MÚSICA
Por Renan Simões
Chegou enfim o dia em que resenho o espetacular álbum Saudade solar (2024), de Igor Colombo, meu irmão. O registro consiste em uma reflexão tocante e complexa sobre o falecimento do nosso pai, ocorrido em 2019, após anos sucumbindo ao mal de Parkinson, e conta com um time espetacular de músicos. Há muitas referências musicais e pessoais, geralmente bem discretas/ocultas: algumas eu captei, outras me foram reveladas pelo artista, e há por certo as que ele levará para o túmulo. De toda forma, a intransponibilidade dessas referências e significados dá o charme que todo álbum extremamente pessoal tem. A pintura da capa é de Gustavo Moraes; e em sua beleza, simbolismos e criatividade, é um perfeito complemento visual ao conteúdo sonoro de Saudade solar.
A viagem é iniciada com Sorte no caminho, uma composição de rítmica ternária e construção complexa, na qual eu próprio fiz participações vocais modestas. A aura do Clube da Esquina paira por toda a faixa. A poesia é bem profunda, e aborda relações pessoais e memórias, que são muito bem delineadas pela expressividade da melodia, harmonia e arranjo. O arrepio é certo em frases como “Você não pode deixar o trem partir” e “O trem não volta nunca mais”.
A guitarra macia da introdução de Segredos no jardim prenuncia mais uma música de levada ternária, e também assombrada pela ausência, melancolia e fragilidade (“Lamento, não posso ficar agora”, “Lamento, mas não posso sorrir agora, tenho muito o que chorar”, “O céu é tão bonito que me faz chorar”). Silêncio natural, a terceira seguida em levada ternária, é bem mais leve que as anteriores, mas saúda a solitude em trechos como “Toda estrela apagará, nem o Sol é imortal / E eu preciso de ter o meu silêncio natural”, e traz um poético solo de guitarra à la Radiohead realizado pelo próprio Igor Colombo.
Acho surpreendente quando me apego a uma música de um gênero ao qual não sou afeito, ou ao qual tenho certa rejeição. Foi o que me aconteceu quando ouvi O amanhã não será meu, um country espetacular e revolucionário, com harmonia e melodia imponentes, riffs inesquecíveis e belos solos de guitarra (Igor Cowosque), teclado (Vitor Collodetti), baixo (Marco Cavalca, e que ao vivo é realizado por Tiago Corrêa) e bateria (Gustavo Romano). Esse núcleo inacreditável de músicos é responsável por boa parte da magnificência do registro.
A levada ternária se faz presente novamente em Deixa fluir, que é hiper dramática, de cortar o coração (“Deixa a vida fluir, deixa a vida rolar / No coração a saudade solar”), e apresenta solos desoladores de saxofone (Gilson Villas Boas) e teclado (pelo próprio Igor Colombo, com total reverência ao rock progressivo).
Vou dizer é com certeza uma das canções soul mais impactantes já produzidas neste novo milênio, uma declaração apaixonada e apaixonante que pode ter conotação romântica ou fraternal. Há quebradeiras rítmicas desconcertantes, porém sempre fluidas. Ressaltamos também o solilóquio final, realizado por Thiago Romanelli ao teclado, e a bela participação de Sabrina Souza nos backing vocals.
A segunda metade do álbum é inaugurada pelos dois singles, lançados em janeiro e março de 2024, os quais eu já resenhei de forma mais pormenorizada; tratam-se também dos dois momentos mais pop do álbum. Cataquiporá é cheia significados, em meio a um caldeirão de sentimentos e referências da música brasileira (Clube da Esquina, Moacir Santos, Chico Buarque); em suma, é uma viagem surreal muito bem sucedida que envolve vidas passadas, saudade e esperança. Salientamos o breve e incisivo solo de saxofone de Arthur Costa. Doce terra é um samba rock tipicamente brasileiro, uma composição simples e direta em todos os aspectos, com arranjo muito equilibrado, e que traz à tona muito da música brasileira dos anos 70, tanto do mainstream quanto do underground. Pontuamos os elegantes solos de guitarra (Igor Cowosque) e saxofone (Gilson Villas Boas).
