ECONOMIA
Por Guilherme Ribeiro / Diálogos do Sul Global
“A percepção geral da sociedade brasileira é que, hoje, os itens básicos estão muito caros e o rendimento mensal possibilita a compra de cada vez menos itens. Ocorre que o custo de vida aumentou entre 2020 e 2022 principalmente para as famílias de baixa renda”, adianta Daniela Sandi.
Isso acontece porque a alta ficou concentrada nos alimentos que proporcionalmente têm um peso maior no orçamento familiar. É o que mostra o quadro abaixo, que toma como exemplo as variações da cesta básica na cidade de São Paulo, por período de governo, de 2011 a 2023:
É o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) que define a inflação no Brasil e se baseia na variação de preço de uma série de itens e serviços. Enquanto a variação da taxa durante os quatro anos do governo Bolsonaro ficou em 27,12% (similar aos 26,62% e 27,83% das gestões anteriores), a cesta básica em São Paulo subiu mais que o dobro no mesmo período (68%).
“Os preços podem não variar ou até caírem e, mesmo assim, o custo de vida ser elevado, pois no passado recente os principais itens do orçamento, alimentação, gás, energia, subiram muito acima da média geral de preços e a maior parte da população perdeu poder de compra”, explica Sandi.
Causas
Fato é que em 2024 o custo da cesta básica tem registrado crescimento. Sobre isso, a economista aponta: “A alta recente, depois de um ano de queda, foi puxada principalmente pelo grupo de produtos in natura, como batata, tomate, banana, etc., em razão da instabilidade climática [El Niño]”.
Os alimentos in natura, ou naturais, são aqueles obtidos diretamente de plantas ou animais e consumidos sem alterações. “Frequentemente têm uma variação maior para cima ou para baixo nos preços por conta do clima, da safra e dos ciclos de produção mais curtos”, comenta Sandi.
O impacto de eventos climáticos extremos no Brasil também é destacado pelo pesquisador Bruno Bassi como causa da alta nos preços: “afeta diretamente a produção, principalmente de hortaliças, frutas e alguns legumes que são menos resistentes a variações nas condições de plantio”, afirma.
Membro do portal De Olho nos Ruralistas, Bassi cita como exemplo o tomate, que acumula aumento de 13,21% em 2024, 9,85% apenas em março: “há uma questão ligada às mudanças climáticas e o ritmo cada vez mais avançado do aumento de calor nas principais regiões produtoras do Brasil”. E adverte: “Isso é, em grande parte, um reflexo do próprio sistema agrícola produtivo do país”.
Redução na área de plantio
“Aí a gente entra nas questões mais estruturais. Por quê? O Brasil vem sofrendo uma redução contínua nas áreas de plantio destinadas a produtos relativos à segurança alimentar”, assevera Bassi.
Em 2006, o Ministério da Saúde publicou o Guia Alimentar para a População Brasileira, que recomenda o consumo dos alimentos naturais e minimamente processados para as ações de promoção da saúde e da segurança alimentar e nutricional no Brasil.
“Você tem menos áreas, ou áreas iguais com uma demanda maior desses alimentos, o que afeta essa lógica de distribuição e consumo, portanto, aumentando os preços”, segue Bassi. É o caso do arroz e do feijão, que nos últimos 16 anos perderam 30% do território de plantio para a soja e o milho. “Isso vem acontecendo em todo país”, alerta.
Somam-se a essa questão a crise econômica presente no país nos últimos anos e os efeitos da pandemia da covid-19, um contexto que levou especialmente os pequenos produtores ao endividamento:
“Esse estrangulamento gera uma situação de bastante insegurança, porque, a qualquer momento, diante de uma quebra de safra ou de uma condição climática adversa, há uma flutuação muito grande na disponibilidade de produtos e, portanto, de preços”, diz Bassi.
Para o especialista, o avanço das commodities é um aspecto central da inflação de alimentos e insegurança alimentar no Brasil: “é fundamental discutir o papel do agronegócio, cujos interesses, especialmente das grandes corporações agroexportadoras, avança sobre territórios antes consagrados à produção alimentícia para o consumo das famílias brasileiras”, denuncia.
