Nara, desde jovem, era a guardiã da história da comunidade da Serra, como em outros tempos seu bisavô Antonio foi o guardião do armazém. Estes títulos mostram o que aconteceu entre um tempo e outro, a passagem de um mundo de riscos materiais, para outro de riscos subjetivos. Nara nasceu um pouco antes da morte do bisavô, mas ouviu e aprendeu de outras pessoas suas histórias por ter sido sempre um ouvido atento e ser uma boa contadora de casos. Parece que esta atenção aos talentos natos das crianças e o estímulo familiar e comunitário a estes não é uma prática tão antiga. Sem dúvida foi a concepção, hoje tão comum, de que cada pessoa vem servir ao mundo com seus talentos, que fez Nara ser escolhida ainda menina para contar histórias que evidenciam a linhagem de cada pessoa e da comunidade.
O bisavô Antônio viveu no tempo do colapso, entre os anos 2020 e 2040 e já era parte de uma comunidade visionária quando a grande debacle aconteceu. Ele saiu da cidade grande com amigas e amigos para fundar a comunidade da Serra enquanto a maioria das pessoas ainda estava imersa no produtivismo e consumismo, cega ao que estava por vir. Eram chamados de ecovileira.os estas pessoas esquisitas que abraçavam o desconsumo, abandonavam as cidade para construir pequenas aldeias ecológicas, se propondo a viver de modo ancestral. Antônio ergueu com suas próprias mãos – e a de todes da comunidade – o armazém que guardava a comida produzida por elas e eles: comida sã, sem veneno nem manipulação genética, produzida de maneira restaurativa, em diferentes modalidades de agroflorestas. Cultivavam comida e árvores ao mesmo tempo.
Já seu avô Fernando, filho de Antônio e Áurea e nascido neste mundo são, contou-lhe como estranhava as pessoas que ainda viviam nas cidades comendo veneno e vivendo uma vida psicologicamente envenenada. Foi com muito medo que viu por três vezes a comunidade da Serra ser invadida por hordas de famintos vindos de todos os lados para pilhar o armazém. Ele era criança e não fez parte dos combates, apenas da reconstrução. O vô Antônio tinha dito a Fernando que na primeira invasão a comunidade não reagiu porque estava penalizada com o estado daquelas pessoas esfomeadas. Na segunda vez eles tiveram que reagir, pois houve violência. Na terceira perceberam que nem poderiam mais plantar, pois o armazém seria invadido quando estivesse cheio novamente e assim combateram ferozmente os invasores.
Não houve uma quarta vez, pois a comunidade da Serra subiu mais a montanha em direção a um lugar que a protegeu por mais de meio século. A Serra da Serra. Nara nascera aqui, em 2112, já em tempo de paz e prosperidade. Sua mãe, Mariana, filha de Fernando e Anita e neta de Antônio e Áurea, foi a última guardiã da história antes dela, também já tinha nascido em tempos de paz, mas a mãe de sua mãe, Anita, companheira do vovô Fernando e do vovô Adolfo vivera com eles tempos difíceis na consolidação da Serra da Serra. Após terem fugido da comunidade que tinham feito prosperar em comida, floresta, gente e recursos em meio à devastação do mundo, viveram tempos materialmente duros e subjetivamente ricos: a solidão comunitária dos altos da serra.
Toda a comunidade, aos poucos, migrou para um lugar escondido, tão inacessível que ficaram desconectados – e assim protegidos – nos tempos mais duros dos tempos duros. O casal Antônio e Flor estavam entre os primeiros a migrar. Ele carpinteiro e guarda do armazém e ela agricultora e bióloga foram inventar a vida na Serra da Serra com mais dois casais. Os filhos foram um pouco depois, quando as casas estavam construídas e as hortas produzindo. Todos sabiam que era necessário sair aos poucos para não chamar a atenção e se manterem protegidos. Já viviam um pouco isolados pois as pessoas da região ainda estavam hipnotizadas pelo consumo e busca obsessiva de sucesso material, enquanto aquela gente da Serra vivia para a terra, a comunidade, o autoconhecimento e a celebração da Vida e da Natureza. Assim, quando tudo colapsou, eles tinham o mais importante: comida, água, casas frescas e vizinhança solidária, mas estavam arrodeados de desolação.
