Entrevista com Francesca Albanese,
relatora especial da ONU para os Territórios Palestinos

No final de Maio de 2004, foi realizada em Nuremberg a terceira conferência internacional da “Aliança para a Justiça entre israelenses e palestinos”.  Palestrantes convidados de Israel, Palestina, EUA, Inglaterra e Alemanha falaram para mais de 200 participantes. Também esteve presente Francesca Albanese, Relatora Especial das Nações Unidas para os Territórios palestinos ocupados.  Ela tem um doutoramento em Direito Internacional e falou sobre o que a ONU pode fazer pelo povo de Israel/Palestina.

Por Mario Damolin

Como Relatora Especial das Nações Unidas para os Territórios Palestinos ocupados, você está no centro das atenções de uma crise política global, na qual muitas vezes é difícil diferenciar entre a mentira e a verdade.  Há um provérbio alemão que é mais ou menos assim: “quanto maior a mentira, mais invisível ela se torna.”  Você está familiarizada com este sistema no seu trabalho político?

Albanese: Oh, sim. Estou muito familiarizada com isso. Na área do trabalho político, isso é o que chamo “O Show de Truman”:  É o que foi apresentado de forma exemplar no filme do mesmo nome: a representação da vida real como um “reality show”.  Por outras palavras: a construção de uma realidade paralela.  Concretamente, por exemplo, na relação entre a Alemanha e Israel– eu diria simplesmente, com toda a modéstia, que na Alemanha, ou, para ser mais precisa, na política alemã, existe uma narrativa sobre Israel que nada tem a ver com a realidade de Israel ou dos Territórios palestinos.  Na Alemanha, a carta do Holocausto é constantemente jogada. Uma evocação que estimula permanentemente os sentimentos de culpa alemães.  E é por isso que considero este debate tão importante, especialmente para a Alemanha. E é por isso que vim a esta conferência da “Aliança para a Justiça entre israelenses e palestinos”.

Uma parte significativa dessa estimulação está à conta da mídia alemã…

Albanese: O jornalismo falhou até agora na Alemanha. O mundo acadêmico manteve-se em silêncio ou impediu qualquer envolvimento. A sociedade Civil é, de certa forma, notavelmente limitada.  Só os jovens se revoltam.  Foi um choque, para mim, ver como a polícia alemã tratou grosseira e brutalmente os manifestantes que exigiam solidariedade com a Palestina.  A solidariedade para com os palestinos não significa automaticamente hostilidade para com os israelenses.  Já é um facto que as pessoas aqui enterram a cabeça na areia e não querem ver a realidade.  E vejo esta realidade catastrófica e assassina todos os dias — seja em Gaza ou na Cisjordânia.  Temos de lutar contra a ignorância prevalecente, especialmente na Alemanha.

De alguma forma, parece que na Alemanha essas “mentiras da vida” estão surgindo novamente, segundo as quais a Alemanha superou seu passado ruim e, portanto, está do lado bom…

Albanese Você fala de “mentiras”; eu falaria antes de “traumas”.  Eu ousarei dizer isto: muitos alemães aparentemente não lidaram suficientemente com o trauma daquilo que a Alemanha fez durante o Terceiro Reich: o extermínio dos judeus.  E, por outro lado, há uma “mentira da vida”, como você lhe chama, entre a maioria da população judaica em Israel, que simplesmente não quer aceitar o que vem fazendo contra os palestinos há décadas: Desde os massacres aquando da fundação do Estado israelita, passando pela limpeza étnica e pela expulsão permanentes, pelo aumento da violência na Cisjordânia através da brutalidade dos colonos, até ao atual assassinato em massa de mulheres e crianças em Gaza.  Eu chamo isto de genocídio.  E eu não sou a única a dizê-lo:  A África do Sul e outros países reagiram no mesmo sentido.  Para mim, como advogada especializada em Direito Internacional, e com toda esta miséria diante dos meus olhos, é completamente claro: se a maioria judaica em Israel alguma vez perceber o que realmente aconteceu, como os meios de subsistência e a cultura dos palestinos estão sendo sistematicamente destruídos e aniquilados, isso terá efeitos psicológicos devastadores para a sociedade israelense.

Como essas mentiras influenciam o seu trabalho como relatora especial na ONU?

Albanese: Essas mentiras levaram a uma enorme hipocrisia, particularmente nos países ocidentais, mas também em Israel, contra a qual tenho de lutar todos os dias.  E meu papel nesse “Show de Truman”, voltando ao assunto, é desmascarar ou interromper essa coreografia da hipocrisia.

Por causa disso, você é difamada em partes da imprensa alemã (especialmente na Springer Presse), mas também internacionalmente, como uma “ícone do BDS”, uma antissemita ou até mesmo uma apoiadora do Hamas. Isso afeta você?  Como você lida com isso?

Albanese: Isso é, naturalmente, doloroso, mas também um tanto ridículo.  Especialmente para mim, que cresci com os livros de Primo Levi. Como posso ser uma apoiadora do Hamas, quando este grupo terrorista oprime, usa e explora os palestinos cujos interesses devo representar, cujos direitos humanos e dignidade humana devo defender?  Os palestinos foram as primeiras vítimas destas políticas ditatoriais do Hamas.  Essas calúnias e essa difamação contra mim são campanhas que servem principalmente ao governo israelense e estão sendo desencadeadas por seus amigos políticos e da mídia. É tudo intimidação.

