OPINIÃO
Por Felix Santos & Paulo Rubem Santiago
Em um artigo (Opinião – Jornal O Globo – 08/06/2024), o jornalista Carlos Alberto Sardenberg declara em alto e bom título que “A greve nas universidades é contra os alunos e a sociedade”. Basicamente, ele declara que não entende como os docentes das universidades federais podem estar fazendo greve novamente e com as mesmas reivindicações. Ainda faz a declaração de que greve se faz contra o capital e não contra governos. E que deveria ser feito somente depois de fracassadas todas as tentativas de negociação, afirmando que uma greve no setor público prejudica os alunos e a sociedade. O jornalista segue por um caminho já trilhado costumeiramente pela direita liberal e que nunca colocaram os movimentos grevistas como atos coletivos extremados pela afirmação da cidadania e em defesa de direitos muito importantes para toda a sociedade.
Primeiramente, esta não é uma greve somente de docentes das universidades. Esta é uma greve de docentes das universidades (62 das 69 instituições de ensino superior, IFES) e dos institutos federais de educação tecnológica (mais de 560 campi, dos 614 campi dos IFETs), mas é também uma greve dos técnicos administrativos em educação, TAEs, destas instituições.
Em segundo lugar, o sindicato nacional dos docentes, Andes-SN, tentou por 17 vezes, desde o ano passado, conversar com o governo, tendo protocolado em todos estes momentos a sua pauta de reivindicações sem sucesso. As outras entidades representativas dos docentes dos EFTs e dos TAEs fizeram o mesmo. O governo só abriu a mesa de negociações em 7 de fevereiro deste ano, no dia exato em que os TAEs inauguraram seu Comando Nacional de Greve. Portanto, foi uma greve iniciada após exaustivas tentativas infrutíferas de conversar com o governo.
O jornalista cita o drama do economista André Portela, que teve sua formatura em 1989 atrasada por uma greve. Mas, se não fosse aquela greve nas universidades federais, talvez ele nem se formasse com a qualidade que desejava. Antes, talvez ele nem quisesse entrar em uma universidade federal, na hora em que se decidiu por fazer o curso de economia, não fossem as greves anteriores. Pior ainda, aqueles que vieram depois dele não iriam ter a mesma oportunidade.
Sardenberg afirma que as reivindicações dos docentes são as mesmas de 35 anos atrás (veja a situação das IFES mais abaixo). Isto é parcialmente verdade. Mas ele omite as razões desta semelhança. Há 35 anos, iniciou-se um processo de construção do que veio a ser chamado de estado mínimo, no bojo da onda do neoliberalismo. Este processo globalizado capturou o estado brasileiro em três vertentes que foram gradativamente se intensificando.
A primeira vertente é a institucionalização da dívida pública na legislação brasileira, estabelecendo determinações para que o estado coloque o pagamento de seus juros e amortizações à frente dos investimentos em educação, saúde, ciência e tecnologia, desenvolvimento urbano, entre outras áreas vitais para o desenvolvimento do país, limitando-os ainda a um teto de gastos. Além disso, não há qualquer limite para crescimento da dívida como proporção do PIB ou para o pagamento destas obrigações. Mas há algo ainda pior: desde 1997, tem sido imposto um expressivo volume de operações de crédito para assegurar o mero refinanciamento do estoque da mesma dívida, sequestrando-se assim o futuro das novas gerações. Recentemente, mais um descalabro foi aprovado pelo congresso (Projeto de Lei Complementar PLC 459/17) possibilitando a emissão de papeis do governo com sequestro de parte do orçamento para sua garantia. Assim, todo o esforço do país fica centrado na produção de superavits primários somente para pagamento de juros da dívida pública, que só faz crescer, afogando continuamente toda atividade do estado em suas obrigações constitucionais com o investimento produtivo e com a população. Trata-se de uma máquina de produção de renda para os super-ricos alimentada pela execução do orçamento público, ou seja, com nossos impostos.
A segunda vertente é a da terceirização dos serviços públicos. A terceirização é estimulada e mesmo forçada a ocorrer no serviço público pela extinção de cargos de um lado e, de outro lado, pela colocação de outros cargos em desnecessidade, tornando-os assim, impedidos para provimento através de concursos públicos. Estes dois processos (extinção e disposição em desnecessidade de cargos públicos) já ocorrem em larga extensão nas universidades públicas, chegando em certos casos a tornar indisponíveis para concurso público cerca de 85% de todos os cargos existentes. Ou seja, ao invés das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) possuírem seu próprio pessoal especializado segundo suas necessidades, para a maioria dos cargos a única via é a terceirização, que é muito mais cara do que o provimento dos cargos de carreira. Por exemplo, se a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), desejando cumprir com a legislação vigente, precisar fornecer assistência adequada a algum estudante cego empregando brailistas, ela deverá terceirizar o serviço, porque este cargo foi colocado em desnecessidade. Para se ter uma ideia da extensão deste problema, o governo anterior, em um único dia, extinguiu 14.277 cargos, para os quais não se podem mais fazer quaisquer concursos para os seus preenchimentos. A greve de docentes neste momento é dedicada a corrigir apenas parcialmente estes efeitos negativos de uma política de desprestígio da educação federal agravada nos últimos seis anos.
