Quando disse à minha avó que ia visitar a Europa pela primeira vez, ela explodiu: “Ai, ai, ai!”. Levantando a voz, exclamou: “Não há lá nada! NADA! Só pobreza e sujidade!” Depois de se recompor, acrescentou: “Gostas de comida estrangeira? Há melhor em Nova Iorque”.

por Roger D. Harris (*)

A sua geração de judeus tinha poucas saudades do velho país – e por boas razões. Ela tinha participado involuntariamente nos pogromas, motins violentos em que os judeus eram chacinados. Hoje, os responsáveis por esses pogromas estão a ser reabilitados. Volodymyr Zelensky (o atual Presidente da Ucrânia), sem ter em conta a sua herança religiosa (nasceu numa família judaica), gosta de prestar homenagem ao seu compatriota e assassino Stepan Bandera como um dos seus “heróis indiscutíveis” (Bandera cooperou ativamente com as forças nazis, tendo participado no Holocausto ucraniano).

A minha querida avó, tal como muitos outros imigrantes que vieram da Europa de Leste, suportou a opressão dos “shtetl” (povoações da Europa de Leste com uma elevada percentagem de população judaica). Depois, chegou a estas paragens e tornou-se numa elegante dama americana. Os seus amigos chamavam-lhe Fanny, um nome sofisticado, em vez do seu nome de batismo, Felicia. Para os da sua geração, não havia volta a dar.

Entre os diversos grupos étnicos que constituem o chamado “melting pot americano”, os judeus – na medida em que se pode generalizar sobre qualquer grupo de pessoas – são os únicos que não têm qualquer afeto pelos seus países de origem. Os mais velhos diriam, nos seus momentos mais cínicos, que “vieram da fome” e não de um país em particular.

No caso concreto da minha família, nem sequer sei de onde é que eles vieram especificamente. Em criança, aprendi intuitivamente que certos temas não eram autorizados. O passado da nossa família era um desses, um tema tabu. Agora, que eles já morreram, gostava de lhes ter perguntado sobre os seus primeiros anos.

Embora os meus familiares não tivessem intenção de regressar à Europa, conservavam mesmo assim a cultura que tinham trazido com eles.

Os mais velhos não tinham um interesse especial pelo sionismo. No entanto, para muitos dos meus correligionários atuais, a tradição da cultura judaica europeia foi substituída pela síntese disneyana do sionismo político. A vergonha e a dor do passado foram enterradas e substituídas pelo orgulho sionista.

O ideal do judeu erudito foi abandonado e substituído pela veneração do guerreiro. Deixando de se identificar com o “povo do livro”, o sionista orgulha-se de ser portador de armas. A graça e a misericórdia deram lugar a sentimentos de vingança de proporções bíblicas. O atual Estado sionista de Israel está inequivocamente armado com armas nucleares e é um dos principais fornecedores mundiais de bombas de fragmentação, assim como de equipamentos de vigilância e de tecnologia policial.

Abandonámos a nossa calorosa língua iídiche, com a sua rica literatura, teatro e música. O seu sentido de humor e de humanidade, a sua humildade (por vezes auto-depreciativa), também desapareceram por completo. Em seu lugar implantou-se uma antiga língua litúrgica, o hebraico. Resgatada das catacumbas frias, a nova língua faz parte de uma rutura deliberada com a tradição, num projeto de construção de uma nova identidade nacional que ignora o passado.

O sionismo baseia-se no mito de um ser supremo que escolheu um determinado povo para fundar uma nação na costa oriental do Mediterrâneo. Mais político do que religioso, o sionismo postula um antagonismo subjacente entre os judeus e os outros, exigindo um Estado exclusivo para defender os primeiros dos restantes.

O sionismo foi, durante muito tempo, antes da Segunda Guerra Mundial, uma das muitas correntes da diáspora judaica, mas só ganhou verdadeiramente força no rescaldo do Holocausto. Embora ainda contestado nalguns sectores, é hoje a ideologia dominante da diáspora e do Estado israelitas.

