Por Carlos Matos Gomes (*)

Hoje, que se tocam os tambores de guerra na sede do império [cimeira da NATO em Washington], e onde uma mulher, Ursula Von Der Leyen, presidente da Comissão da União Europeia, está em lugar de destaque, trago à memória Rosa Luxemburgo: Um figura incómoda, feminista, pacifista, socialista, judia sem religião, revolucionária. E também o conjunto de mistificações que serviram para os dirigentes justificarem a guerra aos seus povos.

A causa imediata para a Primeira Guerra foi o assassinato do arquiduque Francisco, herdeiro do trono austríaco, e da sua mulher a 28 de Junho de 1914. O assassino foi um estudante nacionalista sérvio, recrutado para o efeito. A Áustria apresentou um ultimato à Sérvia e exigiu uma resposta dentro de 48 horas. Os termos desse ultimato eram tão humilhantes que era impossível a Sérvia aceitá-los. A Áustria, que era aliada da Alemanha, declarou guerra à Sérvia, que era aliada da Rússia, essa, por sua vez, era aliada da França e da Inglaterra. Na verdade, o assassinato do arquiduque serviu de pretexto para que cada estado procurasse obter vantagens na divisão das riquezas em África. A principal razão para a rivalidade entre os países europeus era a disputa pelo controlo de territórios na África e na Ásia após a Conferência de Berlim.

Desde 1871, as potências europeias estavam em paz umas com as outras, mas todas estavam envolvidas numa corrida armamentista, isto é, todas estavam a investir grandes somas em despesas militares, cada uma procurando superar as outras em armamento à espera de uma oportunidade para a guerra. Nada do que é apresentado hoje aos europeus como razão para a guerra é diferente. Antes da guerra existia o que ficou conhecido como a “paz armada” — Tal como hoje, com a “guerra fria”. Até ver.

Foi num quadro de oposição a uma guerra com estas motivações que Rosa Luxemburgo agiu politicamente. Ursula Von Der Leyen procura acendalhas para desencadear uma guerra! Em 1914, ano do início da Grande Guerra, Rosa Luxemburgo foi julgada e condenada a um ano de prisão pelo Segundo Tribunal Criminal de Frankfurt, por incitamento à desobediência civil, num discurso feito em Setembro de 1913. A defesa que ela fez na ocasião para contestar a condenação por ela condenar a guerra e o imperialismo, foi publicada sob o título de “Militarismo, guerra e classe trabalhadora”.

Os três “ingredientes” estão hoje a ser cozinhados em Washington de modo a serem apresentados como “aumento de despesas de defesa” para os povos se defenderem do que não tem defesa: a utilização de armas nucleares e do espaço como campo de batalha por parte das oligarquias que governam as superpotências; guerra, como a continuação dos grandes negócios criados pelas oportunidades de conflito; e a classe  trabalhadora como carne para os canhões, seja ela fardada ou à civil.

Em 4 de Agosto de 1914, no dia em que a França e a Inglaterra declararam guerra à Alemanha, a bancada social-democrata do Reichstag na Alemanha votou a favor dos créditos de guerra, o que deixou Rosa Luxemburgo profundamente abalada. Ursula Von Der Leyen declarar-se-ia empolgada! A social democracia e a democracia cristã têm sido, desde o início do século XX, fiéis caucionadoras das guerras do capitalismo e do colonialismo.

Em Dezembro de 1914, o deputado Karl Liebknecht, companheiro de luta de Rosa Luxemburgo, votou sozinho contra nova concessão de créditos de guerra. Fundaram o grupo Internationale, que passaria a designar-se Liga Espartaquista. O grupo defendia que os soldados alemães abandonassem a guerra para iniciarem uma revolução no país. Em 1915, Rosa Luxemburgo passou um ano na prisão por agitação antimilitarista. Em 8 de Novembro de 1918, o governo alemão, relutantemente, libertou-a da prisão, pressionado pelas manifestações dos espartaquistas nas ruas de Berlim. No dia 9 de Janeiro de 1919, Berlim encontrava-se em estado de sítio. Luxemburgo e Liebknecht, perseguidos, sabiam que já não tinham para onde fugir. Foram presos a 15 de Janeiro pelos militares e levados para interrogatório no Hotel Eden, em Berlim. Foram retirados do hotel por grupos paramilitares, os Freikorps, sendo espancados até ficarem inconscientes. Luxemburgo e Liebknecht foram levados — cada um no seu carro. Junto à ponte Corneliusbrücke, Rosa Luxemburgo foi baleada e atirada agonizante para as água geladas do rio. Karl Liebknecht, seguiu no outro carro até ao parque Tiergarten. Aí foi obrigado a caminhar e baleado pelas costas. O corpo seria entregue como o de um indigente numa esquadra de polícia. Os seus assassinos jamais foram condenados. Somente em 1999, uma investigação do governo alemão concluiu que os paramilitares do Freikorps haviam recebido ordens e dinheiro dos governantes social-democratas para matar Luxemburgo e Liebknecht.

Qual foi a origem da morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht? O serem, ou terem sido sempre contra a guerra, sempre com a revolução. Qual a origem do sucesso de Ursula Von Der Leyen? Ser sempre pela guerra e sempre contra a revolução, mesmo contra a revolução mínima da defesa da dignidade da liberdade. Rosa Luxemburgo era contra a guerra — no caso da Grande Guerra — porque ela fazia parte da natureza do capitalismo e este alimenta-se de uma “constante pulsão expansionista e uma tendência inerente para o militarismo e a guerra”. No momento em que o SPD decidiu apoiar a guerra da Alemanha contra as potências da Entente (Reino Unido, França e Rússia), Rosa Luxemburgo convocou uma reunião dos militantes social-democratas que esperava fossem críticos dessa decisão. Só conseguiu reunir um punhado deles. Esteve sempre em minoria. Ursula Von Der Leyen gaba-se de estar em maioria. Também a maioria dos passageiros do Titanic estava de acordo em não alterar a rota e enfrentar os icebergs.

