Este artigo faz parte da série “5o anos depois: VIVA a REVOLUÇÃO DOS CRAVOS!” que a PRESSENZA está a publicar desde meados de Março 2024.
A “Revolução dos Cravos” 1974-75 trouxe aos portugueses a liberdade após 48 anos de fascismo, e às colónias portuguesas de África a independência após 500 anos de domínio imperial.
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Entrevista com Pedro Esteves
Pedro Esteves é formado em Engenharia Civil pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa. Após a Revolução dos Cravos em Portugal, entre 1979 e 2010, lecionou jovens e adultos nas cidades de Almada, Lisboa, Portimão e Seixal. O seu tema profissional foi principalmente a Matemática. Preocupou-se sempre com as raízes culturais da educação, tendo por isso entrado várias vezes em conflito com os currículos oficiais.
Em 2023, foi editado o seu livro “O conflito sobre as escolas: Participação versus Hierarquização – Testemunho dum professor”. A PRESSENZA publicou na hora uma apresentação desse livro. Hoje, na data em que recordamos a Revolução do Cravos, ocorrida há 50 anos, entrevistamos aqui o autor, para melhor compreendermos o que mudou no Ensino em Portugal desde então, e porquê.
(Pressenza:) Pedro, podes explicar-nos, brevemente, como era o Ensino em Portugal antes do 25 de Abril de 1974?
(Pedro Esteves:) Eu não sou especialista da educação. Fui aluno, fui professor e, como tal, procurei compreender (e influenciar) o contexto em que estudei e trabalhei. É essa a fonte do meu conhecimento, um permanente e interativo processo de ação, investigação e formação.
Como aluno, apenas conheci as escolas anteriores à mudança de regime político, ocorrida em 1974. Cada escola tinha um reitor, a esmagadora maioria dos alunos limitava-se a estudar durante 4 anos (e muitos nem os terminavam, ou, sequer, iniciavam), os professores eram quase exclusivamente expositivos (embora alguns fossem pedagogicamente interessantes), poucas ou nenhumas atividades havia para além das aulas. Tínhamos escolas para meninas, e escolas para meninos, e a intervenção dos pais nelas era praticamente nula.
No final dos anos 60 houve algumas iniciativas para melhorar a filosofia curricular, umas vindas do próprio regime político, outras vindas de grupos de professores. No entanto, as mudanças ocorridas em 1974 vieram reequacionar globalmente o contexto em que essas iniciativas decorriam, tendo as que vinham de cima perdido a legitimidade.
E que mudou, e porquê, nos tempos que imediatamente se seguiram à Revolução?
Pouca coisa mudou de um dia para o outro. O mais importante foi lento, porque tinha de o ser.
A mudança mais rápida foi a da organização das escolas, por iniciativa dos professores e dos alunos. Passou a haver democracia, sobretudo participativa. Mas, ao fim de dois anos, as pressões vindas de cima reduziram essa organização a uma democracia meramente representativa, começando então a surgir tensões entre as diversas maneiras de pensar na escola, a que não foram alheias as opções políticas de cada um.
A mais visível das mudanças foi a das iniciativas extracurriculares: dos professores e dos alunos surgiram clubes de todo o tipo; publicaram-se jornais de escola, de turma, de grupo; saía-se da escola, e convidava-se para a escola; organizavam-se torneios e concertos. Mas essas iniciativas dependiam muito de quem estava em cada escola e da boa ou má vontade de quem havia sido eleito para a gerir.
Mais lentamente, começou a crescer a consciência entre os professores de que as aulas deveriam decorrer de modo diferente de outrora, sobretudo aceitando e favorecendo a plena participação dos alunos na sua aprendizagem e mobilizando maior diversidade de ferramentas para que eles o pudessem fazer. Estavam a chegar os computadores em formato acessível, mas os instrumentos mais mobilizados foram, no caso da Matemática, os chamados materiais manipuláveis. Houve muitas iniciativas individuais e de grupo nessa direção, embora pouco conhecidas, pois os inovadores têm um dilema: se o são, não têm tempo para divulgar; e se divulgam, não têm tempo para inovar.
