CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

Adamastor encontrou as profundezas pela primeira vez em um sonho. Chicotes estalavam em carnes frias e fumaças bafejavam das rochas cinzas de uma imensurável caverna. Assim tudo pareceu para ele nesse primeiro momento.

Juiz togado por décadas, sempre notou um leve cheiro fétido exalando do banheiro de sua casa e principalmente de seu gabinete. Abria as janelas e aspergia perfumes, nada conseguia dissipar aquele asco que provocava o cheiro. Com o tempo passou a se acostumar e, mais, passados alguns meses, começou a apreciar o ar infecto ao seu redor.

Com efeito, seus secretários e serventuários evitavam um contato mais imediato com o magistrado, a não ser Vilma. Esta idolatrava seu superior como a um deus absoluto e, por isso, seu cheiro recendia como o odor de rosas aos seu olfato. Vilma era uma mulher de cinquenta anos que não experimentara as loucuras do amor pele-a-pele, e, por tal motivo, era de um servilismo dolorido e resignado.

– Me traz café, sua vadia. – Era assim que Adamastor a cumprimentava pela manhã ao chegar no Fórum.

Ela, com um sorriso tímido de menina encantada por um professor cansado, corria para providenciar a bebida para o juiz. Com mãos trêmulas não ousava qualquer contato físico com seu ídolo temendo conspurcar o templo pagão identificado como a presença dele.

Assim passavam os dias na repartição enquanto perceptivelmente se via a pele escamando e até mesmo despregando de seu rosto; quando, em uma quarta-feira, Adamastor chega ao trabalho com os olho turvos e avermelhados. Pensaram que havia iniciado uma carreira extensa nas drogas, mas, naquele dia, estava mais sóbrio do que nunca estivera antes: era o dia do “grande julgamento” – pelo menos era assim chamada por ele a primeira sessão na pauta do dia.

Feito o pregão, entram as partes, o promotor público e um advogado – desses que ainda temem estar de frente a um juiz. Imagina deste!

_ )(*)&(¨&%&*%)*&¨_)&. – Assim ruminava guturalmente o juiz e o som emitido vinha num constrangedor crescendo.

– Está tudo bem, Excelência? – Pergunta sua secretária que, por estar sentada ao lado, discretamente cobria o nariz com um lenço embebido em perfume.

_ )(¨&*%(*%&*)&¨)(*¨)*¨)*()(*. – Assim respondeu Adamastor tentando tecer alguma palavra inteligível.

– Então, eu dou por encerrada a audiência. – A secretária assim tentou remediar a situação.

Um olhar gélido foi o que recebeu em troca por sua inciativa. O juiz virou-se em sua direção, pousou sua mão pegajosa sobre seu ombro e disse cavernoso: – Não! Continuo daqui.

Acontece que o objeto de discussão era o direito de um homem ter acesso a um fundo de investimentos que declarara falência de modo fraudulento e era justamente o resgate daquele dinheiro que garantiria o tratamento de sua avó com AVC hemorrágico e mofando numa UPA em Quintino.

O clique de atenção para que o juiz voltasse ao seu normal fora a ordem de encerramento da secretária – alguma coisa impulsionava-o para agir naquela causa.

– Excelência, as diligências requeridas para obtermos documentos necessários para esclarecer a fraude não foram apreciadas e reitero aqui o pedido, porque se não houver tais provas, que estão em poder dos sócios da gestora do fundo, nada poderá ser decidido. Estamos frente a uma questão humanitária! – Suplicou o advogado arranjando coragem das entranhas ao encarar a figura nefasta do magistrado.

– Cale-se! – Rugiu Adamastor para o advogado. – Passo à sentença nesse exato momento: Condeno o autor a pagar à gestora do fundo o valor de vinte salários mínimos por total litigância de má-fé e, pelo princípio da instrumentalidade das formas, condeno ainda indenizar a OSCIP responsável por administrar a UPA por depreciar os serviços prestados pela entidade. – Misturado a todo o esgar de sua boca vislumbrava-se um sorriso ao proferir tal decisão terminando com a instrução do processo.