A ecovila da Serra era muito querida pela gente da região, que a protegeu o quanto pode, mas eles eram os “ricos” em meio ao caos e assim a comunidade foi visada, a princípio por famintos, depois por criminosos. Eles tinham sua própria água, sua própria energia, seu próprio combustível, sua comida nutritiva e saborosa. Eram pessoas criativas e independentes, que passavam horas em reuniões estranhas, cheias de flores, incensos, cânticos e silêncios para decidirem o que iam plantar, quem fazia o quê, quem seria parte do próximo grupo dirigente. Tanta beleza nos encontros e métodos para acalmar os ânimos eram necessários pois naquele bando de gente alternativa cada pessoa tinha suas próprias ideias sobre como fazer as coisas. E as reuniões tinham momentos lindos e harmoniosos, mas também eram cheias de momentos de desentendimentos e arroubos pessoais onde se dizia “vou me embora daqui, não aguento mais”.
Mas iam ficando, segundo contaram a Nara. Fora uns que partiam e outros que chegavam, a comunidade na quarta década do século passado se manteve com uns 80 adultos e seus filhos que iam crescendo sabendo que viviam um mundo diferente. Quando começaram a ser invadidos, os conflitos escassearam e uma urgência de defender o que tinham criado impôs uma paz interna que nunca tinha sido tão grande. O plano coletivo de ir embora veio na última invasão, mas também quando os sinais de colapso já eram diários. Depois da inundação do Rio Grande do Sul, em 2024, nada mais foi igual. Apesar da loucura de alguns que persistiram na negação do óbvio, a ideia de que nada mais era seguro em termos ambientais foi tomando corpo. Como sempre, a inércia dos modos de vida só é sacudida pelas catástrofes. Foi assim com o grande incêndio da região da Serra, que abrangeu quase toda a Chapada Diamantina.
Aqueles visionários e visionárias eram gente bem-informada e bem formada, com profissionais vindos de diferentes campos. Tinham fundado a Serra no início do milênio por não suportarem mais viver um mundo sem saída e queriam construir algo novo. Prepararam-se para o que ia vir em todas as frentes. Tornaram-se autônomos no essencial e sabiam dos riscos dos incêndios que começaram a ocorrer com frequência ainda no início de sua instalação na região. Cercaram suas terras com plantas suculentas que continham muita água e assim os protegia, não completamente, claro, dos incêndios que cresciam em intensidade e área atingida a cada ano. No ano do grande incêndio, a Chapada Diamantina quase inteira queimou, os fogos em diferentes pontos foram se encontrando num braseiro inimaginável em pleno abril, época em que a chuva normalmente já começou. Ela tardou daquela vez e tudo estava muito, muito seco, sem ver água significativa desde novembro do ano anterior.
O incêndio foi combatido por brigadas profissionais e voluntárias por dias e dias, sem sucesso. Os aviões não paravam de jogar água no fogo em voos intermináveis e reabastecimento ininterrupto. As brigadas estavam exaustas, os pilotos também. As pessoas entravam em choque a cada notícia de cidades queimando, de casas sendo destruídas… e o medo de serem as próximas vítimas ia crescendo. As lavouras, já muito secas, foram arrasadas pelo fogo. A solução veio de uma chuva absolutamente anormal para aquele período do ano. Uma “trovoada” histórica, como uma providência divina, que choveu em toda a Chapada como só acontece nos meses de novembro, dezembro e janeiro. Era tão milagroso que as manifestações de agradecimento aos diferentes santos e santas da região foram organizadas espontaneamente e carregaram centenas de milhares de pessoas para as ruas em um gesto de fé nunca visto antes. Crentes e não crentes acreditaram que foram salvos pela graça divina.
