NOTA PRETA
Por Mauro Viana
A militância antirracista enriquece as atividades acadêmicas uma vez que, nossa sociedade vive um tempo histórico de profundas transformações, nos modelos de convivência e coexistência de diversas culturas.
Essa afirmação combina com sua trajetória?
O ambiente acadêmico foi fundamental para que eu tomasse o ponto de partida de estudar e me observar. Mas sim, eu sempre me considerei uma pessoa antirracista, pela minha educação e pela forma como eu mesma me lia, talvez influenciada pelo mito da democracia racial brasileira. Embora minha pele seja clara, meus cabelos tendem ao crespo, então havia alguma ambiguidade. Cresci ouvindo apelidos como: “Tina Turner, Elba Ramalho, Bob Marley Loira, e mais pra frente, quando ela apareceu, muitas comparações a parecer a Vanessa da Matta. O que me fazia me ver como uma pessoa não branca.
A minha beleza, me diziam ser exótica, o que me direcionava a me identificar como mestiça, acreditando que isso exaltava as minhas ancestralidades. No entanto, ao adentrar a universidade, esse conceito começou a ser desafiado. Em 2017, ao utilizar o termo “mestiça”, fui não apenas confrontada com a complexidade das minhas próprias identidades, como exposta de uma forma muito negativa;
O impacto desse acontecimento gerou um desconforto significativo. Essa vivência me fez perceber que o racismo não é apenas uma questão de atitudes individuais, mas uma estrutura sistêmica que permeia as instituições e as interações sociais. Esse episódio me levou a refletir muito mais profundamente sobre as tensões raciais e sobre como o racismo estrutural se manifesta de formas sutis, até mesmo em contextos acadêmicos e culturais.
A informação e educação antirracista, portanto, se torna essencial para que possamos compreender e combater as desigualdades raciais, não só em nossa prática diária, mas também nas dinâmicas sociais e acadêmicas, onde é crucial garantir a representação e o respeito à diversidade.
Nesse sentido, qual é sua frente de luta na Universidade Federal Fluminense?
As coisas aconteceram de forma gradual. Em 2017, me aliando à luta das mães, atendi ao chamado de uma mãe que buscava ajuda para reativar a rede de apoio na UFF. Juntamente com ela, começamos a organizar energias para fortalecer a luta, com a participação de diferentes ciclos de mães no Coletivo Mães da UFF. A Erica liderou o coletivo de 2017 até 2019, e eu de lá pra cá, mas quando ela saiu, percebi que seria muito difícil manter uma organização tão participativa, especialmente uma que dependesse de tantas mães sobrecarregadas para tomar decisões. E o que percebemos era que as que mais precisavam das ações, eram as que menos conseguiriam participar. Diante disso, transformamos o perfil Mães da UFF , que eu havia criado, em um informativo Mães da UFF e passamos a tomar iniciativas por meio do Núcleo Interseccional de Estudos da Maternidade (NIEM), que se tornou a produção das ações para as mães da UFF, organizada por um núcleo de trabalho pequeno que geria um grande grupo de whatsapp, que para fazer parte, basta ser mãe da UFF. Nesta época a primeira pesquisa sobre estudantes mães e suas necessidades na UFF.
A luta sempre foi coletiva, mas poucas têm condições de se dispor e doar tempo e energia a ela. Isso é algo que se tornou ainda mais evidente, especialmente porque, nos últimos anos, a pauta se tornou mais vísivel e muito política. Muitas pessoas começaram a chegar com outras intenções, sem um compromisso real com o coletivo, mas a cada conquista, muito post e muita foto, inclusive por grupos políticos que na prática, no dia a dia, normalizavam as nossas exclusões. Já teve tempo que mãe acompanhada de filho, perdia o direito de se alimentar no bandejão ( E não faz tanto tempo assim) …
Cada vitória conquistada teve uma grande estória por trás, recheada de protocolos, reuniões e pedidos intermináveis. Muitas dessas demandas eram centralizadas na Erica, eu fazia comunicação de redes e a logística mas ela que acumulava a grande carga da mediação, em diversas reclamações e uma série de questões sociais difíceis de administrar. Algumas mães chegavam ao coletivo com uma postura de cobrança com a gente, as mães que trabalhavam, sem um incentivo fiscal. A dificuldade de se chegar a consensos sobre os métodos de ação tornava a decisão de qualquer coisa muito complexa.
