Ou gostamos de surpresas, ou as odiamos. Quando elas nos metem medo, não estamos longe da raiva que explode, ou mesmo do ódio pela pessoa que as instigou; Se, pelo contrário, uma surpresa nos encanta, se nos dá prazer, gostaríamos de beijar o seu autor, de lhe agradecer, ou até mesmo de lhe dar um presente.

Por Natalie Depraz (*)

Os resultados das últimas eleições europeias, realizadas a 9 de Junho, demonstraram a ascensão galopante dos partidos da extrema-direita. Em França, nomeadamente, com 32% dos eleitores a votarem no Rassemblement National (RN), o resultado foi uma primeira surpresa, ainda que de certa forma esperada. Uma surpresa tanto para a opinião pública como para o governo: Uma surpresa geral. Todos ficaram chocados. Uma surpresa esperada, tendo em conta a ascensão incessante do RN. Mesmo assim, foi uma surpresa essa subida súbita para os 32%. É esse o princípio duma surpresa: sempre (parcialmente) esperada, sempre imprevista no seu conteúdo singular, sempre desconcertante nos seus efeitos. A surpresa, para além de poder ser um choque ou inesperada, tem uma estrutura, uma dinâmica articulada: à antecipação (mesmo que parcial) segue-se a crise (ou o seu ponto alto, mas também o seu ponto cego), e depois vem o rescaldo (sempre muito emocional).

É assim que poderíamos resumir a narrativa da atual crise política extrema na França, sob o impulso da surpresa.

Mas a decisão do Presidente francês de dissolver a Assembleia Nacional na própria noite das eleições europeias provocou, só por si, uma segunda surpresa. Uma surpresa apenas para a população, pois foi desencadeada pelo governo. Isso criou uma narrativa diferente da que foi provocada pela primeira surpresa dos 32% para a RN. Porque, por um lado, há as pessoas que foram surpreendidas e, por outro, aqueles que as apanharam de surpresa, as pessoas no poder. A França dividiu-se então em duas, os surpreendidos e os surpreendedores, criou-se uma dissociação e, pelo meio, em vez do laço da deliberação democrática, veio o choque da crise, o choque da rutura ditatorial entre o povo e os seus governantes.

Mas a narrativa das surpresas não termina por aqui…

Porque houve depois uma terceira surpresa, um terceiro ato deste drama: O ato de resolução, após o primeiro ato de preparação (os 32% para a RN) e o segundo ato como o momento trágico da dissolução (da Assembleia Nacional). Porque no dia seguinte, segunda-feira dia 10 de Junho, nem sequer 24 horas após o anúncio da dissolução da Assembleia, as principais formações da esquerda francesa (o partido “A França Insubmissa” LFI, o partido comunista francês PCF, o partido socialista PS, e o partido “Europa Ecologia – Os Verdes” ELLV) anunciaram um acordo unitário que, alguns dias mais tarde, seria batizado de Nova Frente Popular (NFP)!

Resultado concreto, essencial e principal desse acordo: haverá apenas um candidato de esquerda por cada círculo eleitoral! Esta terceira surpresa veio tirar o fôlego a um governo que pensava que o seu anúncio surpresa arruinaria qualquer possibilidade de recomposição da esquerda em tão pouco tempo. Aquele que pensava ir surpreender os outros, foi ele próprio apanhado de surpresa. Um efeito boomerang que fez o Governo cair na sua própria armadilha…

Esta sequência de acontecimentos políticos, com o seu cunho de tragédia à moda antiga (ou moderna), desenrolou-se em tempo recorde. Para os amantes das surpresas, é um caso deveras exemplar. O que aqui irei designar de “cascata de surpresas”, é um resumo emblemático da nossa vida política e social atual, com as suas reverberações em muitos domínios profissionais, quer nos campos da gestão, da educação ou da saúde. Vivemos ao ritmo de uma crise permanente, sob a pressão constante de novas surpresas que geram golpes, contragolpes e retrocessos, eles próprios geradores de emoções que provocam medo, stress, raiva e, depois, fases intermináveis de esgotamento e de depressão…

Desde 2017 que Emmanuel Macron andava permanentemente a reinar através de choques. Basta pensar nas medidas que tomou durante a pandemia, a maior parte das quais motivadas pela ignorância, e que provocaram perplexidade na população. As políticas do Governo francês desencadearam regularmente um clima de choque e de desconfiança nas diferentes classes profissionais — enfermeiros, professores, funcionários públicos –, para não falar dos surtos de ansiedade nos jovens e nos estudantes perante a perspetiva vertiginosa de um futuro sem horizontes, e também das vagas de ódio aos outros, tanto por parte dos mais abastados como dos mais precários. No fundo, estão reunidos agora todos os ingredientes da ideologia da extrema-direita, prontos a dar origem ao desejo doentio de nos fecharmos nas nossas próprias identidades. Esta política de emergências consecutivas  é uma política perniciosa de captura dos outros, não de acolhimento. É a panela de pressão da extrema-direita.

E, no entanto, perante esta cascata de surpresas que atomiza a população, submetida às garras de um poder que despeja as suas surpresas e os seus medos, mantem-se inabalável a dinâmica de uma surpresa emancipadora. Uma surpresa que vai acabar por recriar os laços sociais. Uma surpresa que suscita entusiasmo, júbilo e esperança, com a firme promessa de uma renovação radical.

É esta a assinatura da dinâmica surpreendente que nasceu no dia seguinte à surpresa aterradora da dissolução. A terceira surpresa, na noite de segunda-feira dia 10 de Junho, foi a fonte criativa da nova unidade política, para além das divisões, mesmo para além das dissensões internas que quase cortaram pela raiz a nova frente popular nessa mesma segunda-feira.

De facto, há o que os meios de comunicação social só noticiaram na sexta-feira dia 14 de Junho: Após quatro dias intensos de negociações, dia e noite, houve candidatos do LFI que não foram nomeados mas que seriam absolutamente legítimos (Simonnet, Corbière, Garrigou), ou outros candidatos que foram nomeados mas que depois se retiraram (Quatennens); Houve conflitos, tentativas de putsch e, depois, a energia da surpresa unificadora, mais forte do que todas as divisões. Desta vez foi uma crise salutar, não mortífica ou aterradora. Foi uma surpresa que nos abriu novos horizontes e nos deu esperanças de mudança.

Tal é a virtude transformadora da surpresa, para quem souber ler os factos. É o poder de derrubar o muro da separação, seja ele o muro da divisão ou o muro do espanto.

Macron quis construir um muro ao dissolver a Assembleia Nacional. Os que pensavam que estavam a ser enganados, foram enganados mesmo. Mas aquilo que o Presidente conseguiu, foi suscitar um enorme vento de unidade que, desde há duas semanas, tem vindo a varrer com a depressão da noite eleitoral!

A surpresa é um instrumento notável para analisar a atual crise política em França, agora entre o novo impulso revolucionário e o atordoamento continuado dos partidos identitários.


(*) Natalie Depraz é filósofa e professora na Universidade de Paris Nanterre.
Para saber mais: N. Depraz, “A surpresa. Crise do pensamento”, Paris, Seuil, col. L’ordre philosophique, abril de 2024.

Tradução do francês por Vasco Esteves para a PRESSENZA