O discurso que não pude fazer, porque a polícia alemã, na última sexta-feira, invadiu em Berlim (ao estilo dos anos 1930) o local do nosso Congresso da  Palestina para o dissolver, logo após duas horas [o Congresso era para durar 3 dias!]. Julguem por vós próprios em que tipo de sociedade a Alemanha se está a converter, quando a sua polícia proíbe as seguintes palavras:


Amigos

Parabéns e obrigado por estarem aqui, apesar das ameaças, apesar da polícia blindada em frente ao local do nosso evento, apesar da imprensa alemã, apesar do Estado alemão, apesar do sistema político alemão que vos demoniza por estarem aqui.

“Porquê um congresso palestiniano, Sr. Varoufakis?”, perguntou-me recentemente um jornalista alemão. Porque, como Hanan Ashrawi disse uma vez: “Não podemos contar com as pessoas silenciadas para nos falarem sobre o seu sofrimento”. Hoje, de forma deprimente, o raciocínio de Ashrawi tornou-se ainda mais forte: Porque não podemos contar com os silenciados, que também estão a ser massacrados e a passar fome, para nos falarem sobre esses massacres e essa fome.

Mas há outro motivo: porque pessoas decentes, como os alemães, estão sendo levadas a trilhar um caminho perigoso rumo a uma sociedade sem coração, permitindo que um outro genocídio seja cometido em seu nome e com a sua cumplicidade.

Não sou judeu nem palestiniano. Mas estou incrivelmente orgulhoso por estar aqui entre judeus e palestinianos – de juntar a minha voz pela paz e pelos direitos humanos universais às vozes judaicas pela paz e pelos direitos humanos universais – juntamente com as vozes palestinianas pela paz e pelos direitos humanos universais. O facto de estarmos aqui juntos hoje, é a prova de que a coexistência não é apenas possível, mas que já está a ser praticada.

“Por que não se faz um congresso judaico, Sr. Varoufakis?”, perguntou-me o mesmo jornalista alemão, que provavelmente se achava esperto. Mas não me importei com a pergunta dele.

Porque, se um único judeu for ameaçado simplesmente por ser judeu, eu usarei a Estrela de David na minha lapela e oferecerei a minha solidariedade – custe o que custar. Para deixar ainda mais claro: se os judeus forem atacados em qualquer lugar do mundo, eu seria o primeiro a fazer campanha para um congresso judaico para expressar a nossa solidariedade.

Da mesma forma que, se os palestinianos forem massacrados simplesmente por serem palestinianos – de acordo com o dogma de que eles devem ter sido do Hamas se agora estão mortos -, eu usarei o meu keffiyeh e expressarei a minha solidariedade, custe o que custar.

Os direitos humanos universais, ou são universais ou não significam nada.

Com isso em mente, respondi à pergunta do jornalista alemão com algumas perguntas minhas:

  • Será que há 2 milhões de judeus israelitas, que foram expulsos das suas casas para uma prisão a céu aberto há 80 anos, que ainda estão presos nessa prisão a céu aberto, sem acesso ao mundo exterior, com um mínimo de comida e de água, sem chances de terem uma vida normal, sem poderem viajar para qualquer lugar, e que desde há 80 anos são regularmente bombardeados? Não há.
  • Os judeus israelitas estão a ser deliberadamente mortos à fome por um exército de ocupação, enquanto os seus filhos se contorcem no chão e gritam com fome? Não estão.
  • Há milhares de crianças judias feridas, sem pais, sobreviventes rastejando pelos escombros das suas antigas casas? Não há.
  • Os judeus israelitas estão hoje a ser bombardeados pelos aviões e bombas mais avançados do mundo? Não estão.
  • Os judeus israelitas estão a sofrer um ecocídio total no bocado de terra que ainda podem chamar sua, sem uma única árvore sob a qual possam buscar sombra ou cujos frutos possam saborear? Não estão.
  • As crianças judias israelitas estão a ser mortas hoje por atiradores de elite sob as ordens de um estado-membro da ONU? Não estão.
  • Os judeus israelitas estão a ser hoje expulsos das suas casas por bandos armados? Não estão.
  • Israel está a lutar hoje pela sua existência? Não está.

Se a resposta a qualquer destas perguntas fosse “sim”, eu estaria participando dum Congresso de Solidariedade Judaica hoje.