Que melhorias houve por exemplo ao nível dos índices de escolarização e de alfabetização, que eram francamente baixos antes de 1974? Tens números sobre isso?
Sim, tenho alguns números.
No início da década de 60 havia pouco mais de um milhão de jovens matriculados nas nossas escolas de ensino não superior; passados trinta anos, no início da década de 90, eles já tinham ultrapassado os dois milhões. Mas, deste grande salto, a maior fatia aconteceu depois do 25 de Abril: em 1976, as crianças inscritas no pré-escolar eram 7,4 % de todas as que tinham idade para nele estar, e em 1991eram 47,1 %; no 1º Ciclo, passou-se de 87,7 % para 100 %; no 2º Ciclo, de 33,5 % para 71,7 %; no 3º Ciclo de 24,8 % para 58,3 %; e no Secundário de 9,2 % para 31 %.
Em 2001 o acesso à escola ainda continuava a crescer, tendo chegado a 74,8 % no pré-escolar, a 87 % no 2º e no 3º Ciclo e a 62,5 % no Secundário.
E que mais mudanças houve no Ensino em Portugal desde os primeiros tempos a seguir ao 25 de Abril até hoje? Que agentes ou fatores foram mais determinantes nessa evolução?
Eu iniciei-me como professor em 1979. Quando deparei com as minhas primeiras turmas constatei duas grandes mudanças em relação aos tempos em que eu próprio fora aluno: miúdas e miúdos estudavam na mesma escola; e em grande parte descendiam de pais que, no seu tempo, tinham abandonado cedo os estudos.
Assim, durante toda a década de 80 e parte da de 90, o sistema escolar esteve sob a pressão de dar resposta a esta enorme e heterogénea entrada de alunos. Por um lado, o Estado teve de dar prioridade à construção de mais escolas e à admissão de mais professores, muitos deles, como eu, sem uma preparação pedagógica prévia (ao ensinarmos, aprendíamos a ensinar). Por outro, foram sobretudo os professores que tinham acabado de chegar que se sensibilizaram para a necessidade de alterar os métodos de ensino e de aprendizagem (não estavam muito deformados pelas pedagogias conservadoras, e sentiam os ventos de mudança que ainda sopravam vindos do 25 de Abril).
Portanto, enquanto o Estado orquestrava a resposta ao «acesso de todos à escola», uns tantos professores ensaiavam respostas a um outro desafio, o do «sucesso escolar para todos».
Mas, no final da década de 80, surgiram três outros fenómenos que viriam a marcar os anos 90 e a ter efeitos duradouros nas escolas. Um deles foi o associativismo dos diversos intervenientes na Educação (alunos, professores, funcionários, pais, investigadores); outro foi a consolidação de Departamentos de Educação no Ensino Superior e, sobretudo ao longo da década de 90 e depois dela, o surgimento de uma grande diversidade de parceiros das escolas; e o terceiro foi a reformulação de todo o sistema escolar, por iniciativa do Estado, que para tal lançou um conjunto de reformas que visavam definir o estatuto de cada ator, instalar uma nova organização nas escolas e modernizar os currículos.
Este conjunto de fatores tornou a década de 90 profundamente contraditória. Com a rede de escolas a estabilizar-se, as atenções de todos os envolvidos na Educação concentraram-se no desafio do sucesso escolar. Para os professores mais ousados, agora inspirados pelo seu recente associativismo, foi um tempo de projetos, que chegaram a abarcar várias escolas e a esboçar redes para além da sua região. Mas, na segunda metade desta década, o papel dos atores externos às escolas, apoiados em sucessivas alterações às reformas que tinham sido antes iniciadas, começou a tornar-se dominante.
