Neste momento de profunda dor, agarro-me à única coisa que me resta: a crença absoluta de que este inferno não nos está predestinado: Nem para nós, nem para eles.

Por Orly Noy (*) para a o +972 Magazine

Ainda nos é impossível digerir estes dias mais negros do que escuros, que começaram com as sirenes a acordarem-nos no sábado de manhã, um dia que parece interminável e que provavelmente não terminará durante muitos dias. O pensamento nos raptados para a Faixa de Gaza esmaga-me de dor. Cada pensamento neles deixa-me mais uma camada de terror sobre a pele. As imagens e os relatos de corpos espalhados por todos os cantos, de famílias mantidas reféns durante horas como escudos humanos nas suas próprias casas por militantes do Hamas, ainda me assombram a mente e gelam o coração.

O choque absoluto provocado pelo ataque do Hamas às cidades do Sul assumiu várias formas com o passar das horas: medo, impotência, raiva e, acima de tudo, uma profunda sensação de caos. As falhas colossais do governo de Benjamin Netanyahu e do aparelho de segurança estão a convergir para uma sensação de colapso total. O sistema de informações que vigia todos os aspetos da vida dos palestinianos em Gaza e na Cisjordânia, não tinha conhecimento prévio do ataque; os civis foram deixados indefesos durante muitas horas contra os militantes do Hamas, que os encurralaram nas suas casas e os massacraram sem intervenção militar – o mesmo exército encarregado de proteger todos os colonos da Cisjordânia.

Estamos chocados com a falta de informações fiáveis durante as longas horas em que as pessoas procuraram desesperadamente por familiares e amigos desaparecidos, inundando as redes sociais com fotografias de entes queridos que tinham desaparecido. E, agora, assistimos à falta de mantimentos e de alimentos suficientes para as forças de reserva, convocadas à pressa, e enviadas para a linha da frente contra o Hamas, deixando aos civis de cada cidade e vila a tarefa de organizar as coisas de que necessitam.

No domingo, Netanyahu declarou formalmente a guerra e, agora, Israel inteiro está em pé de guerra. Os mísseis que aterraram no coração de Telavive e o bombardeamento das cidades do norte transformaram todo o país num campo de batalha, pelo menos na perceção do público.

Aqui, em Jerusalém, estamos a tentar agarrar-nos à esperança de que o Hamas não lance mísseis contra a cidade, devido à proximidade da mesquita de al-Aqsa, mas a ansiedade geral mantém-se. As escolas foram encerradas, assim como todas as empresas, e muito poucas pessoas estão nas ruas. Os que não têm que fazer, não saem de casa. No sábado à noite, depois de horas a olhar ansiosamente para a televisão e para as redes sociais, a minha filha estava em pânico com receio de que os militantes do Hamas, armados e ainda dentro do território israelita, pudessem chegar a Jerusalém e atacar-nos em nossa casa. Só depois de uma visita minuciosa aos abrigos públicos do bairro é que ela se acalmou um pouco e conseguiu adormecer.

No meio deste caos absoluto, Netanyahu dirigiu-se aos cidadãos no final do sábado: uma declaração vazia com slogans como “vamos ganhar”, “vamos atacá-los”, “vamos aniquilar o terrorismo”. É um homem de muitos slogans. Promete que Israel se vai “vingar com toda a força” e que “o inimigo vai pagar um preço sem precedentes”, sofrendo “fogo de resposta de uma magnitude que o inimigo nunca conheceu até agora”.

Essa linguagem é intencional. Porque, embora o público israelita traumatizado ainda não esteja pronto para buscar o profundo ajuste de contas político e moral que esta catástrofe exige, a raiva dirigida contra Netanyahu já é palpável. Um primeiro-ministro enredado em processos judiciais nomeou – para satisfazer as suas próprias necessidades políticas – pessoas que não só eram extremamente belicosas como também muito pouco profissionais, e colocou-as à frente da nossa segurança. Com razão, ele é agora visto como pessoalmente responsável. Procura salvar a sua própria pele política, mais uma vez, instando o Knesset a formar um governo de salvação nacional, muito semelhante ao que formou há três anos com o líder do partido Unidade Nacional, Benny Gantz, sob o pretexto do combate ao coronavirus. Mas mesmo sem a formação deste governo de salvação nacional, a oposição judaica no Knesset apoia totalmente o ataque mortífero do governo a Gaza. E não estão sozinhos: muitos israelitas querem ver toda a Faixa de Gaza pagar um preço sem precedentes.

O desejo público de vingança é compreensível e aterrorizante, mas o apagamento de qualquer linha vermelha moral é sempre assustador.

Destruição, na Gaza City, dia 7 Out. 2023, da ‘Torre palestina’, sede de muitas empresas de média (Imagem tirada dum vídeo no Youtube)

É importante não minimizar ou tolerar os crimes hediondos cometidos pelo Hamas. Mas também é importante recordar que tudo o que o Hamas nos está a infligir agora, temos nós vindo a infligir aos palestinianos há anos: Disparos indiscriminados, incluindo contra crianças e idosos; Invasão das suas casas; Incendiar as suas casas; Fazer reféns – não apenas de combatentes, mas de civis, crianças e idosos. Estou sempre a lembrar-me que ignorar este contexto é abdicar de uma parte da minha própria humanidade. Porque a violência desprovida de qualquer contexto conduz apenas a uma resposta possível: a vingança. E eu não quero vingar-me de ninguém. Porque a vingança é o oposto da segurança, é o oposto da paz, é também o oposto da justiça. Não passa de mais violência.

Continuo a defender que há crimes de abundância e há crimes de fome, e nós não só levámos Gaza à beira da fome, como a levámos a um estado de colapso. Sempre em nome da segurança. Que segurança é que obtivemos? Onde nos levará outra vaga de vingança?

Este sábado foram cometidos crimes terríveis contra israelitas, crimes que a mente não consegue compreender – e, neste momento de dor profunda, agarro-me à única coisa que me resta: a minha humanidade. A crença absoluta de que este inferno não nos está  predestinado: Nem para nós, nem para eles.


(*) Orly Noy é editora do portal Local Call, ativista política e tradutora de poesia e prosa farsi. É presidente do conselho executivo do B’Tselem e ativista do partido Balad. 


Artigo original pode ser visto aqui