Deixa o sol te ver é a única música do registro que apresenta elementos musicais que não me agradam; entretanto, são exatamente esses elementos que podem torná-la uma preferida de outras pessoas. Nosso primo Wagner, por exemplo, veio me arguir, após o show de lançamento, o porquê dessa ser a minha música menos favorita do álbum, visto que era a preferida dele; só consegui explicar a partir das minhas preferências musicais. De toda forma, mesmo com esses “elementos a mim indesejados”, trata-se de uma realização muito bem feita. A atmosfera ensolarada disfarça, segundo o próprio Igor, a letra mais pesada/triste de todo o registro. Esta é muito pessoal e simbólica/indireta, mas cortante em alguns momentos (“E entendi que nem sempre existe outra vez / Que nem tudo é feliz”). Destaque para o solo de trompete de Gabriel Colombo, nosso primo. Ao final, há uma frase jazzística ao violão, um “lick”/motivo bem comum, que lembro de ter ensinado a Igor há muitos anos atrás; após este, há três batidas finais bem fúnebres em prato grave com feltro, o que parece indicar o sinal da morte e/ou de um coração que está parando.
Não tenho nem ideia de como me expressar em relação a Brilho do tempo. Em suma, é minha grande preferida, e acabou virando uma grande preferida da vida. Trata-se de uma música super especial, com letra simples, direta, profunda e realista, uma composição extremamente imponente, que ecoa a densidade energética e a linguagem de Elliott Smith; é perfeição em forma de canção. Segue a letra:
Eu vejo tudo sem estar
Me contento com a sorte no caminho
Percebo tudo devagar
Esperando o futuro
E o que você fará quando tudo terminar?
Você fez tudo o que pôde, não vai adiantar
Será que uma vez você vai descansar?
No momento, percebo que não vai dar
Mas então tem certeza que não vai mudar
Eu creio que não
O tempo passa, estamos destinados a perder
Sedentos por um gole de vida, nada diferente vai acontecer
Como se não bastasse essa porrada generalizada, eu, que não sou um cara tão apaixonado por solos de guitarra, devo admitir que os mais de dois minutos de solo ao final da canção (realizado por Igor Cowosque) são muito necessários, para que possamos absorver toda a carga energética proposta pela canção; além disso, é um solo brilhante do início ao fim. Qual não foi nossa surpresa quando, após o show de lançamento, Igor revelou a mim e a Sabrina Souza que nós fomos a inspiração para essa canção, pelo nosso modus operandi de vida. Sem mais palavras sobre.
Nunca é sobre mim é uma canção extremamente triste do início ao fim, comovente em cada volteio melódico e palavras proferidas, com muitas frases de impacto (para citar uma única: “o caminho certo e belo está longe demais”). Evidenciamos aqui o solo de baixo fretless de Marco Cavalca.
A faixa de fechamento do álbum, Ser sentimental, apresenta trajetórias difusas e confusas, o que pode ser uma representação do estado mental do eu lírico; de toda forma, há muita unidade e fluência. É como se Igor tivesse batido, em um liquidificador, diversos ganchos pop com todos os seus sentimentos perante a despedida, a ausência, o arrependimento e a esperança. Ecoam, no contexto, baladas pop do universo musical espírita kardecista, o que faz parte da vivência do artista. Ao final da trajetória, o trem chega pra levar alguém embora. Assim, a história se repete. E sempre irá se repetir, com todos nós. Muitas vezes…
Observação final: O monólogo guitarrístico final, realizado por Igor Colombo, consiste na música Theme from young lovers, da banda The Shadows; uma banda que, junto a Renato e Seus Blue Caps, é a cara do nosso pai, que foi levado pelo trem em 2019.