Fernando era menino e contou à neta Nara, 70 anos depois, como tinha ficado aliviado de ver sua ecovila e plantações completamente salvas em meio à devastação. Antônio, o pai dele explicara que a comunidade tinha ficado à salvo do fogo por ter aumentado a umidade com um número significativo de pequenos e grandes tanques de água e com as florestas regeneradas e agroflorestas que tinham criado. Mais também pelas grossas plantações de cactáceas nas cercas da propriedade coletiva, e a estrada que contornava quase toda a área. É verdade que o vento também ajudou, não empurrando muito o fogo para a direção da Serra, já que alguns vizinhos tinham sido atingidos. Com as colheitas perdidas e o dinheiro escasso, as pessoas da região passaram por momentos desesperadores e de muita migração em busca de possibilidades em outros lugares, mas o caos estava se instalando por todo lado.
Depois desta experiência, Fernando passou um tempo de maravilhamento com os super-heróis da Serra que mantiveram a comunidade a salvo do fogo. Entretanto, após a primeira invasão e o roubo dos armazéns, ele se sentiu desprotegido por sentir fome, como nunca experimentara. Não era exatamente uma fome de não ter nada para comer, era uma fome de comer a mesma coisa insossa todo dia, já que só as raízes e os vegetais verdes tinham sobrado da primeira invasão e tiveram que comer isto até a nova colheita. Replantaram tudo, reconstruíram tudo, até serem novamente invadidos. Os métodos foram outros, muito mais organizados e violentos neste segundo evento, assim como no terceiro. Não era mais possível ficar ali.
A mudança pra Serra da Serra foi planejada minunciosamente. Vendiam o que era possível, levaram ferramentas e víveres e se deram o tempo, através das fundadoras e fundadores, de conhecerem e construírem as condições de vida naquele universo pedregoso, lindo e molhado do alto das serras. Como conseguiram deslocar cerca de 80 pessoas entre adultos e crianças paro o alto da serra com todas as suas tralhas para viver sem que ninguém descobrisse é até hoje um mistério, sobretudo nas condições em que o fizeram: a pé, subindo escarpas espantosas. Muita solidariedade foi necessária para levar os velhos e as crianças menores. O medo e a esperança lhes empurravam, pois em torno deles a devastação do fogo e do caos social mostravam que não haveria mais vida possível onde estavam. As mudanças climáticas já teriam sido suficientes para aniquilar um modo de viver, mas a estupidez humana fez com que uma guerra mundial se estabelecesse ao mesmo tempo.
Na verdade, poucos países entraram em guerra realmente: aqueles que lutavam pela supremacia. A velha supremacia guerreava com a nova, mas todas as nações foram afetadas com a guerra. O comércio internacional praticamente parou, as instituições se fragilizaram em todo o mundo, os esforços de guerra fizeram crescer absurdamente a exploração dos recursos naturais para produzir armas, tanques, satélites, drones, e não comida. Junto com a imprevisibilidade e mudanças no clima, a agricultura foi se tornando inviável, os preços crescendo e a fome rondando. A Europa, mais uma vez, foi o palco principal da guerra e o extremo oriente o palco secundário. Com os EUA e a China envolvidos na guerra até o pescoço, as indústrias que abasteciam o mundo foram parando e a tralharia consumista que circundava os mares deixou de navegar.
Enquanto o velho mundo desmoronava, ele engendrava um herdeiro monstruoso: a vida sintética. Os centros de pesquisa da internet e da inteligência artificial se multiplicavam e funcionavam a todo o vapor e a guerra cibernética era tão ou mais importante que os campos de batalha. Quando um centro destes era destruído pelo fogo inimigo, ele transferia automaticamente suas pesquisas aos demais numa perfeita rede de cooperação. A tecnologia dava passos largos em meio à destruição e a automação substituía os humanos na guerra e na produção, gerando artificialmente o que a Natureza tinha produzido milênios à fio: comida sintética, cônjuges sintéticos, casas sintéticas que davam a sensação a quem vivia em 40 m2, de viver em 200. Para fugir da guerra, das catástrofes climáticas e do caos, uma parte significativa da humanidade ficou presa a um mundo inventado.