 

Amigos,

Hoje gostaríamos de ter tido um debate decente, democrático e de respeito mútuo com pessoas que pensam diferente de nós sobre como podemos alcançar a paz e os direitos humanos universais para todas as pessoas, judeus e palestinianos, beduínos e cristãos, do rio Jordão ao Mar Mediterrâneo. Infelizmente, todo o sistema político alemão decidiu não permitir que isso aconteça. Numa declaração conjunta, não apenas a CDU-CSU [conservadores] ou o FDP [liberais], mas também o SPD [social-democratas], os Verdes, e espantosamente também dois líderes do Partido Die Linke [esquerda], uniram forças para garantir que um debate civilizado como este, no qual é perfeitamente possível discordar entre si, nunca possa ocorrer na Alemanha.

Eu digo a eles: Vocês querem-nos silenciar. Querem proibir-nos. Demonizar-nos. Acusar-nos. Portanto, vocês não nos deixam qualquer escolha a não ser responder às vossas acusações com as nossas acusações. Foi uma escolha vossa, não nossa.

Vocês acusam-nos de ódio antissemita.

  • Nós acusamo-vos de serem os melhores amigos dos antissemitas, ao equipararem o direito de Israel em cometer crimes de guerra ao direito de defesa dos judeus israelitas.

Você acusam-nos de apoiar o terrorismo.

  • Nós acusamo-vos de equipararem a resistência legítima contra um estado de apartheid a atrocidades contra civis. Atrocidades que sempre condenei e condenarei, independentemente de quem as cometa: palestinianos, colonos judeus, a minha própria família, quem quer que seja.
  • Nós acusamo-vos de não reconhecerem o dever do povo de Gaza em derrubar o muro da prisão aberta em que está encurralado há 80 anos, e de equipararem o derrube desse muro da vergonha – que não é mais defensável do que o antigo Muro de Berlim – a atos de terror.

Vocês acusam-nos de banalizar o terror do Hamas a 7 de Outubro passado.

  • Nós acusamo-vos de banalizarem os 80 anos de limpeza étnica dos palestinianos por parte de Israel, assim como o estabelecimento de um sistema de apartheid blindado no território de Israel-Palestina.
  • Nós acusamo-vos de banalizarem o facto de que Netanyahu apoiou o Hamas durante anos, para destruir a solução de dois Estados de que vocês dizem ser partidários.
  • Nós acusamo-vos de banalizarem o terror sem precedentes do exército israelita contra o povo de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém-Leste.

Vocês acusam os organizadores do congresso de hoje, de estarem “desinteressados em falar sobre as possibilidades de coexistência pacífica no Médio-Oriente tendo como pano de fundo a guerra em Gaza”. Vocês estão falando sério? Vocês perderam a cabeça?

  • Nós acusamo-vos de apoiarem o Estado alemão que, depois dos EUA, é o maior fornecedor de armas para o governo de Netanyahu, que quer usá-las para massacrar palestinianos a fim de tornar impossível uma solução de dois estados e a coexistência pacífica entre judeus e palestinianos.
  • Nós acusamo-vos de nunca responderem à pergunta a que todos os alemães deverão responder: Quanto sangue palestiniano terá ainda de correr, antes que o vosso justificado sentimento de culpa pelo Holocausto seja redimido?

Para ser claro: estamos aqui em Berlim com o Congresso da Palestina porque, ao contrário do sistema político alemão e da média alemã, condenamos o genocídio e os crimes de guerra, independentemente de quem os cometa. Porque rejeitamos o apartheid no território da Israel-Palestina — independentemente de quem esteja em vantagem –, tal como rejeitámos o apartheid nos estados norte-americanos do sul ou na África do Sul. Porque somos a favor dos direitos humanos universais, da liberdade e da igualdade entre judeus, palestinianos, beduínos e cristãos na antiga terra da Palestina.

E para que estejamos sempre preparados para responder às perguntas, legítimas ou cruéis, que nos possam fazer:

Eu condeno as atrocidades do Hamas?

Eu condeno toda e qualquer atrocidade, independentemente de quem seja o autor ou a vítima. O que eu não condeno, é a resistência armada a um sistema de apartheid concebido como parte de um programa de limpeza étnica de combustão lenta, mas imparável. Noutras palavras, condeno qualquer ataque a civis e, ao mesmo tempo, celebro qualquer pessoa que arrisque a sua vida para derrubar o muro.

