O artigo que publicamos a seguir, baseado nas experiências dos últimos 40 anos, analisa e critica a forma como o partido alemão “Os Verdes” se transformou dum partido pacifista num partido belicista e apoiante da OTAN, desde que chegou ao poder, isto é, ao governo federal da Alemanha (através da participação numa coligação com os social-democratas entre 1998-2005, e com os social-democratas e os liberais a partir de 2021).


Leo Ensel (*) para a publicação online Infosperber

O partido dos “Verdes” não tem hoje nada em comum – nem sequer o nome — com o partido que entrou para o Parlamento Federal da Alemanha (Bundestag) em 1983. Uma crítica póstuma.

Votou nos Verdes durante trinta anos, mas deixou de o fazer há dez: O escritor e jornalista Leo Ensel é um investigador de conflitos especializado na região pós-soviética.

Caros Verdes,

a vossa política, que durante as últimas duas décadas e meia não teve nada, absolutamente nada, a ver com as vossas raízes do movimento pacifista dos anos 80 – um facto que aparentemente parece incomodar muito pouca gente; e do qual, na verdade, também muito pouca gente se apercebe — é pura e simplesmente insuportável. É uma política que grita por ser contradita. Em resumo: espero que vocês e a AfD [partido da extrema-direita na Alemanha] sofram um desastre retumbante, o vosso Waterloo, nas próximas eleições europeias! Dum modo geral, gostaria de vos ver de volta o mais rapidamente possível à merecida bancada da oposição no Bundestag. E isto vindo de alguém que votou em vós com tanta fidelidade e obediência durante 30 anos, como os meus pais anteriormente haviam votado na CDU [partido Cristão-Democrata da Alemanha].

Mas, nos últimos dez anos, isso acabou de vez para mim.

Uma nota breve sobre a minha pessoa: tal como centenas de milhares de outras pessoas, saí à rua na Alemanha Ocidental nos anos 80 e manifestei-me contra a instalação de mísseis nucleares de médio alcance que, numa “emergência”, poderiam ter arrasado todas as grandes cidades ocidentais da União Soviética em oito minutos, transformando milhões de cidadãos soviéticos em cadáveres, e provocando por sua vez um inferno nuclear na Europa Ocidental. Nessa altura, vocês eram a nossa esperança. Quando vocês entraram pela primeira vez no Bundestag, na Primavera de 1983, eram os representantes do movimento pacifista no Parlamento. E, naquele tempo, vocês deram um forte abanão no establishment – um facto que, ainda hoje, temos de reconhecer.

A Ecopaz

A “Ecopaz” („Ökopax“) era a palavra mágica na altura. Uma palavra que, infelizmente, há muito foi esquecida!

A ecologia, a luta contra a destruição do meio-ambiente, aliada à luta pela paz, ou seja, pelo desarmamento, pela superação dos blocos militares e por um mundo sem armas de destruição maciça, em suma: as lutas contra a destruição de todas as formas de vida no nosso planeta – seja através duma guerra ou “pacificamente” – estavam naquela altura naturalmente interligadas entre si, não só para vocês, mas também para todas as outras pessoas que se mostravam altamente preocupadas. Todos estavamos conscientes de que se tratava duma única e mesma batalha, mas em frentes diferentes.

O mesmo se passava com os direitos humanos: Petra Kelly [uma das fundadoras do partido dos Verdes], vestindo uma T-shirt com o símbolo “Transformar as espadas em arados” do movimento pacifista da RDA [República Democrática da Alemanha], um movimento que era perseguido pelo Estado, encontrou-se com o Presidente do Conselho do mesmo Estado, Erich Honecker, em Berlim Leste, a 31 de Outubro de 1983, juntamente com os deputados Verdes ocidentais Gerd Bastian, Antje Vollmer, Lukas Beckmann e Otto Schily, e a seguir com ativistas dos direitos cívicos que estavam na oposição. Em Maio do mesmo ano, Kelly, Bastian e outros VERDES chegaram a ser detidos por um curto período de tempo, quando exibiram um cartaz exigindo “Desarmamento a Leste e a Oeste” na Alexanderplatz [na altura, a praça central de Berlim-Leste]. Mais tarde, em Novembro de 1987, protestaram contra a prisão de vários membros da Biblioteca Ambiental de Berlim-Leste. Numa palavra: naquela altura, vocês eram incorruptíveis e não se deixavam manipular por nenhum dos lados.

Mas isso foi há já muito, muito tempo!

Hoje, vocês nem sequer têm o mesmo nome que o partido de então [antes da reunificação da Alemanha: “Os Verdes”, e agora: “Aliança90/Os Verdes”]. Sois um edifício antigo que foi completamente destruído e do qual só resta a fachada. O vosso “pecado-original” aconteceu com a aprovação, por Joschka Fischer [ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1998-2005, membro do partido Os Verdes], do envio de tropas alemãs contra a República Federal da Jugoslávia na Primavera de 1999, a primeira vez após a Segunda Guerra Mundial,  e ainda por cima sem um mandato ao abrigo do direito internacional. Joschka Fischer teve até que invocar nada menos do que o campo de concentração de Auschwitz para dar a volta à situação e convencer a base do vosso partido, então ainda antimilitarista, a se deixar arrastar para a guerra!