Começamos a decidir coisas através de consultas em formulários então com tudo, acredito que foi um enorme aprendizado e que todo o processo foi válido. Ao longo de cinco anos, o NIEM organizou seminários e colóquios, proporcionando um espaço de reflexão e ação sobre a maternidade na universidade, e assim abrindo caminhos. E como coletivo, levado a visibilidade, conseguimos revogar e modificar uma série de coisas dentro da UFF e da UFF para outras universidades..
Como funciona o programa? Existe uma institucional jurídica ou trata-se de coletivo?
Não temos uma instituição jurídica formalizada. A ideia de “núcleo de trabalho” surgiu para explicar a necessidade de nos identificarmos como um grupo em movimento, com ações e objetivos concretos. O nome coletivo reflete nossa essência: qualquer mãe aluna que vivencie as exclusões e dificuldades relacionadas à maternidade acadêmica faz parte, por definição, desse grupo.
No entanto, reconhecemos que essas exclusões e opressões não se dão de forma isolada. Elas se intensificam para mulheres que enfrentam outras camadas de opressão, como questões de classe, raça e orientação sexual. Além disso, enfrentamos um machismo cultural profundamente enraizado, que nos ensinou a competir umas com as outras, em vez de nos unirmos. Esse contexto torna muito complexa a dinâmica de se ser representante de um grupo, especialmente um tão diverso como o nosso.
Nosso foco está em fazer o que é possível, usando os contatos institucionais que conseguimos estabelecer ao longo do tempo. Trabalhamos em parceria com gestores, professores, pró-reitores e reitores que se mostram interessados em contribuir para uma universidade mais inclusiva. Não é uma tarefa fácil, mas seguimos construindo pontes e ações concretas, respeitando a pluralidade de experiências que compõem nossa luta.
Você tem uma trajetória profissional muito rica. Quais são suas primeiras ações acadêmicas?
Muito obrigada. Seria a riqueza um acúmulo saberes que não necessariamente se transformam em material capital? Risos…Brincadeiras à parte, obrigada pelo reconhecimento e pela entrevista. Eu me considero uma pessoa que nadou para muitos lados. Foram uns 10 anos entre idas e vindas, tentando conciliar sem sucesso, a sobrevivência com a vida acadêmica. Eu não sei se estava muito ocupada sendo jovem. Só acordei pra vida, mãe e tendo perdido o meu pai. Aí eu voltei e acabei rapidinho. Mas não foi fácil, foi uma época muito dolorida. Mas foi aí que eu me descobri, e nunca mais parei. E no fundo, ou eu to perdida e ainda não sei, ou sou uma curiosa de muitas coisas.
De fato com a luta materna, precisei me aprofundar nas teorias feministas, principalmente senti através da gestão do coletivo de mães e do NIEM que as questões maternas também são profundamente interseccionais, influenciadas por uma série de fatores como raça, classe, gênero e localização. As mulheres, especialmente aquelas de comunidades periféricas e marginalizadas, enfrentam uma combinação única de desafios que se manifestam de maneiras diversas. E são elas que jubilam, abandonam e não se formam. Pois esses espaços, não foram construídos para elas, estar neles, é resistência, e a gente precisa ficar falando sobre o óbvio;
Por exemplo, no contexto de mulheres negras ou indígenas, a opressão racial se cruza com as dificuldades sociais e econômicas, criando uma experiência de vida ainda mais complexa. Essas mulheres muitas vezes têm que navegar em sistemas educacionais, de saúde e sociais que são estruturalmente desiguais e que, frequentemente, ignoram suas necessidades específicas.
Por isso, é fundamental dar visibilidade e atenção às novas narrativas que afirmam a necessidade de criar políticas de acesso que combatam a desigualdade de gênero. Essas políticas devem reconhecer as múltiplas dimensões da experiência feminina, especialmente no contexto educacional e profissional, e abordar as barreiras estruturais que limitam a participação plena das mulheres, especialmente as mães e as mulheres negras. E nesse sentido o NIEM trabalhou de forma ininterrupta de dentro da UFF para fora, anualmente através dos eventos e das publicações do que se reunia a cada ano sobre as vivências e particularidades da luta MaTerna.
Mas falando de produção acadêmica, a pauta da maternidade é na verdade um capítulo, da forma como a produção e a comunicação foram colocadas em prática, para um objetivo comum. As minhas primeiras iniciativas culturais acadêmicas são ligadas a música e a democratização do acesso dos espaços relacionados a narrativas periféricas. Então está tudo de alguma forma muito conectado.