Mas Israel não está a lutar pela sua sobrevivência?

Não, não está. Israel é um Estado com armas nucleares, talvez com o exército mais avançado do mundo, e conta com todo o arsenal militar dos EUA que está por trás dele. Não há comparativamente qualquer simetria com o Hamas, um grupo que pode infligir sérios danos aos israelitas, mas que não é capaz de derrotar as forças armadas de Israel ou de impedir que Israel prossiga o lento genocídio dos palestinianos sob o sistema de apartheid estabelecido, com o apoio desde há muito tempo dos EUA e da UE.

Os israelitas não temem, com razão, que o Hamas os queira exterminar?

É claro que sim! Os judeus sofreram um Holocausto que foi precedido por pogroms, e um antissemitismo profundamente enraizado há séculos quer na Europa quer na América. É natural que os israelitas vivam com medo de outro pogrom se o exército israelita ceder. Ao impor o apartheid aos seus vizinhos e ao tratá-los como sub-humanos, o Estado israelita alimenta o fogo do antissemitismo, dá poder aos fanáticos entre os palestinianos e os israelitas que só se querem destruir uns aos outros e, em última análise, contribui para a terrível insegurança que consome os judeus quer em Israel quer na diáspora. O apartheid contra os palestinianos é uma ideia extremamente contraprodutiva quando se trata da autodefesa de Israel.

E quanto ao antissemitismo?

O antissemitismo é sempre um perigo claro e presente. E deve ser erradicado, especialmente nas fileiras da Esquerda Global e dos palestinianos que lutam pelos direitos civis dos palestinianos – em todo o mundo.

Então, porque é que os palestinianos não lutam pelos seus objetivos por meios pacíficos?

Eles lutaram. A OLP reconheceu Israel e renunciou à luta armada. E o que receberam eles em troca? Humilhação absoluta e limpeza étnica sistemática. Isso deu origem ao Hamas e fez com que este aparecesse aos olhos de muitos palestinianos como a única alternativa a um genocídio lento debaixo do apartheid de Israel.

O que deve ser feito agora? O que poderia trazer a paz a Israel e à Palestina?

  • Um cessar-fogo imediato.
  • A libertação de todos os reféns: aqueles mantidos pelo Hamas, e os milhares de reféns palestinianos mantidos por Israel.
  • Um processo de paz sob os auspícios das Nações Unidas, apoiado por um compromisso da comunidade internacional em acabar com o apartheid e em garantir direitos civis iguais para todos os cidadãos.
  • Quanto à questão do que deverá substituir o apartheid: israelitas e palestinianos devem escolher, conjuntamente, entre a solução de dois Estados ou a solução de um único Estado federal e secular para todos.

 

Amigos,

Estamos aqui porque a vingança é uma forma preguiçosa de manifestarmos o nosso pesar.

Estamos aqui para fazermos campanha, não pela vingança, mas pela paz e coexistência entre Israel e a Palestina.

Estamos aqui para dizermos aos democratas alemães, inclusive aos nossos ex-companheiros do DIE LINKE [partido da Esquerda], que eles já se cobriram de vergonha o tempo suficiente, que uma injustiça não se combate com outra, e que permitir que Israel saia impune dos seus crimes de guerra não ajuda a Alemanha a melhor se reconciliar com seu passado.

Além do congresso de hoje, nós, na Alemanha, temos o dever de mudar o discurso. Temos o dever de convencer a grande maioria dos alemães decentes de que os direitos humanos universais são a coisa mais importante. Que “nunca mais” significa realmente “nunca mais”. Para qualquer um, seja ele judeu, palestiniano, ucraniano, russo, iemenita, sudanês, ruandês – para todos, em todos os lugares.

Nesse contexto, tenho o prazer de anunciar que o MERA25, partido político alemão do DiEM25, estará no boletim de voto das eleições para o Parlamento Europeu no próximo mês de Junho – para obter o voto dos humanistas alemães que anseiam por alguém no Parlamento Europeu que represente a Alemanha e que denuncie a cumplicidade da UE no atual genocídio – uma cumplicidade que é o maior presente que a Europa pode dar aos antissemitas da Europa e não só.

Saúdo-vos a todos, e sugiro que nunca nos esqueçamos de que nenhum de nós é livre enquanto um de nós estiver acorrentado.


Tradução por Vasco Esteves para a PRESSENZA