Este artigo foi escrito pelo enviado especial da PRESSENZA à Ucrânia, o nosso repórter Mauro Carlo Zanella.
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18.08.24 – Kiev, Ucrânia – Mauro Carlo Zanella

Kiev é uma cidade muito grande e bonita, arrumada, limpa, com igrejas, edifícios antigos, alguns com uma clara influência soviética e, não por último, arranha-céus muito modernos.

Cheguei no sábado, dia 17 de Agosto, às 5h30 da manhã, depois de o motorista, não podendo chegar ao destino antes do recolher obrigatório, ter feito uma longa paragem nos arredores da cidade e ter chegado à estação de autocarros, que fica ao lado da estação de comboios, exatamente no fim do recolher obrigatório. A estação já estava movimentada, com muitos autocarros e miniautocarros a chegar e a partir. Poucos falavam inglês, mas todos aprendemos a usar as aplicações dos nossos telemóveis para ajudar nas traduções se os sinais que fazemos não forem suficientes.

Não consigo encontrar o meu hotel; um homem acompanha-me e, quando repara que o meu telemóvel está quase sem bateria, quer ir buscar o seu para mo emprestar. Eu dissuadi-o, agradecendo-lhe calorosamente, pois há um bar do outro lado da rua onde paro durante várias horas para recarregar o meu telemóvel e o meu powerbank. É um bar gerido por dois jovens muito simpáticos, com uma pequena loja adjacente que vende produtos orientais do tipo New Age. Os preços são um terço ou um pouco mais caros do que os nossos.

A vida é absolutamente normal: trânsito privado ininterrupto, elétricos e autocarros a circular regularmente, aluguer de bicicletas e de trotinetas elétricas, ciclistas, a estação de comboios cheia de gente. Tudo parece absolutamente (e, para mim, irrealisticamente) calmo: mercados, lojas e supermercados bem abastecidos, pessoas a fazer compras, a comer gelados, a passear no jardim onde as crianças brincam no parque infantil. Um panfleto anuncia o desaparecimento de um gato, três jovens tatuadas e de cabelo pintado fazem um piquenique na relva… A guerra está por ali, mas não se vê.

Paradoxalmente, em Roma, à volta dos monumentos, dos palácios estatais e das embaixadas, veem-se muitos mais soldados camuflados e com armas de guerra, absolutamente inúteis e imprestáveis para a cidade.

Aqui, recorda-se que há uma guerra em curso: porque, ao contrário do que aconteceu durante a minha viagem, se veem agora homens, embora a maioria vestidos de camuflado e talvez de licença; porque a cidade está cheia de lojas onde muitos homens prestes a partir ou já alistados preferem abastecer-se em privado do seu equipamento militar; e, finalmente, por causa dos cartazes de propaganda que muitas vezes substituem os cartazes publicitários. Para além dos militares, podem ver-se trabalhadores fardados (polícia, trabalhadores do ambiente, etc.), ou jovens e velhos, demasiado jovens ou demasiado velhos para terem de se alistar na tropa.

A tudo isto devo acrescentar que algumas vezes ouvi o som da sirene ao longe e por breves instantes. Talvez fosse um falso alarme, mas de qualquer forma ninguém lhe ligou e, antes que eu pudesse tomar alguma decisão, já tudo tinha acabado.

Como em Roma e em Itália, a vida decorre normal e tranquilamente, como se a guerra na Ucrânia e o genocídio em Gaza não nos preocupassem, como se a degeneração, mesmo que por engano, desta guerra travada na Ucrânia entre a OTAN (que fornece as armas) e a Federação Russa, não expusesse também as nossas cidades europeias a possíveis represálias, e como se o massacre em Gaza não tivesse acontecido com o nosso apoio (uma vez que não votámos na ONU a favor dum cessar-fogo e, em vez disso, até recebemos com todas as honras o Presidente israelita – um criminoso de guerra!).

É por isso que também “detesto os indiferentes”, como nos ensinou Antonio Gramsci. Porque, que fique claro, é preciso viver, e a mente deve também pensar noutras coisas, porque, felizmente, a beleza, a música, o riso das crianças e a bondade são um antídoto para o horror e um desafio para a morte.

Por isso, impõe-se sempre a vontade de viver, de todas as maneiras, possivelmente com a consciência de assim desafiarmos a morte e a guerra. O importante é recarregarmo-nos e fazermos — ou pelo menos tentarmos fazer — algo  para não cairmos na cumplicidade.


Tradução do espanhol por Vasco Esteves para a PRESSENZA