CRