Somos ex-funcionários do governo dos EUA que renunciámos aos nossos cargos nos últimos nove meses devido às nossas graves preocupações com a atual política dos EUA, quer em relação à crise de Gaza quer em relação à Palestina e a Israel dum modo geral. Somos especialistas no campo da interação entre diferentes agências. Somos uma comunidade multirreligiosa e multiétnica de profissionais e de patriotas dedicados a servir os Estados Unidos da América, seu povo e seus valores. Seja na função pública, no serviço externo, nas forças armadas, ou na qualidade de nomeados políticos, cada um de nós fez um juramento de proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos e, agora que a nossa nação celebra o seu dia da Independência, cada um de nós lembra-se de ter renunciado ao governo, não para terminar esse juramento, mas sim para poder continuar a cumpri-lo, não para acabar com o nosso compromisso com o serviço prestado mas para o alargar.

Cada um de nós, em nome pessoal. tomou a sombria e difícil decisão de renunciar com base nas circunstâncias individuais que encontrámos em momentos diferentes durante estes últimos nove meses, enquanto desempenhávamos as nossas tarefas específicas. Mas hoje estamos unidos na crença comum de que é nossa responsabilidade coletiva erguer a nossa voz.

A política do nosso Governo em Gaza é um fracasso e uma ameaça à segurança nacional dos EUA. A cobertura diplomática dos Estados Unidos e o fluxo contínuo de armas para Israel, cimentaram a nossa inegável cumplicidade com os assassinatos e a fome forçada de uma população palestina sitiada em Gaza. Isso não é apenas moralmente repreensível e uma clara violação do Direito Internacional Humanitário e das leis dos EUA, mas também colocou um alvo nas costas do nosso país. Esta política intransigente coloca em risco a segurança nacional dos EUA e a vida dos nossos militares e diplomatas, como já ficou evidente com a morte de três militares dos EUA na Jordânia em Janeiro e com a evacuação de instalações diplomáticas no Médio Oriente, e também representa um risco de segurança para os cidadãos americanos no país e no estrangeiro. Apesar disso, as escolhas do nosso Governo não foram corrigidas. Os interesses políticos e econômicos da nossa nação foram significativamente prejudicados em toda a região, a credibilidade dos EUA foi profundamente prejudicada em todo o mundo precisamente num dos momentos em que mais precisamos dela, pois o mundo atual se carateriza por uma nova era de concorrência estratégica.

E, o que mais grave: essa política fracassada não atingiu os seus objetivos declarados—não tornou os israelenses mais seguros, pelo contrário encorajou os extremistas, ao mesmo que foi devastadora para o povo palestino, garantindo um circulo vicioso de pobreza e desesperança, com todas as implicações para as gerações vindouras. Sendo nós um grupo de americanos dedicados ao serviço do nosso país, insistimos para que trilhemos outro caminho. Nesta Declaração, descrevemos a crise atual, explicamos o que vimos, e dirigimo-nos diretamente ao governo Biden com propostas de políticas que, com base em nossa ampla experiência na administração, acreditamos que devam ser adotadas, inclusive para garantir que nunca mais aconteça um fracasso tão catastrófico das nossas políticas como este . Finalmente, mas com a mais profunda devoção, dirigimo-nos aos milhares de pessoas honradas que ainda diariamente continuam a lutar no governo com difíceis escolhas morais e pessoais.

A crise atual

As escolhas políticas dos EUA geraram um desastre. Em primeiro lugar, a crise humanitária catastrófica e em rápida escalada que o governo israelense criou para o povo palestino, para quem os erros da tinta da burocracia norte-americana foram pagos com o sangue de homens, mulheres e crianças inocentes. Até à data, mais de 37.000 Palestinos foram mortos, a grande maioria das infraestruturas civis e humanitárias foi destruída, milhares de pessoas inocentes continuam desaparecidas sob os escombros e milhões continuam a enfrentar uma fome fabricada devido às restrições arbitrárias de Israel aos alimentos, à água, aos medicamentos e a outros bens humanitários críticos. No entanto, em vez de responsabilizar o governo de Israel pelo seu papel de impedir arbitrariamente a assistência humanitária, os EUA cortaram o financiamento ao maior fornecedor de assistência humanitária em Gaza: a UNRWA, a agência das Nações Unidas para os palestinos.