Contudo, quando o desgaste causado pela carnificina da Grande Guerra começou a fazer-se sentir, Liebknecht tornou-se a grande figura pública do movimento antimilitarista e Luxemburgo a sua líder mais influente. Ambos foram brutalmente neutralizados pelos poderes instalados: foi retirada a imunidade parlamentar a Karl Liebnecht, enviado para a guerra e, depois, preso; Luxemburgo foi condenada a duas penas de prisão. No cumprimento dessas penas viria a passar na cadeia três dos quatro anos da guerra. Só seria libertada com a revolução de 9 de Novembro de 1918 (fuga do imperador Guilherme II e proclamação da República Alemã) para ser depois assassinada

Na cadeia, Rosa Luxemburgo escreveu A crise da social-democracia, criticando sem contemplações o SPD por ter aderido à política de guerra. O livro proclamava a alternativa “socialismo ou barbárie”, que rompia com a ideia determinista dum socialismo considerado como desfecho inevitável da História da humanidade. Hoje, o fim da história é o neoliberalismo, mas do que estamos a abeirar-nos é da barbárie.

A reunião da NATO em Washington está a tratar da melhor via para a barbárie. A alternativa é a vitória da Rússia? Não, a alternativa é os povos não se deixarem embalar nos sermões dos pastores que lhes dizem que apenas devem deixar-se guiar e limitar-se a desejar o que lhes é dito ser o possível, de acordo com os princípios do oportunismo, sem se preocuparem com os seus próprios princípios, e a deixar-se levar pelos estadistas, porque se o fizerem os povos encontrar-se-ão na mesma situação “do caçador que não só falhou em matar o veado, mas também perdeu a arma pelo caminho.”

A alternativa à vitória militar da Rússia, seja essa vitória o quer que seja (e ninguém na NATO nem no Ocidente Global definiu ainda o que entende por “vitória da Rússia” ou “derrota da Rússia”), não é, em termos de princípios, admitir o nazismo ucraniano como sendo da família das democracias europeias, nem, em termos militares, que a Ucrânia seja um porta-aviões nuclear americano estacionado na fronteira da Rússia. Normalizar o neonazismo como uma igreja do neoliberalismo e fazer da Ucrânia um estado como o de Israel na Euroásia é o programa que está há anos em pano de fundo de todas as reuniões da NATO.

O que está em discussão hoje, cem anos após o assassinato de Rosa Luxemburgo, é a glorificação das novas milícias dos Freikorps — os Corpos da Liberdade — de que Úrsula Von der Leyen é uma das aves cantoras.

Rosa Luxemburgo era uma mulher sensível à vida e à natureza: Por isso ela escreveu: “Pertenço mais aos canários do que aos meus camaradas”. Ursula Von Der Leyen é mais de pertencer aos abutres.

A cimeira da NATO é um acontecimento infelizmente já visto: a conjugação de interesses de grupos sociais para desencadear uma guerra. Foi assim com a Primeira Grande Guerra, foi assim com a Segunda Guerra Mundial. Os que expõem a guerra como resultado de interesses de grupos, de estratégias de poder, como a utilização da carne humana para produzir canhões, serão abatidos como o foram Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Hoje seriam acusados de putinistas. Em 1907, a sete anos do início da Grande Guerra, Rosa Luxemburgo já deixara de ter ilusões sobre o que fora o seu partido e passara a proclamar que “a social-democracia se tornou um cadáver fedorento”.

Entender que os partidos dos grandes industriais e patrões apoiassem a grande guerra — que se travará para disputar os recursos naturais de África — devia motivar uma reflexão sobre o que terá levado todos os partidos da Segunda Internacional a capitular perante as políticas belicistas dos respetivos governos.

Rosa Luxemburg:
“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres!”

A crise da social democracia — que deixou de ser um projeto de esperança para se transformar numa empresa prestadora de serviço a troco de um voto, de ser hoje, como há mais de cem anos, apenas um dos figurantes da frente comum de interesses — contribuiu para a resignação interiorizada com a máxima: Não Há Alternativa (TINA, em inglês) e gerará reações violentas a mais ou menos curto prazo. A cimeira da NATO está a tratar de desencadear uma guerra e controlar o repúdio popular.

No misturador de interesses, no triturador de diferenças que é hoje o grande partido da guerra e da submissão europeia, encontram-se os que matariam de novo Rosa Luxemburgo e venerariam Ursula Von Der Leyen. Daí concluir, como Rosa Luxemburgo, ser necessário construir novos partidos, ou novas formações políticas para dar corpo a uma nova forma de nos relacionarmos no mundo.


(*) Carlos Matos Gomes é em Portugal um dos mais conceituados militares e historiadores da guerra colonial. Nasceu em 1946. A sua carreira militar iniciou-se em 1963. Cumpriu comissões durante a guerra colonial em Moçambique, em Angola e na Guiné, nas tropas especiais Comandos. Na Guiné foi um dos fundadores do Movimento dos Capitães e participou na primeira Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA) que organizou a revolta militar de 25 de Abril de 1974, a qual trouxe a liberdade e a democracia a Portugal e a independência de todas as colónias africanas. Militar no ativo até 2003, é atualmente Coronel na situação de reserva. Desenvolveu também uma carreira literária, com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz.

 

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