Por Carlos Matos Gomes (*)

Na visita de Netanyahu a Washington, nos mimos trocados entre este e Joe Biden, o primeiro-ministro de Israel recordou a defesa do sionismo que Biden faz desde o inicio da sua carreira, há 50 anos, e também o facto de Biden ter conhecido todos os primeiros ministros de Israel desde Golda Meir, ao que Biden respondeu que é um orgulhoso sionista.

As visitas de estado e afirmações têm traduções para o mundo. Esta é uma visita de um governador colonial ao imperador metropolitano e o sionismo é uma ideologia racista e colonialista.

Enquanto ideologia, o sionismo começou por ser um movimento do tipo milenarista surgido no final do século dezanove e, como acontece com os movimentos milenaristas, num contexto político de incerteza que iria desembocar na Grande Guerra. Era um movimento do tipo do sebastianismo ou da busca do El Dorado. Era e é um movimento a-histórico, que inventa uma história a partir de efabulações e fantasias. Nunca existiu um Estado Judaico. A primeira referência à Palestina é de Hérodoto de 450 anos AC, segue-se a Palestina dos Selêucidas (175AC) que são derrotados pelos romanos e a Palestina é integrada no seu império, as elites locais integram a cultura helénica, e vivem sob o império de Roma até três séculos depois de Cristo, quando passam ao domínio de Bizâncio. Três séculos depois, (630) ocorre a conquista árabe, os cruzados cristãos europeus chegam em 1099, o império otomano (turco) instala-se na Palestina em 1500 e é substituído pelo império inglês após a I Grande Guerra, sendo então governada num regime de mandato da Sociedade das Nações.

O sionismo, de movimento milenarista passa a integrar o movimento do colonialismo dentro do mesmo princípio que presidiu à ocupação de África pelas potências europeias na Conferência de Berlim, no final do século dezanove e no âmbito da revolução industrial. A Palestina é a chave que controla todo o Médio Oriente, e este é a região mais rica e de mais barata exploração de uma matéria-prima essencial para as potências europeias: o petróleo. É, foi, a posse de matérias-primas essenciais aos europeus que se encontra na base do colonialismo e das suas obras.

O sionismo passou de uma bizarria de uns lunáticos nacionalistas a movimento utilizável para as potências industrializadas rentabilizarem os seus investimentos, dos quais os mais importantes são o Canal do Suez, os portos na entrada e saída no Mediterrâneo e no Mar Vermelho, e os caminhos de ferro (todos investimentos europeus) e o acesso garantido, seguro e barato das suas companhias petrolíferas.

O sionismo que dá origem a Israel, é, geneticamente, uma justificação de superioridade rácica para um grupo ocupar um território e dele extrair as riquezas, sujeitando os nativos. É uma doutrina colonialista, como a do apartheid. Israel é uma colónia que começa por ser inglesa e que passa para o domínio dos Estados Unidos na transferência de poder que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial. Num processo nubloso como é comum nas relações do Reino Unido e que acabou nas mãos das Nações Unidas, por sua vez nas mãos do Reino Unido e dos Estados Unidos e com a conivência da União Soviética. A colónia de Israel convinha a todos os envolvidos na Segunda Guerra e os palestinianos não contavam — até podiam ser acusados de colaboracionistas com os nazis.

