Há mais de 20 anos o ritual se repete no Dia do Professor (no Brasil). Acordo, faço a higiene matinal, tomo o café-da-manhã e passo a refletir em torno à pergunta: por que sou professor? Dela, invariavelmente decorrem outras: o que aconteceu com a nossa profissão nessas duas décadas? O perfil do estudante de hoje é o mesmo do passado? O que explica condições, regimes e estruturas de trabalho cada vez mais precarizadas? Como é possível um gerente de multinacional ganhar mais do que um doutor? Por que Educação não é prioridade na América Latina? Gosto do que faço? Estou na profissão certa? Tem o professor uma missão social, humanitária? São questionamentos que acredito que todo colega de profissão já fez nesse dia.
Em meu caso, longe de qualquer tentativa de ilusão autobiográfica ou de reforçar a falaciosa idealização do professor como um Messias, a resposta final é sempre a mesma: sou professor porque sou um privilegiado! Sim, sou um privilegiado e ponto. E privilégio aqui nada tem que ver com classe social ou recurso retórico de envelopamento das barbáries educacional e social que vivemos. Especialmente, em nuestra América.
Lembro como se fosse hoje do primeiro dia que entrei numa escola como professor. Que orgulho! Era um jovem estudante universitário, cursava o último ano de História em uma prestigiada universidade pública localizada no interior do Estado de São Paulo e iria debutar como professor substituto. Como precisava daquele dinheiro e daquela chance. O ano era o de 2002 e a escola, pública, situada na periferia da cidade. Elevados índices de evasão escolar e de criminalidade. Mas, eu estava feliz.
Claro, o debut não ocorreu como imaginava. Fui recepcionado pelo diretor e uma vez na sala da direção, sentados, ele abriu uma gaveta e retirou dali duas armas de fogo: um calibre 38 (mencionou) e uma pistola. A primeira pertencente a um aluno que atuava como traficante no bairro. Por acordo, todo dia ao ingressar na instituição o estudante deixava a arma na diretoria. A outra, do próprio diretor. Alegava que por defesa.
Dessa escola guardo outras recordações e a certeza de que eram estudantes carentes em tudo: afeto, apoio, alimentação, oportunidades. Como esquecer das alunas que eram atendidas por uma casa de acolhimento de meninas vítimas de abusos sexuais. Ou então, do grupo de estudantes provenientes do assentamento do Movimento Sem-terra, com seus chinelinhos e pés cheios de barro em dias pós chuva. Como não se sensibilizar com estudantes fazendo fila ávidos pela merenda? Certamente, em muitos casos, a única refeição do dia. Essa escola muito me ensinou; foi um ano intenso de grandes aprendizados. Mas ela também dizia muito sobre eu, sobre minha origem. Eu me via naqueles meninos e meninas. E foi aí que passei a reconhecer meu privilégio.
Sou privilegiado em ser professor porque sempre estudei em escola pública. Fui também – acredito – o único de minha geração escolar a ingressar numa universidade pública. Comecei a trabalhar muito cedo, com 13 anos. Fui o primeiro da família a ingressar numa universidade pública, que no Brasil é concorrida. Muitos de meus colegas, assim como daqueles meus primeiros estudantes não tiveram o mesmo privilégio. Sim, um privilégio! Não foi simplesmente mérito. Tenho horror à palavra meritocracia: vaga, incongruente, utópica e socialmente sádica.
Fui um privilegiado porque ainda que produto de um horizonte de carências (refugos muitas vezes invisibilizados da pobreza), fui criado por uma avó costureira que, mesmo com pouca escolaridade, ensinou-me a ler e a escrever ao pé da máquina Singer. Também havia minha tia, professora, que morava junto. Ela sempre deixava livros no aparador da cozinha. Concedeu-me o privilégio do gosto pela leitura. Quantos de meus colegas de escola tiveram essas oportunidades? Esses carinhos? Quantos de meus alunos?
