Por Oren Ziv, 20 de Fevereiro de 2024, para o +972 Magazine

Os soldados israelitas descrevem a forma como o assalto aos pertences dos palestinianos se normalizou na guerra da Faixa de Gaza, e como o comando dos militares quase nada diz contra.

Esses soldados israelitas que combatem em Gaza não se têm coibido de publicar vídeos nas redes sociais documentando alegremente a destruição desenfreada de edifícios e a humilhação dos detidos palestinianos. Alguns destes vídeos foram mesmo apresentados pela África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça, no mês passado, como prova de genocídio. Mas há outro crime de guerra que está a ser documentado pelos soldados israelitas e que, apesar da sua prevalência, tem merecido menos atenção e condenação: a pilhagem.

Em Novembro passado, o cantor palestiniano Hamada Nasrallah ficou chocado ao descobrir um TikTok de um soldado israelita a tocar a guitarra que o seu pai lhe tinha comprado 15 anos antes. Outros vídeos difundidos nas redes sociais nos últimos meses, mostram soldados israelitas a vangloriarem-se por terem encontrado relógios de pulso, por terem desempacotado a coleção de camisolas de futebol de alguém e por terem roubado tapetes, artigos de mercearia e joias.

Num grupo do Facebook para mulheres israelitas, com cerca de 100.000 seguidores, uma pessoa perguntava-se o que fazer com os “presentes de Gaza” que o seu companheiro, um soldado, lhe tinha trazido. Partilhando uma fotografia de produtos cosméticos, escreveu: “Está tudo selado, exceto um produto. Usariam estes produtos? E alguém conhece os produtos, ou só se usam em Gaza?”

De facto, desde o início da invasão terrestre de Gaza por parte de Israel, no final de Outubro, os soldados têm levado tudo o que conseguem apanhar nas casas dos palestinianos que foram forçados a fugir. Mais do que um segredo que se descobre agora, o fenómeno tem sido amplamente acriticamente noticiado nos meios de comunicação israelitas, enquanto rabinos do movimento sionista religioso têm respondido às perguntas dos soldados sobre o que é permitido ou não saquear de acordo com a lei judaica.

Soldados que regressaram dos combates em Gaza confirmaram à +972 Magazine e à Local Call que o fenómeno é frequente e que, na sua maioria, os seus comandantes o permitem. “As pessoas levam coisas – canecas, livros, cada um leva a lembrança que lhe convém”, disse um soldado, que admitiu ter levado ele próprio uma “lembrança” de um dos centros médicos que o exército ocupou.

Outro soldado, que serviu no norte e no centro de Gaza, testemunhou que “levaram tapetes, cobertores e utensílios de cozinha”, e explicou que não houve qualquer instrução sobre o assunto por parte do exército, nem antes de entrarem, nem enquanto estiveram no terreno. “Não houve qualquer conversa sobre o assunto por parte dos comandantes”, disse ele. “Toda a gente sabe que as pessoas estão a levar coisas. Até se dizem piadas sobre o assunto, escutam-se coisas como: ‘enviem-me para Haia’. Isto não acontece em segredo. Os comandantes vêem as coisas, toda a gente sabe, e ninguém parece importar-se.”

Um soldado deu a sua explicação para o facto de o fenómeno ser tão generalizado: “Há qualquer coisa nesta realidade onde as casas já estão [em ruínas] que permite levar um prato ou um tapete. Numa das operações, numa casa destruída, havia um armário com objetos de cozinha antigos, pratos especiais, canecas especiais. Vi-os a serem saqueados, infelizmente”.

“Os comandantes não falaram connosco sobre isso”, testemunhou outro soldado. “Não disseram que não se podia levar nada. E a maioria das pessoas sentia a necessidade de levar um “souvenir”.”

O soldado referiu que a pilhagem não era segredo; de facto, alguns os seus superiores também o faziam. “O sargento-mor da companhia distribuía livros de estudo do Alcorão que encontrava e dava a quem os quisesse”, conta. “Outro soldado levou um conjunto de canecas de café, um tabuleiro e uma panela. Outra unidade, que encontrámos depois de terem regressado de uma viagem, trouxe uma mota, como as motas Nukhba [forças especiais do Hamas]. Um dos soldados declarou que era dele. Eles [os soldados] falaram em restaurá-la”.