Vocês perderam definitivamente a vergonha

Hoje em dia, vocês já não precisam dar cambalhotas de cortar a respiração. Mas os pacifistas e os críticos do rearmamento dentro do vosso partido, esses sim. Mesmo aqueles que hoje estariam a favor dum cessar-fogo na Ucrânia, ou estão mortos, ou estão neutralizados, ou estão enojados, ou amadureceram com a idade, ou voluntariamente se calaram. E vocês estão de volta às alavancas do poder: com uma ministra dos Negócios Estrangeiros que salta por cima de cadáveres em defesa dos direitos humanos, e um Vice-Chanceler que faz vénias perante o príncipe herdeiro da Arábia Saudita e presumível assassino de Kashoggi. Mas, em vez de respeitarem a Carta das Nações Unidas e o direito internacional, tudo o que vocês fazem é tentar estabelecer uma sinistra “ordem mundial baseada em regras” que não está codificada em lado nenhum e que, aparentemente, não tem problemas em classificar as vítimas civis das atuais guerras como “crimes de guerra” ou como “danos colaterais”, conforme os responsáveis pelas mesmas.

Pelo menos vocês falais sem rodeios: a vossa ministra dos Negócios Estrangeiros não quer apenas “arruinar” a Rússia, ela já está a “travar uma guerra contra a Rússia”! Em vez de fazer tudo o que está ao seu alcance para pôr termo, o mais rapidamente possível, à matança mútua na Ucrânia, vocês, juntamente com o FDP [partido liberal], a CDU e partes do SPD [partido social-democrata], estão a participar numa competição estridente para se superarem uns aos outros no que diz respeito ao fornecimento de armas. Sem pestanejar, apunhalam pelas costas o vosso Chanceler Federal (que parece estar a mostrar ter espinha dorsal pela primeira vez) com os vossos pedidos de fornecimento de mísseis de cruzeiro do tipo Taurus — com os quais a Ucrânia poderia, no mínimo, pulverizar o Kremlin e os depósitos de armas nucleares russos — e amanhã irão também exigir “botas europeias no terreno!” e “alemães para a frente!”, numa demonstração de solidariedade e sacrifício. Mas não mexerão um único dedo em prol de negociações ou de uma solução diplomática.

E quais são as consequências para a maltratada Ucrânia, que está a ser defendida até à morte — inclusive com as armas que vocês exigiram e forneceram –, onde vastas áreas do solo já estão contaminadas para as próximas décadas por minas, urânio e munições de fragmentação, e onde os soldados que restam são enviados em missões suicidas, mesmo depois de já terem sido mortas muitas dezenas de milhares de pessoas? E quais são as consequências para o nosso país, que haveis jurado proteger do mal, mas que na pior das hipóteses vocês estão agora a arrastar para a Terceira Guerra Mundial? – Sim, tudo isso, que importa?

Sejamos honestos: quando se trata de rearmamento, de forças armadas e de guerras, vocês não passam de oportunistas e de apologistas do escalonamento – vocês são o partido da militarização da vida “woke”, agora transformada em novo estilo de vida! Petra Kelly, Antje Vollmer e, mais ainda, Heinrich Böll — cujo nome vocês, injusta e descaradamente, reivindicam como vosso — estão agora a dar voltas nos seus túmulos.

Vocês é que decidem o que é diversidade!

Sob a vossa colorida bandeira arco-íris, até a mais bizarra encenação da mais exótica inclinação sexual tem o seu lugar de honra – mas não há ninguém que defenda o silêncio das armas na guerra da Ucrânia e o desanuviamento com a Rússia, afinal uma questão de guerra e paz, não: de vida ou de morte!

Em vez disso, vocês estão a banir publicamente os poucos políticos, jornalistas e especialistas que ainda se atrevem a intervir a favor da diplomacia e do desanuviamento, ou mesmo de um congelamento da guerra na Ucrânia. Vocês asseguram, juntamente com os principais meios de comunicação social, que eles não possam rigorosamente dizer mais nada, marginalizando-os, silenciando-os — e vocês ainda se orgulham disso! É isso o que “a tolerância e a diversidade” representam para vós.

E vocês conseguem tudo isso com uma enorme facilidade, porque já há muito que vocês se tinham tornado nos governantes secretos desta sociedade, muito antes ainda de terem conseguido voltar ao poder. Vocês conquistaram o Quarto Poder sem este ter dado sequer luta. Quase todos os meios de comunicação social relevantes, até mesmo a outrora tão desprezada imprensa Springer [o consórcio com os tabloides mais sensacionalistas da imprensa alemã], estão agora a comer da vossa mão. Eles tornaram-se nos vossos porta-vozes, e ao mesmo tempo nos vossos aficionados. E isso tem consequências: Hoje em dia, é preciso muito mais coragem, e sobretudo “coragem moral”, para enfrentar o vosso assumido sacrossantismo, do que para insultar o Papa!