Ainda mandou prender o advogado que balbuciava um agravo retido na tentativa de reverter todo aquele absurdo. O juiz estava endiabrado; aliás, foi nesse momento que o policial destacado como segurança do Fórum e que estava presente na audiência entendeu que tinha alguma coisa a mais em todos aqueles trejeitos funéreos vindos de Adamastor.

Após se trancar no gabinete, todos ouviram gargalhadas e um incisivo “se fudeu!”.

Dessa vez até Vilma fez o sinal da cruz.

– Esse juiz aí não tá sozinho, não, Fagundes. – Disse o policial ao seu colega, que estava no corredor. – Vou chamar o padre Ovídio e fingir que quero perguntar alguma questão sobre essas coisas de direito com o juiz.

Padre Ovídio sempre estava pronto para tirar o capiroto de uns e outros e já chega com seus paramentos e utensílios para o milenar ofício: sempre com uma bíblia à tira colo e um instrumento chamado por ele de “unção que abala”, o que consistia em um bastão de beisebol com umas cruzes pontiagudas fincadas ao longo de sua extensão.

O policial e o padre entraram pelo cartório judicial com aquele ar de superioridade intelectual, como a mostrar que aqui no Rio de Janeiro sabemos de razões que até o Einstein ignora.

As coisas se resolvem de uma maneira especial e única em Quintino.

Com todo o cuidado exigido pela autoridade, bateu à porta do gabinete e pediu para entrar, por ter ouvido a resposta “&$*%$%$*%”, entrou com o padre que, delicadamente, encerrou os três lá dentro.

Padre Ovídio tinha um jeito peculiar de exorcizar os outros, trazia um aparelho toca cd portátil e punha de fundo ao ritual uma musiquinha do Richard Clayderman, e começava com uns pai-nossos e aves-marias naquela ladainha bem típica de padre, logo em seguida, sem explicação alguma, empunha seu “instrumento de unção” e partia pra cima do endemoninhado desferindo golpes do tipo neandertal em cima da caça.

Depois vinham palavras de inspiração divina como “sai desse corpo seu Filhadaputa!”; “te como na porrada, seu cuzão!”… E assim ia até a entidade revelar seu nome e, por conseguinte, sair do corpo.

– Rapaz! Esse juiz aí está mais para um fast food de entidades; olha só! Já o benzi com a “unção que abala” na cara e nos ombros e tá aí sorrindo como um maconheiro em fim de festa (enquanto era surrado, o possuído cantava Guantanamera)… Segura ele que agora vai! – Lamentava o padre ter de se esforçar tanto (a oferta do policial era de apenas cem reais – o que, de certa forma, inibe a fé dos prelados).

– Ah, seu palhaço, tu num me tira daqui nem se botar pra repetir mil vezes o “Jesus Cristo eu estou aqui”, do Roberto Carlos! – Sussurrava o juiz girando a cabeça no bom e velho efeito especial de Holywood.

– Não tiro, não! Não tiro, não! Quer ver? – padre Ovídio já parecia o Clint Eastwood depois de tomar umas cachaças nos filmes de velho oeste estadunidenses.

E foi porrada pra tudo quanto era lado – o policial, que era acostumado a abordar o pessoal no Complexo do Alemão, teve engulhos, só para o leitor sentir o nível de pancadaria que o padre impingiu ao juiz.

– Vou falar com um chapa meu que manda no baile funk de Cascadura para contratar esse padre para exorcizar o povo quando sair pancadaria lá. – Pensou o policial.

Vendo que nada adiantava para expulsar o capiroto do juiz, o padre pensou numa estratégia inequívoca: sentar o “unção que abala” nos osbans de Adamastor.

Tiro e queda! Foi um golpe só e tudo voltou ao normal – claro que o juiz precisou de um tempo no hospital, mas se recuperou bem.

Por fim, após tirar mais duas férias anuais, além das duas oficiais, o magistrado voltou ao seus afazeres normais.

Pena que não reformou a sentença estúpida que dera na audiência dos fundos de investimentos e o neto que queria cuidar da avó – ele achou justa para os padrões cariocas.