Outro soldado que serviu em Gaza disse ao +972 e ao Local Call que os soldados levaram “terços de oração, colheres, copos, cafeteiras, joias, anéis. Tudo o que é fácil e acessível, é levado. Não tudo, mas sentiam-se como os senhores da terra”. Também referiu que “foram levados mapas dos manuais escolares das crianças para mostrar como é que eles são ensinados”.

Ao contrário dos outros testemunhos, para este soldado era evidente que a pilhagem era proibida. “Para mim e na minha experiência, é claro que é um grande – não, não”. “Eles insistiram nesta questão, mas ninguém supervisiona os soldados reservistas. A coisa mais comum [para roubar] são as ‘lembranças locais’ [isto é, artigos essencialmente palestinianos ou árabes]. Uma vez, expulsaram um soldado que roubou dinheiro”.

O soldado acrescentou que ele e a sua equipa tentaram, com diferentes graus de sucesso, persuadir outros soldados a deixarem para trás os artigos que tinham roubado em Gaza. “Eles voltavam com coisas; nós dizíamos-lhes que era melhor deixá-las [dentro da Faixa, perto da vedação], é melhor deitá-las fora do que levá-las.”

“Das ruínas de Khan Younis, no estilo clássico de Gaza”

Num comunicado enviado esta semana aos comandantes das unidades que combatem em Gaza, o chefe do Estado-Maior das FDI (Forças Armadas de Israel), Herzi Halevi, exortou os soldados a “não levarem nada que não seja nosso”. Mas esta carta surge depois de vários meses em que os saques se tornaram completamente normais.

O fenómeno está tão normalizado que, num programa recentemente transmitido pelo canal público israelita, KAN, os soldados apresentaram ao jornalista Uri Levy um espelho que tinham trazido de Gaza. Levy graceja e comenta: “Das ruínas de Khan Younis, ao estilo clássico de Gaza” , sem perguntar nada aos soldados onde encontraram o espelho ou porque o roubaram. Numa crónica do Ynet, Nahum Barnea cita um soldado que disse ter visto o saque de “telefones, aspiradores, motos e bicicletas”.

O Canal 13 também noticiou o fenómeno no início deste mês. No entanto, em vez de o condenar, os apresentadores limitaram-se a referir que os vídeos estão a ser partilhados em todo o mundo para “envergonhar” os soldados israelitas. (O programa também incluía uma entrevista com o soldado que se filmou a si mesmo com os relógios de pulso que encontrou dentro de uma casa palestiniana, alegando não os ter roubado: “Eles vêem-me a segurar relógios, não estou a pilhar nada… A minha intenção era mostrar que a liderança do Hamas tem ali um alto nível de vida”).

Outro sinal de como o fenómeno se generalizou é o facto de rabinos do movimento religioso sionista terem recebido perguntas de soldados sobre o assunto. Numa sessão de perguntas e respostas publicada no YouTube, o rabino Yitzchak Sheilat, da Yeshiva de Ma’ale Adumim, na Cisjordânia ocupada, referiu que a pilhagem é proibida.

“Esta é uma questão muito séria, em dois aspetos: em termos de halacha [lei judaica] e também pela lei militar”, disse. “A halacha só permite saquear alimentos ou coisas perecíveis do inimigo… levar objetos é estritamente proibido. Segundo a halacha, todos os despojos devem ir para o rei, ou seja, para o comandante do exército… Seria uma pena que alguém fosse apanhado e tivesse de pagar um preço elevado.”

Um dos soldados pergunta ao rabino se é permitido tirar coisas de uma casa antes de esta ser demolida. “É proibido tirar coisas”, responde Sheilat. “Se levarem alguma coisa, tem de ser entregue ao chefe do estado-maior.” “E se um comandante aprovar a recolha de objetos para a companhia?”, pergunta um soldado. “Não, é exatamente esse o problema, que há comandantes que não conhecem a lei militar, ou não a querem conhecer, e de repente permitem que os homens façam coisas que não deviam fazer”, respondeu Sheilat.

