argumento oficial americano é que o TikTok representa um risco à segurança nacional porque a ByteDance, sua empresa controladora, poderia ser forçada pelo governo chinês a compartilhar dados dos usuários americanos. É uma preocupação válida, sem dúvida. Mas há um elefante (ou seria um dragão?) na sala: as empresas americanas de tecnologia há anos coletam dados de usuários do mundo inteiro, e as revelações de Edward Snowden já mostraram que o governo americano não é exatamente tímido quando o assunto é vigilância global.
O caso do TikTok expõe uma contradição fundamental no mundo digital contemporâneo: por que dados nas mãos de empresas americanas são seguros, mas nas mãos de empresas chinesas são uma ameaça? A resposta, como sempre, está mais relacionada a poder e influência do que a preocupações genuínas com privacidade.
A participação de Donald Trump nessa história adiciona uma camada extra de complexidade (e ironia). O ex e futuro presidente, que em 2020 tentou banir o aplicativo, agora se apresenta como seu possível salvador. A razão? “Tenho um lugar especial no coração para o TikTok, porque ganhei a juventude por 34 pontos”, disse Trump. Aparentemente, quando o algoritmo chinês trabalha a seu favor, a ameaça à segurança nacional fica em segundo plano.
E agora, com Elon Musk prestes a ocupar um cargo em seu governo, a trama fica ainda mais densa. É como se o roteirista da novela das nove decidisse que precisava de mais drama e jogasse um novo personagem controverso na história. Musk, que já teve seus próprios embates com governos ao redor do mundo – incluindo uma notável disputa com o Brasil – agora estará do outro lado da mesa, potencialmente influenciando decisões sobre uma plataforma concorrente.
Imagine só: o dono de uma rede social concorrente do TikTok ocupando um cargo no governo que pode decidir o destino do aplicativo chinês. Se isso não é material para uma série da Netflix, não sei o que seria. É como se o dono do McDonald’s fosse nomeado para fiscalizar a segurança alimentar do Burger King.
A situação fica ainda mais interessante quando olhamos para como diferentes países lidam com as redes sociais. No Brasil, por exemplo, quando o X de Musk decidiu fechar seu escritório e remover sua representação legal, o ministro Alexandre de Moraes não pediu para Musk vender a empresa para um brasileiro – pediu apenas que mantivesse representação legal, comercial e fiscal no país, como manda a lei. Imagine se o Brasil tivesse adotado a mesma postura dos EUA: “Ou vende o Twitter para a Magalu ou não opera aqui!”
O caso TikTok é apenas a ponta do iceberg de um problema muito maior: a ausência de uma governança digital verdadeiramente global e equilibrada. Enquanto países como o Brasil e tantos outros têm seus dados circulando livremente em servidores americanos, com pouca ou nenhuma transparência sobre seu uso, os EUA se apresentam como guardiões da segurança digital global.
É como se existissem duas regras no playground digital: uma para os EUA e seus aliados, e outra para o resto do mundo. Enquanto o Facebook pode saber tudo sobre seus usuários brasileiros, indianos ou nigerianos, o TikTok precisa ser “americanizado” para continuar operando nos EUA.
Esta situação nos leva a questões fundamentais sobre o futuro da internet. Queremos uma internet fragmentada, dividida em zonas de influência digital? Ou precisamos lutar por um espaço digital verdadeiramente global, com regras claras e iguais para todos?
A verdade é que o caso TikTok é menos sobre segurança de dados e mais sobre poder econômico e político. É a manifestação digital de uma antiga disputa por hegemonia global, agora transposta para o mundo dos algoritmos e dados.
Enquanto o drama do TikTok se desenrola nos EUA, é hora de países como o Brasil começarem a pensar seriamente sobre soberania digital. Não se trata de xenofobia tecnológica ou protecionismo digital, mas de estabelecer regras justas e recíprocas para o uso e proteção de dados.
Se há uma lição a ser aprendida com toda essa situação, é que a internet, essa rede que nasceu com a promessa de ser global e sem fronteiras, está cada vez mais sujeita a interesses nacionais e geopolíticos. E talvez seja hora de todos os países, não apenas os EUA e a China, terem voz ativa nessa discussão.
Por enquanto, continuamos assistindo a esse drama geopolítico que, ironicamente, tem mais plots twists que qualquer trend viral do TikTok. E enquanto Trump “revê a situação”, milhões de usuários seguram o celular na diagonal, esperando para ver se ainda poderão postar seus vídeos de dança amanhã.