Mas onde é que vocês estavam quando o mais importante tratado de desarmamento na história mundial, o Tratado INF — na altura [1987] o resultado inesperadamente feliz do vosso próprio empenho – foi “por água abaixo” [em 2019, por vontade de Trump]? Quem é que na altura “deu a cara”, da vossa parte, para salvar esse Tratado enquanto ainda não era tarde demais? Não me lembro de ter ouvido um único protesto sequer da vossa parte. E por que razão vocês nada fazem senão recusar quaisquer esforços diplomáticos, agora que as coisas estão a correr tão mal? Porque é que deixam todas as atividades mais urgentes para países como o Brasil, a África do Sul, a China, a Itália, ou até mesmo o Vaticano? Que enorme proeza para um partido que tem as suas raízes no movimento pela paz!

“Reconhecê-los-ás pelos seus frutos”

A vossa consciência patologicamente boa, a superioridade moral que carregam convosco como uma custódia, a vossa insistência inquisitorial no uso da mais recente linguagem politicamente correta, o vosso paternalismo carinhoso em relação a todas as minorias do planeta — que elas têm de suportar, quer o queiram quer não –, o vosso jacobinismo ético, em suma: a vossa presunção tóxica torna-vos cegos e incapazes de reconhecer que, com o vosso diletantismo insensato em matéria de política externa, só estão a enterrar cada vez mais a carroça.

“Reconhecê-los-ás pelos seus frutos”, está escrito num famoso livro! Quais são, então, os vossos frutos? O que é que conseguiram com a vossa estridente orgia de armamentos e de sanções, com a vossa alegada política de direitos humanos? Conseguiram acabar com a guerra na Ucrânia? Salvaram uma única vida humana? Libertaram algum opositor injustamente condenado numa prisão ou num campo de concentração da “Rússia de Putin”? Evitaram alguma organização ONG de ser rotulada como “agente estrangeira”? Ou conseguiram pelo menos esclarecer o “caso Nordstream”?

Lamento, mas a realpolitik não é nada para missionários pretensiosos que querem converter nativos através duma pedagogia negra e que transpiram, por todos os seus poros, a convicção de que o mundo só pode ser curado por eles próprios! Não é nada para pregadores de ajuda ao desenvolvimento que ensinam aos outros como as coisas têm – supostamente – de ser feitas.

Não, a realpolitik — a política que quer realmente fazer a diferença, ou seja, que pode mudar as coisas para melhor ou, ainda mais modestamente, pelo menos evitar o pior, juntamente com os atores que realmente determinam essa mesma política — funciona de forma diferente! Silenciosamente, e não através de “profissões de fé” públicas. A famosa “perfuração lenta de tábuas duras, com paixão mas ao mesmo tempo com sentido das realidades”, o tecer cuidadoso de fios de diálogo, a redução meticulosa da desconfiança a uma velocidade milimétrica durante longos períodos de tempo, a sondagem prudente das possibilidades reais de ação da outra parte, a manutenção paciente e extremamente propensa a perturbações dos contatos pessoais, especialmente em tempos de crise ou mesmo de guerra, numa palavra: a construção de uma confiança básica que seja duradoura, sem a qual nada, mas absolutamente nada funciona – tudo isto se passa num ambiente protegido, não certamente diante de câmaras de televisão a funcionar.

E tudo isso requer profissionais que sejam mestres no seu ofício: Que dominem a mecânica de precisão filigrana da diplomacia; Pessoas que conheçam o outro lado, os seus interesses e valores, a sua história, a sua cultura, os seus traumas e tabus, mas também o seu orgulho, e que estejam ansiosas por compreender tudo isto cada vez melhor e mais profundamente; Pessoas dispostas e capazes de se colocarem na pele dos seus interlocutores, por mais distantes, estranhos ou mesmo antipáticos que pareçam, e de perceberem o mundo a partir da outra perspetiva; Personalidades que não sejam demasiado tímidas para poderem mergulhar nas fossas entupidas da política como trabalhadores de sapa, se necessário para as desentupirem à mão, e até para se sentarem com o “diabo” se for preciso — e que tenham a desenvoltura e a espinha dorsal suficientes para aguentarem soberanamente as agressões morais de que possam ser alvo em público.

No tempo da primeira Guerra Fria, havia personalidades assim, por mais diferentes que tivessem sido as constelações governamentais em que estavam integradas. E foram muito bem-sucedidas.


(*) Leo Ensel

Leo Ensel (“Look at the other side!”) é um investigador de conflitos e formador intercultural especializado no espaço pós-soviético e na Europa Central e de Leste. Publicou sobre temas como “O Medo e armas nucleares”, a psicologia social da reunificação alemã, e estudos sobre a perceção mútua entre russos e alemães. No atual conflito Leste-Oeste, as suas principais preocupações são a ultrapassagem de falsas narrativas, o desanuviamento e a reconstrução da confiança mútua.


O artigo original (em alemão) foi publicado aqui

O artigo foi publicado inicialmente na GlobalBridge.

Tradução do alemão por Vasco Esteves para a PRESSENZA


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