“Fazer aliá” significa regressar àquilo a que os sionistas chamam a nossa pátria, a terra das nossas origens. Aliá é um dos princípios básicos do sionismo.

Por quem é que me tomam, por um “schlemiel” (cabeça de vento)? A evidência genética prova que os judeus europeus nunca habitaram os territórios ocupados. Não podemos “regressar” a um lugar que nunca foi o nosso. Os colonos europeus que imigraram para os territórios agora reivindicados por Israel como parte do seu projeto sionista, não eram descendentes do povo judeu descrito na Bíblia. Pelo contrário, eram muito provavelmente descendentes de pessoas convertidas ao judaísmo.

Chaim Weizmann, que foi presidente do Congresso Sionista Mundial, explicou assim este facto em 1914: “Há um país que se pode chamar Palestina — um país sem povo — e, por outro lado, há o povo judeu – um povo que não tem país. Que mais é então necessário, agora, senão colocar a jóia no anel, isto é unir este povo a esse país?”.

Claro que havia o inconveniente da existência de autótones (indígenas) que aí viviam há já milénios. Mas, para os colonialistas que atualmente dirigem o Estado sionista, esses povos indígenas são literalmente considerados “animais”. No momento em que vos escrevo, esses “Untermenschen” (=sub-humanos, um termo da ideologia racista nazi utilizado para descrever especialmente os judeus) estão a ser expurgados dos seus territórios.

O sionismo é uma forma de tribalismo estreito, nacionalista e xenófobo, contrastando com o humanismo universal de “acolher o estrangeiro” à mesa da Páscoa. Na cultura judaica tradicional, era acrescentado sempre um lugar para um estrangeiro à mesa da família nos dias de festa religiosa. Este belo ritual foi explicitamente concebido para suscitar e demonstrar empatia para com os outros.

A Torá [uma espécie da “Bíblia” dos judeus, NdT] recorda àqueles que não renunciaram ao seu passado: “Não oprimireis o estrangeiro, porque conheceis os sentimentos do estrangeiro, tendo sido vós mesmos estrangeiros na terra do Egipto (Êxodo 23:9)”. É por esta razão que muitos judeus anti-sionistas, no contexto político atual, se identificam com o slogan “somos TODOS palestinianos”.

Ao longo do tempo, os sionistas conseguiram a terrível conversão de um povo oprimido num povo opressor. Mas não poderiam ter efetuado esta transformação sozinhos. A ideologia política do sionismo tinha de estar inextricavelmente ligada ao imperialismo norte-americano. Como salientou o atual Presidente dos EUA, Biden, “assegurar que Israel e a Ucrânia ganhem, é vital para a segurança nacional da América”.

Uma guerra infinita, é essa a receita para o projeto imperial conjunto dos EUA e do sionismo. Falar dum cessar-fogo, quanto mais duma paz com justiça, está absolutamente fora de questão. Perversamente, o sionismo político instrumentalizou a identidade judaica e transformou-a numa ferramenta do império.

Paradoxalmente, fora da comunidade judaica, os adeptos do sionismo moderno  são autocratas anti-semitas. Adoram o autoproclamado Estado de Apartheid, precisamente por causa do seu racismo institucionalizado, e não apesar dele. Se nos nomearem um rufia internacional, podemos apostar que ele ficará entusiasmado com a chamada “Terra Prometida”.

No entanto, um número crescente de nós [judeus] continua a abraçar a nossa identidade ancestral e, especialmente à luz dos acontecimentos atuais, renuncia completamente à sua antítese auto-destrutiva, o sionismo. O que os nazis não conseguiram alcançar – o apagamento da cultura judaica europeia – estão agora os sionistas a levar a cabo. Temos uma palavra em iídiche para designar isso: É uma “shanda”, uma vergonha, uma desgraça escandalosa.

Tradução do italiano para a PRESSENZA por Vasco Esteves.


(*) Roger D. Harris é membro da direção da organização anti-imperialista de direitos humanos “Task Force on the Americas”, fundada em 1985.