No mesmo sentido vai Daniela Sandi: “isso traz pressão sobre esses itens essenciais da mesa do brasileiro”. Ela destaca que a produção de itens como a soja é mais rentável por ser destinada à exportação – paga em dólares – o que diminui a oferta no mercado interno e também eleva os preços:
“E essa alta não é neutra. Quem mais é impactado é a população de menor renda, que tem proporcionalmente um peso maior da alimentação [em sua renda]. Mais recentemente, foi o caso do arroz, produto que mais subiu de preço na cesta básica, justamente pelo grande volume exportado”, avalia Sandi.
Na Bolívia, a chave foi virada há mais de 15 anos
“Cada país deve garantir a terra para os pequenos produtores. Deve-se canalizar o financiamento neles, melhorar a tecnologia para aumentar a produtividade e garantir a eles um mercado justo”, propõe Remmy Gonzáles, ex-ministro do Desenvolvimento Rural e Terras no governo de Luis Arce, na Bolívia.
O médio e o grande empresário, ele confirma, estão interessados em adquirir maior capital, e assim buscam utilizar todas as superfícies possíveis para itens de exportação: “se não houver pequenos produtores que se dediquem aos alimentos frescos, às hortaliças, aos tubérculos, é muito difícil”, assinala.
Gonzáles é engenheiro agrônomo e entre 2008 e 2009 integrou também a equipe de Evo Morales, como vice-ministro do Desenvolvimento Rural e Agropecuário. Portanto, foi parte da elaboração de políticas robustas de controle de preços e de segurança e soberania alimentar presentes ainda hoje na Bolívia – exemplos para a América Latina.
Em 2007 e 2008, o país sofreu altas taxas de inflação, 11,73% e 11,85%, respectivamente. Duas causas foram identificadas: o aumento nos países vizinhos e a ação dos grandes empresários que começaram a elevar os preços para desestabilizar a economia e o governo de Evo. “Tivemos que tomar várias medidas, porque somos conscientes de que segurança alimentar só é garantida com abastecimento, acessibilidade e disponibilidades dos produtos”, conta Remmy.
Uma das primeiras ações foi criar a Empresa de Apoio à Produção de Alimentos (Emapa), que subsidia sementes e insumos para o setor agrícola, além de comprar a produção a um custo de 15% a 20% acima do mercado para ser vendida a preços mais baixos para os consumidores. “Somam-se a isso financiamentos como o Programa de Alianças Rurais, onde os produtores são financiados em 70% e colocam os outros 30%”, detalha Remmy.
O governo boliviano também dedica políticas especialmente aos pequenos agricultores. O país possui mais de 800 mil unidades produtivas, sendo que 92% pertencem à agricultura familiar: “eles são incentivados por meio de programas de hortaliças e também de tubérculos e raízes, como a batata e outros produtos”, afirma Remmy.
Outras duas ações do Estado boliviano, decisivas na contenção da inflação, são a verificação contínua dos preços nos mercados – através do Ministério da Economia e do Ministério do Desenvolvimento Rural – e o controle de exportações: “primeiramente, é preciso garantir o mercado interno, e se está garantido e não há uma inflação elevada, permite-se a exportação do restante dos produtos”, cita o ex-ministro.
É neste sentido que Remmy diferencia e valoriza a lógica dos pequenos agricultores: “eles têm outra visão, inclusive, muito deles se dedicam à produção ecológica orgânica, tentam ser mais amigos da Pachamama [Mãe Terra], têm outra composição produtiva”. E completa: “há uma tremenda economia para a população e para o Estado em regular, apoiar e fomentar sua produção”.
Ações do Governo Lula
“Várias medidas já estão em curso para melhorar o acesso aos alimentos básicos, como o Plano Safra, que fortalece a agricultura familiar, auxiliando a ampliação da produção de itens essenciais, como feijão, arroz e hortifrúti, e as políticas de estoques públicos, além da recuperação da renda, que é fundamental”, elenca Daniela Sandi, do Dieese.
De fato, o Governo Lula retomou o aumento do salário mínimo com ganho real após anos de reajustes, durante os mandatos de Temer e Bolsonaro (2016 – 2022), baseados apenas na inflação. Em 2024, o piso subiu de R$ 1.320 para R$ 1.412, uma alta de 7%, acima da soma da inflação e do crescimento do PIB (6,85%).
“São cerca de 60 milhões de pessoas que têm sua renda referenciada no salário mínimo. O peso da alimentação na renda dessas famílias é proporcionalmente maior”, explica Sandi.