No entanto, Shmuel Eliyahu, o rabino-chefe da cidade de Safed, no norte do país, ofereceu uma perspetiva diferente sobre a questão. Explicou que, pelo facto de os “árabes de Gaza não respeitarem as convenções internacionais, não somos obrigados a respeitar nenhuma das regras da guerra. No entanto, somos muito cuidadosos, porque queremos preservar a imagem de Deus que há em nós”.

É de notar que, para além dos saques “independentes” efetuados pelos soldados, existe uma unidade especial no exército israelita dedicada a confiscar dinheiro e outros bens encontrados no campo de batalha. Até à data, sabe-se que os militares apreenderam dezenas de milhões de shekels de Gaza, que alegam pertencer ao Hamas.

“E comereis as riquezas de todas as nações”

Para além da pilhagem dos pertences dos palestinianos, os soldados israelitas também comem habitualmente a comida que encontram nas casas abandonadas de Gaza. “Ao fim de duas ou três semanas, os soldados usam o que encontram, limpam-no e desinfetam-no”, disse um soldado ao +972 e ao Local Call – embora, segundo ele, os militares não devam consumir alimentos encontrados em casas palestinianas, caso estejam contaminados. Outros disseram que não foram dadas instruções precisas sobre como se comportar durante a permanência nas casas, muitas das quais são incendiadas ou destruídas pelo exército quando deixam de ser úteis.

Num artigo recente do Haaretz, os soldados israelitas descrevem as suas “experiências” de cozinhar em casas palestinianas utilizando os ingredientes que aí encontram. “A cozinha de Gaza, pelo que vimos, está cheia de especiarias”, disse um soldado no artigo. “Em todas as casas há muitas misturas ao estilo “ras el hanout”. Também há muitas lentilhas, por isso, no início, fizemos muitos guisados …. Todas as casas onde ficámos tinham azeitonas produzidas [pelos palestinianos], que provámos… O azeite também está presente em todas as casas, em galões, e ajuda muito a melhorar qualquer comida. Também têm um ótimo molho picante.”

“Por vezes, encontramos coisas especiais: de repente, há alho e, depois, fazemos uma massa com tomate e alho”, continua o soldado. “Também me deparei com um molho de alfarroba que adicionámos à massa e que era excelente.”

No mês passado, uma carta publicada por um rabinato militar detalhava instruções sobre como manter o regime kosher ao usar alimentos e utensílios encontrados em casas de Gaza. A carta, assinada pelo rabino Avishai Peretz, termina com a diretiva bíblica: “E comereis as riquezas de todas as nações”.

O rabino Sheilat também abordou a questão de saber se é permitido comer alimentos encontrados em casas palestinianas nas suas perguntas e respostas. “No que diz respeito aos alimentos não kosher, há uma diferença entre o que acontece quando se encontra comida em casas de inimigos, em que a lei diz que se encontrarmos comida que não temos e quisermos essa comida, mesmo que não seja essencial, por exemplo, doces… é permitido comê-la sem nos preocuparmos se é kosher ou não”.

Numa declaração ao +972 e ao Local Call, o porta-voz das IDF disse: “As IDF encaram com severidade todos os casos em que os soldados atuam de forma contrária ao espírito das IDF, incluindo os casos de aquisição ilegal de propriedade. Os comandantes das IDF em várias unidades mantêm um diálogo permanente sobre o assunto durante os combates. Todos os relatórios recebidos sobre o assunto são examinados e tratados individualmente. Nos casos pertinentes, é aberto um inquérito pela polícia militar e, nalguns casos, os suspeitos são detidos para interrogatório. As IDF atuam em conformidade com o direito internacional e continuarão a fazê-lo.”


Artigo original pode ser visto aqui

Tradução do inglês feita por Pedro Braga para a PRESSENZA