Em segundo lugar, notamos com profunda preocupação e tristeza que a política dos EUA durante muitos anos, mas particularmente desde Outubro de 2023, não só contribuiu para um imenso dano humanitário, mas também falhou quando comparada com a sua própria intenção declarada: contribuir para a paz e a segurança de todos no Médio Oriente, e particularmente a de Israel. Em vez de usarmos nosso imenso poder de influência para estabelecer barreiras que possam guiar Israel em direção a uma paz duradoura e justa, facilitamos suas ações autodestrutivas que aprofundaram seu atoleiro político e contribuíram de forma duradoura para seu isolamento global; não é possível nenhum acordo regional, nenhum entendimento com regimes autocráticos, nenhuma medida diplomática que possa proporcionar segurança real a Israel que não passe pela concretização do direito palestino à autodeterminação.

Em terceiro lugar, as políticas dos EUA a este respeito têm sido profundamente prejudiciais, não só para as relações dos EUA na região, mas para a nossa credibilidade global, a credibilidade dos valores dos EUA e a credibilidade do Ocidente —uma situação particularmente perigosa no contexto desta era de concorrência estratégica. Não só infligimos danos profundos e duradouros às nossas relações em toda a região e desestabilizamos o Médio Oriente, como também as nossas políticas em relação à Gaza levaram-nos a duplicar o nosso apoio a autocracias regionais frágeis como forma de nos protegermos da opinião pública. Enquanto isso, no cenário global, quem não nos vê como hipócritas quando os Estados Unidos condenam os crimes de guerra russos, ao mesmo tempo que armam e desculpam incondicionalmente os de Israel? Quem não ri agora quando o Secretário de Estado Blinken descreve a “ordem internacional baseada em regras”, e simultaneamente mina essa mesma ordem em favor de Israel? Uma verdadeira tragédia, depois das décadas em que os americanos andaram a construir essa ordem.

Como isto deu errado?

Cada um de nós viveu a sua própria experiência com as falhas em cascata nos processos de liderança e da tomada de decisões que caracterizaram a resposta intransigente desta administração a esta calamidade sem fim. Tomados em conjunto, temos um quadro de problemas sobrepostos e sistêmicos na abordagem política desta administração, e uma série de advertências que não foram atendidas:

Em nossa experiência coletiva, vimos durante anos o silenciamento das preocupações sobre a história das violações dos direitos humanos por parte de Israel, o fracasso do processo de Oslo e da política dos EUA em geral. Vimos o debate ser silenciado no governo; vimos factos distorcidos; vimos leis contornadas e deliberadamente ignoradas, mesmo até violadas; e advogados a trabalhar horas extraordinárias para evitar a aplicação fiel da lei. Vimos os Estados Unidos, num processo virado do avesso, a apressarem-se a armar Israel, mesmo quando os civis são massacrados com armas dos EUA, e os esforços para partilhar informações com Israel contribuíram para essa catástrofe. Vimos protestos pacíficos serem vítimas de acusações rancorosas de antissemitismo e serem esmagados com violência, enquanto uma administração que anteriormente lutava pela liberdade de expressão nas universidades permanecia em silêncio. Vimos o apoio incondicional dos EUA às operações militares israelenses em Gaza impossibilitar a defesa dos Direitos Humanos no Médio Oriente e levar os seus defensores regionais a virarem as costas aos nossos diplomatas. Vimos um governo dos EUA que desumaniza tanto os palestinos como os judeus, fazendo das antigas vítimas das suas armas e dos últimos bodes expiatórios a sua máquina de guerra. Vimos uma administração disposta a mentir ao Congresso e um Congresso que ignora a verdade.

Nossas experiências individuais e comuns demonstram uma administração que priorizou a política calculista em detrimento da formulação de políticas justas e equitativas; o lucro em detrimento da segurança nacional; as falsidades em detrimento dos factos; as diretrizes em detrimento do debate; a ideologia em detrimento da experiência; e os interesses especiais em detrimento da aplicação igualitária da lei. O impacto dessas injustiças resultou em dezenas de milhares de vidas palestinas inocentes ceifadas, refletindo uma imagem clara para o mundo de quais vidas têm um valor e quais simplesmente não têm valor nenhum. Nós, como membros do Governo dos Estados Unidos, testemunhámos esta revogação dos valores americanos, o que nos levou a renunciar.

Que deverá ser feito?