Enquanto isto, do outro lado da vida real, principalmente nas áreas mais periféricas do mundo, o cotidiano quase voltava à era pré-industrial. Voltava-se a produzir alimento de verdade nos quintais e áreas vazias das cidades, a cozinhar com lenha, ao escambo de materiais, a construir tudo com materiais locais, a usar animais para o transporte…só a internet continuava realmente disponível, mesmo que com grandes solavancos. A comunidade da Serra da Serra estava neste lado da realidade e a antena que tinham instalado no alto do alto da serra servia a lhes manter – quando queriam – informados sobre o mundo apesar de estar fora dele. Nara, como guardiã do passado, não se interessava muito pelo presente, mas seu irmão Artur era parte da equipe de conexão.
O milagre destes tempos foi o acordo de não uso de armas nucleares. Negociadores de ambos os lados passaram tanto tempo juntos para chegarem a um acordo para que o nuclear ficasse fora da guerra que foi a confiança que construíram entre si que garantiu o respeito à regra. Lógico, e o medo do fim de tudo. Ficaram amigos e amigas e deram suas palavras. Foram estas forças aparentemente tão frágeis, a amizade e a palavra, que garantiram que a guerra não acabasse a humanidade subitamente, como as mudanças climáticas estavam fazendo aos poucos.
Para Antonio e Anita e os dois outros casais fundadores da Serra da Serra, o tempo de instalação foi extremamente duro. Viviam em um lugar encantador, mas selvagem e que não oferecia condições mínimas de subsistência. Trouxeram ferramentas, mantimentos e sementes e tiveram que construir não só uma casa para si, mas uma casa comunitária para os que vieram em seguida e plantações para dar comida a todo mundo. Assim foi o procedimento: cada grupo chegava tendo um lugar para morar e construía a residência dos próximos. Com pedra e madeira, abundantes na região, em um ano já havia quatro casas e 26 pessoas, assim como hortas, pomares e plantações de cereais. As placas solares vieram logo e aos poucos voltaram a ter o conforto da energia elétrica, inclusive para acesso à internet. Mas trazer as instalações diversas, desde a produção de combustível para as máquinas às engrenagens que facilitavam o dia a dia comunitário foi uma verdadeira epopeia.
Os desafios eram três: desmontar tudo em peças pequenas, migrar desapercebidos pela vizinhança e subir a escarpa da alta serra carregados com tantas tralhas. Tiveram que estabelecer um acampamento de descanso, uma engenharia discreta e potente para içar elementos sem serem percebidos. As crianças eram outro desafio: curiosas e alegres, faziam muito barulho, muitas perguntas e arriscavam colocar tudo a perder. Mas eram também o motivo pelo qual todes queriam migrar: protegê-las, criar um mundo bom e seguro para elas. Fernando estava entre as crianças que migraram primeiro e construíram um modo de vida infantil lá naquelas alturas permitindo que as demais crianças se adaptassem facilmente.
O modo meio isolado com que a comunidade da Serra viveu ajudou muito a manter a ordem e a discrição no período de transferência. Elas e eles não tinham pessoas empregadas vindas de fora, apenas ajuda ocasional em tempos de maior trabalho. Eram extremamente organizados em sua autonomia, portanto, a governança da transferência se deu sem traumas, com cada grupo esperando sua hora definida coletivamente segundo critérios aprovados por todes. Diziam aos vizinhos que as pessoas da comunidade estavam desistindo de viver em condições tão difíceis e estavam voltando para as cidades grandes de origem e assim explicavam o esvaziamento da ecovila. E assim a Serra ia se despovoando e a Serra da Serra ia se povoando. Deslocaram-se aos poucos e carregaram consigo um modo de vida sóbrio, cooperativo, ecológico e trabalhador.