Já com o Plano Safra – responsável por oferecer crédito, incentivos e políticas ao setor agrícola, dos familiares ao mega produtores – o Governo Federal pretende estimular a diversificação dos alimentos produzidos, contribuindo para a soberania alimentar.
Ainda no âmbito do programa, Lula declarou, em junho de 2023, que pretende retomar a Política de Garantia de Preços Mínimos, por meio da qual o governo também pode incentivar o plantio de determinadas culturas, mas se compromete a comprar produção em excesso por um valor acima do mercado, evitando prejuízos ao setor agrícola. A quantia adquirida é estocada.
E por falar em estocar, também em junho de 2023, a atual gestão anunciou a retomada dos estoques públicos, administrados pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e abandonados pelos últimos governos:
“São estratégicos para a soberania e a segurança alimentar, sendo uma das ferramentas que o governo tem para atuar quando o preço dos alimentos dispara”, salienta Sandi. A Conab iniciou com a compra de 500 mil toneladas de milho em 2023. A proposta é garantir que o grão não falte nas granjas, impedindo a alta no preço do frango, dos ovos e da carne suína.
Vale dizer que os resultados da medida não são imediatos. Porém, a economista explica: “Sinaliza para o agricultor, para o mercado e para a população uma segurança maior na estabilidade dos preços e abastecimento”.
Dá para ir além…
“Temos iniciativas focadas no crédito, porém ainda precisamos de um programa estrutural de fomento à agricultura familiar, especialmente a agricultura de base camponesa e agroecológica, praticada nos assentamentos da reforma agrária, para que esse alimento chegue nas cidades de forma direta”, afirma Bruno Bassi.
O pesquisador explica: construir e fortalecer as cadeias diretas é fazer com que o alimento saia do campo e chegue aos consumidores sem atravessadores, ou seja, livre da intermediação das redes de supermercados e distribuidores atacadistas e varejistas, que não apenas encarecem o custo final, mas têm uma lógica pautada no desperdício.
“Temos, por exemplo, a Missão Josué de Castro, que visa alimentar cinco milhões de pessoas através de cadeias diretas e das cozinhas solidárias”, cita Bassi. A ideia do programa é construir infraestruturas de produção, processamento e logística para beneficiar 1,5 milhões de pessoas no Nordeste e Sudeste, e de 500 mil a 1 milhão no Sul, Norte e Centro-Oeste.
O projeto une forças de pelo menos 20 organizações, incluindo o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), e tem ainda ações ligadas a meio ambiente, inovação, comunicação, arte e cultura.
Quanto ao desperdício de alimento nas grandes redes de supermercado, Bassi observa: “É um problema estrutural no Brasil”. Ele indica ações como o repasse de produtos a iniciativas focadas em segurança alimentar, a fim de evitar perdas.
Feiras de preço justo na Bolívia
Com as políticas de incentivo de Evo Moraes aos agricultores e a consequente queda no custo dos alimentos, Remmy Gonzáles conta que o governo passou a lidar com os ranqueros, que compravam os produtos a preço baixo nas áreas de produção e vendiam caro na cidade. A solução foi criar, a partir de 2014, as Feiras de Peso e Preço Justo.
“O Estado teve que intervir para que os consumidores pudessem comprar diretamente, evitando assim a alta e a especulação dos preços dos principais alimentos”, explica o engenheiro.
Como funciona: o Ministério do Desenvolvimento Rural e Terras (MDRyT) contacta produtores para que vendam os alimentos nas feiras, que acontecem ao longo do dia, em datas pré-determinadas e próximas de mercados, para que a população possa comparar e escolher onde comprar. Em alguns casos, o MDRyT faz uma parceria com as prefeituras para ajudar os agricultores com o custo do transporte.
“Quando menos imaginamos, diante de um problema climático, um bloqueio de estrada, ou algo assim, os mercados aproveitam imediatamente e especulam com os preços, e para evitar isso temos que constantemente fazer as feiras”, reforça Gonzáles, que destaca: “é uma luta constante”.
Denuncie
No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor veda o preço abusivo, caracterizado como a prática de “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”. Caso se depare com casos como esse no mercado perto de você, denuncie. A reclamação pode ser feita no Procon ou através do site www.consumidor.gov.br, do Governo Federal.
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– Fotos dos entrevistados no início da matéria: Bruno Bassi: arquivo pessoal / Daniela Sandi: Sintrajufe-RS / Remmy Gonzáles: FAO/Max Valencia