Você pode nos contar algumas particularidades destas ações acadêmicas?
As ações acadêmicas do NIEM são marcadas por uma abordagem simples e prática, e a transformação se deu à partir do possível. Passamos a usar a internet para entender como outras universidades estavam situadas e agiam nas questões de maternidade e a entender o papel dos coletivos existentes naquele período. Assim, pensamos os primeiros eventos materno-universitários brasileiros; anualmente realizamos o Colóquio, com objetivo de reunir os gestores com a representação do coletivo com intuito de apresentarmos problemáticas e buscarmos soluções, e também avaliarmos os avanços a partir do ano anterior.
Já o Seminário, é o momento onde reunimos pesquisadoras, coletivos, gestores e alunas da causa materna de todo Brasil no intuito de troca e compartilhamento de experiências, permitindo uma análise crítica que embasa a criação de novas políticas e práticas institucionais.
Desde a sua criação, o NIEM – Núcleo Interseccional de Estudos da Maternidade, o núcleo esteve diretamente envolvido em conquistas fundamentais, como a mudança no sistema da graduação para considerar as especificidades das alunas mães, a instalação de fraldários nos campi, a abertura da primeira sala de acolhimento para mães e a garantia de acesso ao bandejão para mães acompanhadas de seus filhos, superando barreiras institucionais antes existentes.
A UFF também foi a primeira universidade brasileira a implementar pontuação extra para mulheres-mães em concurso, Tudo isso se deu, por um frente incansável de mulheres-professoras-diretoras-cientistas-gestoras, que fortaleceram demais e abriram os caminhos para que as pautas, com a força de todas, e do movimento de alunas se tornasse mais sólida. De forma mais tímida, eu ainda integro a CEPEG – Comissão Permanente de Equidade de Gênero, com corpo gestor de professoras cientistas com a participação de algumas alunas, e que tem como objetivos: discutir e implementar políticas de apoio à maternidade; conscientizar a comunidade acadêmica sobre o viés implícito e a construção dos estereótipos de gênero; e aumentar a representatividade das mulheres na ciência com políticas de incentivo à participação feminina, em especial, em posições de liderança. A partir desta criação em 2022 o NIEM pode de certa forma “ descansar” pois havia sido criado um espaço institucional de divulgação, escuta e apoio que antes não existiam.
A partir das iniciativas práticas, o que você aprendeu no campo de conhecimento?
Eu venho do território da arte, depois da comunicação e da produção cultural. A luta em 2019 foi onde coloquei minha energia e onde apliquei os conhecimentos que adquiri ao longo dessa trajetória. A força da internet foi fundamental para dar visibilidade às nossas demandas e unir mães em torno de pautas comuns.
Essa experiência também evidenciou que a colaboração entre indivíduos e instituições é fundamental para impulsionar mudanças. Na UFF, a abertura da pró-reitora Alexandra Anastácio e do reitor Antonio Claudio permitiu que as questões maternas fossem reconhecidas como um viés importante na gestão, resultando na institucionalização de debates anuais sobre o tema. Esse aprendizado reforça a ideia de que núcleos de sucesso, baseados na comunicação eficaz e na luta coletiva, podem inspirar outros movimentos, promovendo uma transformação cultural e estrutural mais ampla.
Existe alguma articulação junto ao poder público ou à Câmara Municipal em criar lei inspirada no seu projeto?
Não neste sentido. Em 2019, fomos convidadas, através do mandato da então vereadora Veronica Lima contribuir para a criação de um regulamento municipal voltado ao acolhimento de mães lactantes e gestantes.
Assim houve a implementação da Lei nº 3.454/2019, que institui a Política de Atenção Integral à Saúde Materna e Infantil em Niterói, A lei busca garantir o acesso a serviços essenciais de saúde, o apoio à amamentação e a proteção dos direitos das mulheres durante a gestação e o pós-parto e trouxe diretrizes para a criação de espaços de acolhimento para mães em equipamentos públicos da cidade, como fraldários e salas de apoio à amamentação.
Links de reportagens:
https://www.uff.br/09-09-2022/uff-inaugura-sala-de-apoio-as-maes/
https://www.uff.br/09-10-2019/ser-mae-na-uff-conquistas-e-desafios-na-construcao-de-
https://www.uff.br/informe/coletivo-maes-da-uff-garante-acesso-de-maes-alunas-ao-restaurante-universitario/uma-universidade-de-todos-e-para-todos/