Essas reformas a partir dos anos 90 foram consequência da entrada de Portugal em 1986 na União Europeia (que na altura se chamava ainda CEE, Comunidade Económica Europeia), isto é, resultado da pressão uniformizadora da Europa? Dá-nos alguns exemplos…
Um dos nossos principais investigadores, António Nóvoa, resumiu assim as sucessivas influências externas sobre o nosso sistema educativo: nos anos 60, elas vinham da OCDE; a seguir ao 25 de Abril, do Banco Mundial; e, a partir dos anos 80, predominaram as influências europeias (pelo menos até à altura em que ele o escreveu, em 2005).
Ora, a Lei de Bases do Sistema Educativo — ainda hoje, apesar de alguns retoques, ela é a nossa principal referência legal — foi aprovada precisamente em 1986. É pois bem possível que ela tenha resultado da influência dos nossos futuros parceiros europeus.
Mais recentemente, também o FMI exerceu fortes pressões sobre aspetos chave do nosso sistema educativo. E surgiram outras influências, nomeadamente vindas das instituições que organizam os estudos comparativos internacionais, como o PISA.
E como evoluiu o Ensino em Portugal mais tarde, desde os anos 2000 até hoje?
A primeira década deste século foi um tempo de violentos confrontos, desencadeados com o objetivo de controlar, a partir de cima, tudo quanto se passava nas escolas: os currículos foram blindados com múltiplos dispositivos técnicos, afastando a criatividade dos professores; a progressão profissional destes foi congelada; e a gestão das escolas passou a estar nas mãos de diretores, que são uma reincarnação dos reitores de antes do 25 de Abril. Como consequência, os debates públicos, além de minorarem persistentemente a imagem dos professores, foram-se centrando na avaliação dos alunos e das escolas e nos nossos resultados nos estudos internacionais.
Isso foi possível porque o Estado estabeleceu uma aliança com importantes sectores de especialistas, de modo que estes elaboram para ele as principais medidas e, depois, legitimaram-nas publicamente com as suas próprias opiniões. Passámos a estar num sistema profundamente hierarquizado, em que as instituições internacionais definem o rumo, o nosso Estado contrata quem lhe faça as propostas (organizacionais, curriculares, avaliativas), alguns dos mais fortes parceiros (fundações, empresas privadas, municípios) candidatam-se a apoiá-las (e a ser financiados) com os seus projetos e, em cada escola, o diretor evita que as coisas saiam deste caminho.
É assim que a nossa Educação está, cinquenta anos depois do 25 de Abril.
Olhemos agora para o futuro: quais são os desafios mais importantes que o Ensino em Portugal enfrenta hoje ou enfrentará num futuro próximo?
Não me parece que aquilo que se passa em Portugal seja muito diferente do que se passa noutros países ocidentais. Por um lado, a Educação sempre esteve mais ou menos em crise, em qualquer país, apesar de curtos períodos em que parece não o estar. Por outro, há hoje, em todo o mundo, fortes queixas acerca do que está a acontecer, presumivelmente como consequência da influência exercida pela filosofia neoliberal.
Os desafios que o futuro da Educação coloca só podem ser formulados como oposição a essa influência. Mas também têm de ser formulados tendo em conta o paradoxo que é bem visível no nosso país: o desafio do «sucesso escolar para todos» foi razoavelmente resolvido, pois hoje há muito mais jovens a concluir os 12 anos de escolaridade obrigatória e a inscrever-se no Ensino Superior; no entanto o mal-estar entre os alunos e os professores persiste; e há imensos jovens que, terminada a escolaridade obrigatória, só encontram trabalho precário e mal remunerado, sendo muitos deles obrigados a emigrar. Em minha opinião, este paradoxo resulta de se ter confundido «sucesso escolar» com «sucesso educativo»: o primeiro pode ser encarado tecnicamente, o segundo só pode ser encarado socialmente.
Há, no entanto, desafios mais imediatos, sendo um deles a crescente falta de professores nas escolas, ou porque as condições do seu exercício deixaram de ser atrativas, ou até porque se tem propagandeado que os professores de carne e osso irão ser parcialmente substituídos por professores digitais.