Nos altos da serra o trabalho era duro, mas a interação com o mundo externo que existia em baixo foi substituída por um aprofundamento do modo de vida “não material” na Serra da Serra. O mundo de desconsumo e poucas coisas que tinham construído na Serra, evoluiu por um mundo com ainda menos coisas e ainda mais busca cultural e espiritual. Já a segunda geração de moradores de Serra da Serra tinha habilidades não convencionais muito superiores aos pais. Livres da escola tradicional e das distrações do velho mundo, as crianças eram educadas para o Bem Viver: a afetividade, o autoconhecimento, a conduta altruísta, as decisões e tarefas partilhadas, os rituais de conexão com a Natureza. Assim, desenvolviam seus potenciais criativos e intuitivos, permitindo até o desenvolvimento primitivo da telepatia, por exemplo, como novo modo de comunicação entre elas.
Eram como novas tribos indígenas, carregando o melhor das populações “civilizadas”: o respeito à individualidade e às escolhas de cada pessoa, a igualdade de gênero e a escuta aos jovens, o conhecimento de técnicas e ferramentas que facilitam a vida, a governança participativa onde todes tinham lugar e não apenas os mais velhos. Este renascer para a vida tribal em comunidade na Natureza guardava o positivo de dois mundos e a comunidade de Serra da Serra sabia disto, preparando-se para, em algum momento, quando a paz e estabilidade voltassem, partilhar ao vivo com comunidades externas o que tinham aprendido nesta fusão.
Não havia um cacique, mas lideranças de serviço circulares e grupos de trabalho, e círculos de discussão por tema entre pessoas mais afins com determinados assuntos essenciais ligados à vida cotidiana. A assembleia comunitária era sempre assessorada por quem dedicava à vida a determinadas tarefas: como educar as crianças, melhorar a produção agrícola, manter a saúde das pessoas, resolver conflitos internos, partilhar os recursos e planejar o futuro, por exemplo. Não havia um pajé, mas diversos tipos de sábias e sábios que serviam à comunidade e tinham autoridade em seu serviço ao coletivo. A história da tribo era contada oralmente e por escrito pela guardiã da História, hoje o lugar que Nara ocupa, as manifestações culturais e rituais eram organizadas pelas pessoas que manifestavam talento para isto desde cedo. Cada pessoa que nascia era celebrada no serviço que prestaria e na forma de Vida que possuía, cada pessoa que morria tinha o agradecimento de todes e se despedia para se encontrar depois, em outros mundos, como acreditavam.
O primeiro século do terceiro milênio tinha assim sido turbulento e destrutivo, mas tinha engendrado uma nova civilização em bolsões perdidos no planeta, como na Serra da Serra. Enquanto o velho mundo vivia a penúria, a separação e a guerra, estes novos mundos aprendiam a viver em paz, com a firme convicção de que tudo está conectado e que cada gesto individual pesa no todo. A ciência mais avançada do milênio concordava com as tradições ancestrais, dizendo que tudo vibra e interfere no todo vibratório, construindo assim a vida material. O povo da Serra da Serra estava atento aos próprios pensamentos e sentimentos tanto quanto às suas ações, para que a clareza, a paz e a harmonia conseguida no campo sutil se refletissem no mundo material que estavam construindo.
Outras comunidades ao redor do mundo também viviam este paradigma emergente, tão mais feminino e colaborativo, tão mais espiritualizado e inteligente: um mundo de igualdade e senso de propósito, um mundo mais adulto onde cada pessoa buscava fazer sua parte para construir o Todo conectado. O panorama do velho mundo mostrava a enormidade do problema criado pelo paradigma infantil da separação: salvadores da pátria se sucediam prometendo resolver os problemas climáticos e da guerra, em disputas intestinas pelo poder e resultados pífios. As “massas” viviam na ilusão de que alguém resolveria seus enormes problemas e se refugiava no fanatismo religioso e nas ilusões criadas pela inteligência artificial, particularmente os mundos ilusórios de felicidade imaginária e de culpados malvados perseguidos e presos. Ao não se responsabilizar sobre seu destino, ficavam presas na roda infantil da dependência.