Obviamente, Israel não se sente persuadido pelas Resoluções da ONU ou pelas ordens do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) a abandonar a sua política de violência. Pelo contrário, os assassinatos continuam. O Direito Internacional está sendo violado. De facto, o Direito Internacional foi durante décadas permanentemente suspenso por Israel neste conflito específico. Há manifestações contra isso em todo o mundo.

Albanese: Os muitos jovens protestantes em todo o mundo, foram e são muito específicos em suas demandas pela aplicação do Direito Internacional. Mas, mesmo assim, eles são frequentemente confrontados com essa hipocrisia que simplesmente permite que Israel continue a fazer o que quer. O ex-diplomata israelense Daniel Levy disse uma vez: “Devemos ficar de olhos abertos para a impunidade geral que Israel desfruta em todas as suas atividades, o que ao mesmo tempo fomenta o extremismo dentro e fora da sociedade israelense.” Temos de ser persistentes na aplicação do Direito Internacional, tanto por parte dos israelitas como por parte dos palestinos. E temos de tentar compreender, não só a história judaica, mas também a história dos palestinos, que sofreram opressão e  injustiças, assim como doze conflitos armados desde 1948. Temos de trabalhar no sentido de criar um entendimento entre ambas as partes.

É mais fácil falar do que fazer. Os traumas de ambos os lados são tão grandes que se pode ter a impressão de que este conflito é, em última análise, insolúvel.

Albanese:⁣ Sim, parece que sim. Mas esses traumas estão sendo ainda mais alimentados pelos acontecimentos atuais: o terrível massacre realizado pelo Hamas a 7 de Outubro de 2023 e a resposta genocida dos militares israelenses.  Tudo isto tem de parar imediatamente. Um colega israelense me disse recentemente durante uma viagem a Israel: “O Holocausto aconteceu.  Fomos perseguidos e mortos.  Isso é historicamente reconhecido e temos de manter viva esta memória. Agora podemos começar de novo.  Podemos refletir sobre como sofremos. Mas os palestinos não podem fazer isso, porque a sua história não é considerada um problema no Ocidente. Não estão em condições de historizar a sua história.  Eles experimentam o presente como uma continuação do ‘Nakba‘ de 1948: a limpeza étnica da Palestina.  E estão aqui sem nada nas mãos.”

Muitos israelenses veem a Nakba, a expulsão de 800.000 palestinos das suas aldeias, de forma completamente diferente. Segundo eles, os palestinos partiram voluntariamente por ordem dos seus líderes.  Ou de alguma forma a terra teria sido prometida por Deus aos judeus.  Diferentes versões da história estão em conflito aqui.

Albanese: Devemos ser honestos. O sionista radical, Vladimir Jabotinsky, e o fundador do Estado israelense, David Ben-Gurion, falaram repetidamente da “colonização” da Palestina. A seguinte citação de Jabotinsky foi transmitida: “Você já viu povos indígenas que não se revoltaram quando suas terras lhes foram tiradas?” Portanto, estamos lidando aqui com o colonialismo de colonos, um termo que é estritamente rejeitado pela liderança sionista e seus aliados, inclusive pela Alemanha.

Acredita que será possível um entendimento num futuro próximo, apesar destes obstáculos historicamente definidos?  Que os israelitas desistirão de sua posição claramente dominante, que se baseia, acima de tudo, nas suas forças armadas?

Albanese: Só posso esperar. Há um livro da linguista israelense Nurit Peled-Elhanan, que recebeu o Prêmio Sakharov do Parlamento Europeu, intitulado “Palestine in Israeli Schoolbooks: Ideology and Propaganda in Education” (Livros escolares Israelenses: Ideologia e Propaganda na Educação). Neste estudo, bem lúcido e meticuloso, a autor descreve em detalhes dramáticos como os estudantes em Israel são doutrinados, posicionados contra os palestinos e expostos a teorias racistas.  Assim se forma uma “identidade judaica”. Uma análise assustadora.  Pode-se perder toda a esperança num futuro pacífico.  Com esta doutrinação, os jovens vão então para o serviço militar, talvez para os territórios ocupados–e as crueldades que aí ocorrem não nos devem surpreender.

A maioria dos meios de comunicação israelenses, especialmente a televisão, faz reportagens sobre a guerra de forma muito tendenciosa.  Você ouve que muitas pessoas não sabem ou não querem saber o que está acontecendo na guerra atual.  Como os israelenses podem ser libertados deste impasse?

Albanese: Sim, existe uma cegueira específica na sociedade israelense.  Mas a minha resposta à sua pergunta é bastante simples: a comunidade internacional tem de exercer pressão suficiente sobre Israel, a fim de representar e de fazer cumprir com credibilidade as ordens do Tribunal Internacional de Justiça. E, em termos concretos, isso também significa impor sanções contra Israel, para que o país possa ser levado a agir conforme o Direito Internacional.  E, naturalmente, você precisa de negociar.

Sabemos agora como funcionaram as sanções contra a Rússia. Elas têm sido bastante malsucedidas.

Albanese: Israel é um caso diferente. O país é fortemente dependente do Ocidente nos setores tecnológico, da segurança e da IA.  Se houver unidade no Ocidente, isso terá certamente um efeito.

Senhora Albanese, muito obrigado pela entrevista.


Tradução do inglês por André Souza para a PRESSENZA