MÚSICA
Por Renan Simões
Damião Experiença é uma das figuras mais emblemáticas da contracultura brasileira, com uma história cheia de lacunas e imprecisões. Damião fugiu ainda criança de sua terra natal (Portão, distrito de Santo Amaro de Ipitanga – atual Lauro de Freitas -, na Bahia) para o Rio de Janeiro, por apanhar muito dos pais. Supostamente atuou como cafetão nos anos 60. Foi militar aposentado após sofrer um acidente, e produziu quase 30 discos de forma completamente independente, muitos dos quais com músicos ainda hoje não identificados.
Criou teorias sobre o porvir, a partir do Planeta Lamma, para o qual criou uma língua própria, e fez dreadlocks antes mesmo de Bob Marley estourar no mercado internacional. Passou anos acumulando objetos e entulhos em seu apartamento em Ipanema, no 13º andar de um edifício. Pude conferir isso pessoalmente nas duas visitas que fiz ao artista, junto a Igor Colombo e Sabrina Souza: seu apartamento era praticamente um túnel rente ao teto, realizado a partir de entulhos, no qual se andava engatinhando entre os cômodos.
Dessas visitas, ganhamos alguns CDs assinados pelo próprio artista. Os papos que tivemos com ele eram surreais, descontínuos e divertidos, e não fugiam muito do espectro de temáticas de suas letras. Eu já conhecia sua obra desde 2003/2004, após indicação de Raul Zoboli, e já tinha comprado vários de seus LPs – os quais acabei me desfazendo depois; pretendo retomar pelo menos um ou dois para recordação…
Seu primeiro álbum foi Planeta Lamma (1974), justamente incluído por Bento Araújo em seu livro Lindo sonho delirante – 100 discos psicodélicos do Brasil. Aí está a essência de toda a obra de Damião: língua do Planeta Lamma, fluxo musical aleatório, explorações vocais exageradas, e temáticas e reflexões bizarras. Damião canta e toca um violão bem desconstruído e uma gaita estranha, como se fosse um Bob Dylan dos infernos. Este foi o primeiro dos cerca de 25 álbuns que o artista lançou entre 1974 e 1992; dentre estes, foram exploradas outras formações, muitas das quais com bandas de músicos profissionais anônimos.
Após um hiato de 15 anos, o artista lança, em 2007, Amorzinho 1914 e Sarafina 1937, bem no estilo de seu álbum de estreia. A grande diferença é que, ao invés de faixas com extensões mais tradicionais, cada um desses álbuns é composto por uma única faixa, com cerca de 40 minutos de duração. Nunca o artista tinha feito faixas tão longas, ainda mais em um único take, sem interrupções. Os títulos se referem aos nomes de seu pai e de sua mãe, e suas respectivas datas de nascimento.
Amorzinho 1914 tem, supostamente, 14 “partes”: Planeta Lamma, Cosmo, Daminhão, Damião Ferreira da Cruz, Adolfo Hitler, Travestis, Vestido, Kamelo, Prostituta, Apto. 1308, Tomate, Isabelita Peron, EvaBraunHitler e Daminhão Experiença. Sarafina 1937 tem, supostamente, 15 “partes”: Daminhão Experiença, Pé, Dedo, Carne, Flor, Dente, Cebola, Tomate, Alho, Selo, Carta, Fumaça, Cachorro, Caixão e Damião Ferreira da Cruz.
Em Amorzinho 1914, Damião apresenta suas credenciais, alega que o destino de todos é estar a 27 palmos embaixo da lama, e entoa seus cânticos na língua do Planeta Lamma. É muito certeiro ao afirmar que “A língua das pessoa são mais sujo de que as droga / Porque as droga elas são medicinal”, logo antes de saudar a morfina e a heroína. Há aqui os vocais gritados, quase guturais, que emulam a emblemática Planeta Lamma, faixa título de seu álbum de estreia. Em resumo, Damião apresenta seus devaneios reflexivos aleatórios de sempre, a partir de temáticas recorrentes: ufanismos e utopias, desigualdades sociais, repressão policial, discursos contra a ditadura, ativismo contra o aborto, saudação a ditadores, vida de cafetão, etc. Uma bagunça total, em partes “politicamente incorreta”, mas em discurso totalmente coerente com o que o artista
cantava desde os anos 70.
Lá pelas tantas, Damião desabafa sem máscaras, em um raro momento: “Som acústico… bem fraco… eu tô nervoso, com a cabeça cheia de pobrema”. A seguir, o teor sexual bizarro toma conta: “As pessoa que chupa a boca das outras pessoa / São pessoa viciada fazer ‘sécu’ pela boca”. Este é ainda maior evidenciado em suas soluções práticas para evitar o aborto, ou quando lamenta a mudança de sua vizinha querida.
Sarafina 1937 é levemente superior ao álbum anterior, embora muito similar na sonoridade e temáticas. Aqui, as reflexões sexuais são ainda mais bizarras, culminando na fixação do artista por mulheres lésbicas e em frases gratuitamente violentas, como “Eu quero casar com essa vagabunda”. Brilham também, nesse álbum, os momentos maravilhosos de pseudo francês, pois soam melhores que muitos exemplos da galera indie brasileira cantando (muito mal) nesse idioma.
Amorzinho 1914 e Sarafina 1937 foram os últimos álbuns de originais da extensa discografia de Damião Experiença, que faleceu em dezembro de 2016. Em seu enterro compareceram apenas duas pessoas – underground até em seu derradeiro momento. Observação final: além de seu álbum de estreia, Planeta Lamma (1974), destacamos também, de sua discografia, Damião Experiença no Planeta Lavoura, que apresenta reflexões sensíveis sobre as “muleres protistuta”, apontamentos sobre as posições do “1969” e do “1999”, e muitas bizarrices sexuais.