Mas cada vez mais gente questionava este estado de coisas, se rebelava, se afastava desta realidade dura e fantasiosa ao mesmo tempo. As mentes se rebelavam contra a ditadura da razão e percebiam que a sabedoria dos mitos era tão explicativa dos mundos, quanto a física quântica ou a física multiverso. E queriam mais intuição e arte. As emoções permitiam a libertação pela clareza de que tristeza fabricava tristeza, opressão fabricava maldade, baixa estima fabricava doença, vazio fabricava superficialidade, ódio fabricava guerra. E queriam mais alegria e amor. Os corpos ensinavam que o que se come, o que se sente, onde se vive, como se move, como se dorme e respira determinam a saúde ou a doença. E queriam leveza, Natureza e afetividade. E a alma ensina que sem perceber que tudo está interligado no contínuo vibratório que anseia por evoluir cada pessoa não encontra seu lugar na teia do mundo onde cada uma e cada um tem seu propósito e lugar sagrados.
E assim, quem buscava alternativa acabava por encontrar caminhos próprios e até mesmo estas experiências inovadoras, as comunidades que se escondiam para sobreviver. Encontrar um mundo assim, inteiro e real funcionando de forma tão simples, pacífica e alegre era um bálsamo para quem tinha a felicidade de tal encontro. Era um renascer de esperanças, era um portal de possibilidades. E a comunidade de Serra da Serra sabia disto. Assim como muitas outras. Estavam esperando há muito tempo o momento certo para se mostrarem e agora que o mundo externo em declínio já não era tão grande ameaça, chegava a hora. Já tinham tentado muitas vezes, de modo isolado, mas recuaram em nome da própria segurança. Agora, preparavam-se para agir em conjunto, inundando o mundo com verdades simples que testemunhavam no cotidiano: a vida é muito mais que matéria; o amor se constrói em cada gesto; a Natureza é a Mãe Sagrada; o feminino e o masculino são almas complementares que se manifestam muito além do gênero biológico; a diversidade é a fonte de toda riqueza… e tantas coisas óbvias assim…
A conexão entre as comunidades alternativas e tribais sempre existira na grande rede virtual de informações, mas sem se mostrar ao grande público. Nas camadas profundas da internet, pessoas renovavam relações que um dia tinham existido de forma real antes do colapso, ou nutriam relações novas, tecidas virtualmente ao longo das décadas. O comitê de conexão era uma realidade em quase todas as comunidades, aperfeiçoando tecnologias, avaliando riscos de serem descobertos e assim perseguidos e até destruídos. A comunicação virtual era uma face material de uma comunicação mais profunda, de certa forma telepática, de valores, modos de vida, aprendizados, contações de histórias, e até histórias de amor. Fora assim que Artur conhecera Nzumba, virtualmente, e que o romance se desenvolveu de modo rocambolesco, entre dois membros de equipes de conexão de uma comunidade brasileira e outra angolana.
Artur partilhava com a rede de comunidades alternativas as histórias contadas por Nara sobre sua própria comunidade, além de tratar das questões técnicas da conexão em rede na internet profunda. Nzumba era a guardiã da história de sua comunidade Malungo e, ao contrário de Nara, era também apaixonada por tecnologia. Com Artur contando as histórias da irmã, a paixão virtual se estabeleceu entre os dois e fez Artur atravessar o oceano – apesar de todos os perigos e dificuldades destes tempos – para encontrá-la e trazê-la para a Serra da Serra. Após peripécias dramáticas e toques românticos eles hoje, juntos no Brasil, avaliavam no horizonte o momento de trazer ao mundo a existência quase mítica destas comunidades do Bem Viver. Malungo e Serra da Serra, como milhares de outros ajuntamentos humanos tinham inventado modos excêntricos de vida, tão diversificados e tão iguais em sua essência de serem alternativa à guerra e ao colapso climático.