O colonialismo foi considerado como uma doutrina contrária aos Direitos Humanos pela Declaração adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960: DECLARAÇÃO SOBRE A CONCESSÃO DE INDEPENDÊNCIA AOS PAÍSES E POVOS COLONIAIS. A Assembleia Geral, que afirma entre outras proclamações: “ Reconhecendo que os povos do mundo desejam ardentemente o fim do colonialismo em todas as suas manifestações; Convencida de que a manutenção do colonialismo impede o desenvolvimento da cooperação económica internacional, entrava o desenvolvimento social, cultural e económico dos povos dependentes e milita contra o ideal de paz universal das Nações Unidas; Afirmando que os povos podem, para os seus próprios fins, dispor livremente das suas riquezas e recursos naturais, sem prejuízo de quaisquer obrigações decorrentes da cooperação económica internacional, com base no princípio do benefício mútuo, e do direito internacional; E acreditando que o processo de libertação é irresistível e irreversível e que, para evitar graves crises, deverá pôr-se fim ao colonialismo e a todas as práticas de segregação e discriminação a ele associadas […]; Convencida de que todos os povos têm o direito inalienável à liberdade plena, ao exercício da sua soberania e à integridade do seu território nacional; Proclama solenemente a necessidade de pôr fim ao colonialismo, sob todas as suas formas e manifestações, de forma rápida e incondicional.

O Estado de Israel foi uma construção feita à medida dos interesses de estados estrangeiros, que, no caso do Reino Unido, administrava a Palestina sob mandato internacional e esse mandato não incluía a autorização, nem a delegação de competências em qualquer instituição para a criação de um estado no território de povos que milenarmente o ocupavam, o que não era o caso da vaga de estrangeiros que invocavam uma religião comum, o que era aplicável aos muçulmanos e a cristãos e um direito divino atribuído pelo Deus que haviam criado a terem aquela como a terra prometida e de onde antepassados seus, como antepassados de romanos, de semitas, de egípcios de persas e árabes haviam saído.

Afirmar-se um orgulhoso sionista é afirmar-se um orgulhoso racista — o sionismo assenta na crença da superioridade do povo eleito — e um orgulhoso colonialista: a ocupação da Palestina por colonos que defendem na colónia os interesses da metrópole. E esta é a política do imperador e do império, à margem e em oposição à Carta das Nações Unidas, reafirmada por Joe Biden. Por isso Gaza e os palestinianos estão a ser eliminados e arrazados, como os povos índios foram.

O facto do sionismo ser um fenómeno político assente no racismo e no colonialismo não anula as vantagens que a existência de Israel como colónia tem para o Ocidente Global. Israel é útil para controlar os preços do petróleo, e de todas as mercadorias vindas da Ásia. É útil como campo de experiências de alta tecnologia militar e de controlo do espaço na região e como fator de desestabilização utilizável quando conveniente. Funciona como um lacrau que o Ocidente ali tem debaixo de uma pedra e que solta quando lhe interessa.

Mas a utilidade de Israel não anula as duas bases da sua existência, a do racismo e a do colonialismo. Que o velho imperador tenha confessado os seus princípios no momento em que o despedem é um ato que tanto pode ser interpretado como de dignidade, como de perversidade, quem o substitui não pode ser menos sionista que ele, e menos desrespeitador das convenções internacionais que ele se quer manter a útil colónia no Médio Oriente.

As acusações de criminoso a Netanyahu são contra a natureza das coisas, jamais um governador colonial foi demitido por excesso de dureza na imposição do poder imperial, mas sim por fraqueza na ação de domínio. Os dois Herodes, pai e filho, o Grande e o Antipas, que governaram a Palestina em nome dos romanos são um exemplo, o violento pai, Herodes o Grande, foi um fiel servidor dos romanos e o filho Antipas, que já não conseguiu manter a ordem na Palestina foi substituído. Netanyahu conhece a História e daí o seu ar confiante e sorridente.

(*) Carlos Matos Gomes é em Portugal um dos mais conceituados militares e historiadores da guerra colonial. Nasceu em 1946. A sua carreira militar iniciou-se em 1963. Cumpriu comissões durante a guerra colonial em Moçambique, em Angola e na Guiné, nas tropas especiais Comandos. Na Guiné foi um dos fundadores do Movimento dos Capitães e participou na primeira Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA) que organizou a revolta militar de 25 de Abril de 1974, a qual trouxe a liberdade e a democracia a Portugal e a independência de todas as colónias africanas. Militar no ativo até 2003, é atualmente Coronel na situação de reserva. Desenvolveu também uma carreira literária, com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz.


Leia o artigo original aqui