Depois há desafios mais filosóficos, como o do significado da Educação que, em vez de ser científica e tecnocraticamente fundamentada, como é hoje, tem de regressar à matriz antropológica que foi há muito esboçada pelos seus melhores pensadores: a interação social, a inserção numa cultura.
E, por fim, há desafios de carácter político, como o da necessidade de uma drástica redução das hierarquias, de modo a libertar a criatividade dos diversos atores e a facilitar a sua articulação.
Que diferenças positivas ou negativas tem o Ensino em Portugal, em comparação com outros países da União Europeia?
Excetuando Portugal, e um pouco da Alemanha, tenho pouco conhecimento direto do que se passa, hoje, na Europa. Portanto, não sei se me posso apoiar no que de vez em quando leio sobre um ou outro país europeu. Por exemplo: agradam-me a maior diversidade curricular, a menor obsessão com os exames e o reconhecimento público da autonomia dos professores. E também, como parece acontecer nos países nórdicos, que se atribua, nos primeiros anos de escolaridade, uma maior importância ao bem-estar dos alunos, em detrimento do seu desempenho curricular.
Há algo que tu achas ser particularmente específico do Ensino em Portugal?
Não deve haver na Europa dos últimos cinquenta anos muitos exemplos semelhantes ao que te descrevi sobre as nossas escolas nos primeiros tempos a seguir ao 25 de Abril. Infelizmente, os seus efeitos libertadores apenas se estenderam até meados dos anos 90.
Por isso, em minha opinião, a comemoração dos cinquenta anos que se passaram desde 1974, deveria limitar-se a evocar a necessidade de regressarmos ao seu espírito inicial.
Vamos dar agora um salto: sabes algo sobre as diferenças entre o ensino em Portugal e noutros países de língua portuguesa como o Brasil, Cabo-Verde ou Angola?
Apenas conheço o pensamento do Paulo Freire e o do Ubiratan de Ambrósio, ambos brasileiros, que são inspiradores em qualquer lado do mundo. E sei que em Cabo Verde a população é, em geral, bastante escolarizada.
Seria muito interessante conhecermo-nos todos melhor, pois falamos a mesma língua!
Uma pergunta de ordem pessoal: das tuas próprias experiências como professor do Ensino Básico em Portugal, quais te marcaram mais positivamente?
Como experiência de escola, talvez a Ludoteca que criei e animei durante quase quinze anos. Não era só um espaço de jogo, pois foi também aí que se deram os primeiros passos do Laboratório de Matemática da minha escola, talvez o primeiro a renascer após o 25 de Abril (décadas antes já tinha havido alguns, que depois desapareceram). A Ludoteca era sobretudo uma oportunidade de encontro entre alunos e entre eles e os adultos responsáveis por esse espaço. Alguns alunos até iam para lá estudar quando lhes faltava um professor, e a auxiliar educativa que lá se encontrava apoiava-os.
Houve ainda a experiência associativa. Nos seus primeiros anos, ela levou alguns professores a compreender que a construção de uma profissão não é algo que seja dado, mas sim um longo e por vezes conflituoso processo coletivo. Nos anos 90, sem os colegas da minha escola e de outras situadas nas proximidades, o nosso Núcleo Associativo não teria sido capaz de imaginar os projetos interescolas que então conseguimos concretizar. Hoje esse espírito acabou.
E sobre o livro que publicaste o ano passado: a quem é ele dirigido, e qual a sua mensagem principal?
Qualquer pessoa que se interesse pela Educação, em qualquer parte do mundo, pode encontrar nesse livro um testemunho fundamentado sobre os problemas que as escolas enfrentam hoje e sobre os desafios que o futuro lhes coloca.
Escrevi-o para que não fosse esquecido o que pode ter sido a experiência profissional mais importante de um grande grupo de professoras e de professores, quer pela positiva, quer pela negativa.
Estou agora a pormenorizar e a interpretar esse testemunho como um contributo para a explicitação dos saberes e dos valores que estão envolvidos na construção da profissão docente. E que, acredito, terão muito em comum com os saberes e os valores de qualquer outra profissão.