Sou um privilegiado porque naquela mesma escola que há vinte anos debutei como educador (educere em grego significa guiar) havia um aluno. O seu nome era Junior. Ajudava o pai como auxiliar de pedreiro. Anos depois reencontrei Junior numa padaria em que ele trabalhava como atendente. Agradeceu-me. Perguntei a razão, ao que me respondeu: “Professor, por causa das suas aulas nesse ano vou prestar História!” Passou. Ingressou na mesma universidade que cursei minha licenciatura. Teve igual privilégio de ser professor. Mas, em seu caso, por pouco tempo. Junior faleceu há alguns anos eletrocutado. Fazia bicos para complementar a renda porque o péssimo salário como professor não garantia o sustento da família.
Os privilégios adquirem muitas formas. Em meu caso, há de mencionar meus professores de escola. Tive péssimos, mas também excelentes professores. Busco recordar sempre dos bons! Madalena foi minha professora de Geografia (e quando necessário, de História). A ela devo meu amor pelas Humanidades. Com ela tive o privilégio de viajar no tempo-espaço, mesmo sem sair da carteira. Também havia Jorgina, professora de redação. Ensinou-nos as regras da boa escrita. E, por fim, Umberto, de Filosofia. Verdadeiro educador! Emprestava livros e dele recebi como presente o manual para inscrição no processo de ingresso à universidade. Algo caro para o salário que eu ganhava como entregador.
O privilégio também veio do trabalho social. Aos dezoito anos frequentei o curso preparatório para ingresso na universidade mantido pelo Movimento Humanista, à época coordenado pela jornalista Fernanda Pereira. Ali havia estudantes da Universidade de São Paulo (USP) que atuavam como professores. Descobri ali – porque me via naqueles jovens professores – que era possível um estudante como eu, da minha classe social, o ingresso na universidade pública.
Nesses mais de 20 anos tive o privilégio de lecionar para estudantes de 11 a 89 anos, de escolas públicas e colégios privados, ricos e pobres, de mais de 14 nacionalidades, de universidades no Brasil e no México. No currículo tenho ex-alunos de quase todas as profissões, muitos dos quais professores como eu. Uma diversidade enorme! E isso também é um privilégio, pois a alteridade sempre é uma dádiva.
É um privilégio entender que nós educadores somos líderes, ainda que muitas vezes assim não somos reconhecidos pela sociedade e assim também não nos reconhecemos. Coloque um experimentado diretor de empresa numa sala-de-aula com crianças de 12 anos e veja a catástrofe. Coloque um professor de Matemática, de Biologia ou de História à frente de uma empresa e verá que é possível. Manejamos ao mesmo tempo uma demasiada carga de informações (teóricas e práticas), um leque de diversidade e nos defrontamos dia a dia com visões de mundo e origens muito distintas.
Ser professor na América Latina é um privilégio não porque ganhamos bem, ou somos socialmente reconhecidos, ou ainda, porque somos reverenciados como autoridade de conhecimento (ainda que sejamos, conforme defendia Paulo Freire). Em nosso continente infelizmente é todo o contrário desde o ensino fundamental ao ensino superior. Tampouco, é um privilégio pelo fato de que – como erroneamente defendem alguns – estamos imbuídos de uma missão terrena. Como menciona o filósofo, Paul Ricouer, no livro La parole est mon royame:
O que faço quando ensino? Eu falo. Eu não tenho outro ganha-pão e não tenho outra dignidade; eu não tenho outra maneira de transformar o mundo e não tenho outra influência sobre os homens. A palavra é meu trabalho; a palavra é meu reino. Meu ofício e minha honra.
Ser professor em nosso continente – pelo menos a meu ver e sentir – é um privilégio pelo simples fato de que somos sobreviventes. Isso mesmo, em maioria somos sobreviventes! Multiplicadores de nossa sobrevivência. Humanizadores de fato; materializados; concretos; sem demagogia. Não salvaremos a todos, claro. Nem é nosso dever! Mas podemos ser privilégio para alguns.