  • Um princípio fundamental, e o primeiro passo para corrigir a política dos EUA, é que o governo dos Estados Unidos execute fielmente a lei. É muito claro que a administração está atualmente violando deliberadamente várias leis dos EUA e tentando negar ou distorcer factos, usar brechas ou manipular processos para garantir um fluxo contínuo de armas letais para Israel. Como praticamente todas as organizações internacionais de direitos humanos independentes e com credibilidade puderam identificar, houve violações graves e claras dos direitos humanos por parte de unidades das forças de segurança israelenses, violações essas que começaram já muito antes de 2023, o que deveria obrigar a declarar a inelegibilidade conforme as Leis Leahy. Como várias organizações sérias de ajuda humanitária identificaram, Israel também obstruiu e continua obstruindo arbitrariamente a assistência humanitária financiada pelos EUA, o que deveria desencadear uma suspensão da ajuda militar de acordo com a Seção 620I da Lei de Assistência Estrangeira. Um governo que age acima ou em torno das leis estabelecidas pelos poderes legislativos, não é um governo fiel à Constituição nem aos seus compromissos perante o povo dos Estados Unidos.
  • Em segundo lugar, acreditamos que o governo dos EUA deve usar toda a influência necessária e disponível para encerrar imediatamente o conflito e conseguir a libertação de todos os reféns, sejam eles israelenses sequestrados em 7 de Outubro ou os milhares de palestinos, muitos deles crianças, que se encontram em prisão administrativa israelense sem qualquer acusação.
  • Em terceiro lugar, acreditamos que os Estados Unidos se devem comprometer com o financiamento e o apoio necessários para garantir o alargamento imediato da assistência humanitária ao povo de Gaza e a reconstrução desse território – uma obrigação moral, já que os danos e a destruição até o momento foram causados, na sua maior parte, por armas americanas.
  • Em quarto lugar, consideramos que os Estados Unidos devem anunciar imediatamente que a sua política consistirá em apoiar a autodeterminação do povo palestino e o fim da ocupação militar e dos assentamentos israelitas, incluindo na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental.
  • Em quinto lugar, acreditamos que há uma necessidade urgente de mudança nas culturas e estruturas organizacionais que permitiram a atual abordagem dos EUA. Isto inclui o reforço dos mecanismos de supervisão e de responsabilização no âmbito do Poder Executivo, uma maior transparência no que diz respeito às transferências de armas e às deliberações jurídicas, o fim do silenciamento e da marginalização das vozes críticas e a mudança estatutária através do processo legislativo; comprometemo-nos a trabalhar com os poderes executivo e legislativo para detalhar e prosseguir tais reformas.
  • Por último, acreditamos que a liberdade de expressão está ameaçada neste país, e rejeitamos a pressão política sobre faculdades e universidades, pressão essa que levou a uma resposta policial militarizada contra protestos pacíficos, e apelamos ao Governo dos EUA, incluindo os departamentos de Educação e Justiça, a tomar todas as medidas necessárias para proteger a liberdade de expressão e os protestos não violentos.

A nossa mensagem aos nossos antigos colegas

A vossa voz é importante. Escrevemos-vos com a esperança de que utilizem os vossos cargos para ampliarem os apelos à paz e responsabilizarem as vossas instituições pela violência que se desenrola na Palestina. Agradecemos àqueles que lutam, dia após dia, por políticas justas e equitativas que protejam todas as vidas. Reconhecemos os obstáculos sistêmicos que enfrentam, tanto ao realizarem o vosso trabalho como ao considerarem abandoná-lo. Abraçamos em particular aqueles que representam a diversidade dos Estados Unidos e que sentem que as suas vozes foram destituídas de poder, ignoradas e marginalizadas. Estamos convosco e sabemos que é possível um caminho melhor, mas apenas quando formos suficientemente corajosos para desafiarmos instituições e forças obsoletas que nos tentam silenciar.

Nós encorajamo-vos a continuarem a fazer pressão. Segundo a nossa experiência, nenhuma posição com poderes de decisão é pequena demais para não ser contestada, portanto, enquanto continuarem no serviço público, usem a vossa voz, escrevam cartas aos líderes das vossas agências e falem com eles e com as vossas equipes obre as vossas discordâncias. Falar tem sempre um efeito de bola de neve, inspirando os outros a usarem também a voz deles. A união faz a força, e pedimos que vocês não sejam cúmplices. Incentivamo-vos a consultar os vossos Inspetores Gerais, os vossos consultores jurídicos, os membros apropriados do Congresso e outros canais protegidos para questionar a veracidade e/ou a legalidade das ações ou das políticas específicas. Existem recursos, e vocês têm defensores (inclusive todos nós!) que vos podem apoiar a falar a verdade.

Encerramos com a sabedoria do Dr. Martin Luther King na sua mensagem sobre a guerra do Vietnã que ressoa até hoje:

“O chamamento para falar é muitas vezes tremendamente doloroso, mas devemos falar (…) porque precisamos profundamente de um novo caminho para além da escuridão que parece tão próxima de nós”.

Que todos tenhamos a coragem moral de falar e de fazer pressão por um mundo melhor, por uma América melhor.

Assinado a 4 de Julho de 2024:


Tradução por André Souza para a PRESSENZA