De modo afetuoso, as comunidades regenerativas buscavam contatos com os rebeldes que ainda viviam no velho mundo e se empenhavam em construir alternativas ali mesmo onde viviam. De modo articulado elas escreviam suas histórias de resistência, num grande bordado de criatividade humana em face à barbárie que precisava ser conhecido para desmascarar a mentira de uma realidade fake criada para iludir. De modo cooperativo elas teciam laços econômicos e culturais de forma discreta e contínua para se reforçarem mutuamente. De modo virtual elas ajustavam seus planos de “invadir” o velho mundo a um só tempo, de modo que a sua existência múltipla e esperançosa não deixasse dúvida de que era real. De modo concreto elas se preparavam para receber com asa e comida aqueles que quisessem vir reforçar a grande reconstrução e testemunhar que outro mundo era possível.
O grande teatro multilíngue e multicor estreou no mundo no mesmo dia, ao cair da tarde, em diferentes horas nos cinco continentes. A comunidade de Serra da Serra desceu das alturas em pequenos grupos para estrear em diferentes cidades: música, dança, alegria, figurinos, sorrisos. Em muitos lugares da Terra estes excêntricos vieram mostrar o que tinham construído ao longo de um século de retiro. Era o dia 18 de agosto de 2146: no inverno do Sul e no verão do Norte a festa foi inesquecível. As cenas inesperadas de simples alegria, autenticidade e cor, em teatros narrando as peripécias de cada comunidade para sobreviver e prosperar mostrava ao mundo que a busca evolutiva humana nunca tinha desaparecido. Que retirar-se do mundo tinha sido uma força construtiva permitindo que outras realidades se desenvolvessem. No tempo em que o mundo tradicional se digladiava e refugiava-se na realidade fake em face à destruição, os mundos novos estavam se gestando na Natureza regenerada, nas relações igualitárias e amorosas, no poder partilhado, necessidades básicas garantidas a todes.
A receptividade calorosa das pessoas que enfrentavam o velho mundo de dentro dele permitiu que a festa se expandisse rapidamente em todo lugar do pequeno grupo original vindo de fora para atingir mais e mais pessoas curiosas, espantadas e encantadas. A notícia correu o mundo com imagens e histórias tão diversificada quanto iguais. A afluência da juventude foi espantosa: de onde saiam estes anjos caídos que mostravam portas de diferentes céus na terra? Como não se empolgar com tanta alegria sã, com tanta autenticidade e beleza? Como nos tempos em que os circos carregavam com eles novos sonhadores e artistas, as caravanas voltavam pros seus ninhos cheios de novos membros que queriam descobrir o jeito de viver que transbordava arte, leveza e partilha junto ao trabalho duro de se responsabilizar por seu próprio seu sustento, pela realização de seus próprios sonhos. Neste dia, em que o velho mundo já claudicava em suas próprias contradições e fragilidades, a esperança que germinava e prosperava há décadas carregou multidões.
Pouca coisa será um conto de fadas a partir daqui, mesmo com as comunidades reforçadas em gente e ideias novas que resistirão aos esforços de aniquilação até vencer completamente. Nara, a guardiã da história de Serra da Serra contará aos seus filhos e netos a coragem da sua linhagem de recomeçar e com isto mostrará o caminho para quem virá depois. Outras tantas e tantos guardiões ao redor do mundo continuarão contando os antecedentes de 2146 e de como a história se desenrolará a partir do grande teatro mambembe planetário de hoje. De agora em diante as histórias da resistência e regeneração se entrelaçarão definitivamente: já não são comunidades alternativas isoladas, mas uma teia de muito sonhos construídos coletivamente e mais do que nunca conectados. Trazem consigo a grande força que move a engrenagem evolutiva do mundo: a busca de coerência, amor e alegria. Coerência entre o que se diz, o que se sente e o que se faz. Alegria de ser inteiro. E de serem assim junto a outros e outras, amorosamente.