A terceira vertente é a pressão de segmentos poderosos do mercado financeiro para que os direitos universalizados de acesso à educação, saúde e seguridade social de qualidade, garantidos na Constituição, sejam reduzidos ou mesmo deixem de ser garantidos. As sucessivas reformas da previdência social pública (desde 1993 já houve oito reformas) e os recentes ataques aos mínimos de investimento público em educação e saúde em todos os três níveis de governo produzem um ambiente de deterioração e negligência com a atuação do estado na garantia daqueles direitos. Além de tudo, se estas investidas tiverem sucesso, o futuro da educação, da saúde e da seguridade social públicas será no mínimo trágico.
Para localizar o efeito desta pressão ao longo do tempo, de 2013 a 2023, o orçamento discricionário das IFES, corrigido pelo IPCA, caiu 55,33%. O salário de um professor titular com doutorado em regime de dedicação exclusiva, de 2014 a 2024 (já incluindo o aumento de 9% fornecido pelo governo no ano passado) caiu 26,59%. Pelo fato desta situação ocorrer como política de estado no Brasil, independentemente de quem está no governo, é o que faz a greve ser tão frequente. Ela é a única forma que os trabalhadores em educação, assim como qualquer outro trabalhador, possuem para reduzir a precarização acentuada na educação pública federal. Nós somos trabalhadores como os metalúrgicos o são. É evidente, pelos elementos listados acima, que nós estamos nos contrapondo ao capital improdutivo alimentado pelos juros da dívida pública, que está aos poucos capturando cada vez porções maiores do orçamento público para a produção de sua renda. Aparentemente, os interesses do capital estão tão enraizados na máquina do estado, que o nosso patrão acaba sendo um misto híbrido de governo e capital. Nós negociamos com o governo, que, por dentro do estado, negocia com o capital – e seus representantes no Congresso e na própria máquina do estado – a abertura de espaço no orçamento para a educação federal.
Não sabemos com quem o articulista conversou sobre os estudantes, porque parece muito desinformado. Os líderes estudantis de hoje, encastelados burocraticamente nas entidades locais, estaduais e nacional, por forças das coalizões partidárias às quais pertencem, estão, na verdade, contra o movimento dos docentes e dos TAEs. Em quase todas as universidades, o que ocorre é uma rebelião de estudantes ao notarem a passividade das diretorias de suas entidades. Claro, que não há unanimidade entre eles. Unanimidade é uma coisa estranha a qualquer movimento social, mas este movimento de reação à resignação de algumas lideranças estudantis tem sido bastante forte em várias universidades.
Quanto ao dinheiro do orçamento público federal estar curto, depende do ponto de vista de quem fala. A evasão fiscal no Brasil é estimada em cerca de 8% do PIB, ou seja, algo próximo a um trilhão de reais, estando centrada no Sul e Sudeste. A renúncia fiscal prevista no projeto de lei da LDO para 2025 ultrapassa 640 bilhões e somente os grandes devedores do Rio de Janeiro e de São Paulo contribuem com quase 500 bilhões de reais de estouro nas contas do governo. Vale salientar que várias destas renúncias fiscais não se justificam, como, por exemplo, os incentivos para a indústria automobilística e a renúncia do imposto de exportação do agronegócio, dois dos mais competitivos setores da economia mundial. Mas, tamanho poder econômico encontra certamente quem os defenda dentro do estado, dentro dos governos, dentro do congresso e, também, no jornalismo econômico brasileiro.
Como pode ser visto pelo relato acima, os docentes das IFES e IFTs não fazem greve por fazer. Eles, além de terem que trabalhar com condições extremamente precarizadas, devem repor cada minuto de aula não dada durante a greve. Isto significa, frequentemente, prejudicar seu tempo livre para atividades extras e mesmo suas férias. Por isso, convidamos Sardenberg a deixar por alguns momentos os microfones e computadores com os quais trabalha para visitar ao menos uma das universidades públicas que estão em greve. Assim, poderá conhecer a complexidade das relações que qualquer uma destas universidades possui com a comunidade extra acadêmica em várias escalas de tempo e espaço. Por exemplo, lembrem-se que na pandemia, foi na universidade pública que se encontraram os profissionais para orientar a sociedade em como proceder e como produzir e aplicar vacinas. É na universidade pública que são feitos todos os processos de desenvolvimento científico que nos permitem adotar ou usufruir do uso de novas tecnologias. É na universidade pública, através de seus serviços de assistência médica, odontológica, fisioterapêutica e de ensino no primeiro e segundo graus, que são formados grande parte dos melhores profissionais. Há uma rede de pesquisa científica e troca de informações que interliga todas as nossas universidades entre si e com outras universidades espalhadas pelo mundo, conectando não somente saberes, mas também culturas, ajudando a difundir a solidariedade e paz entre os povos.
Possuindo estas relações tão profundas e complexas com as sociedades a nossa volta, torna-se realmente interessante a pergunta do jornalista: por que o governo demora dois meses para se preocupar com esta greve? Talvez seja porque setores poderosos da economia se preocupam mais em justificar sua atuação predatória e especulativa junto ao capital do que em mostrar para a população como estão ameaçados os seus serviços mais essenciais e importantes, como a educação, a saúde e a seguridade social.
Felix Santos – Ph.D. em matemática, Professor do DEMEC/CTG/UFPE
Paulo Rubem Santiago – Mestre e doutorando em educação, Professor do DEF/CCS/UFPE.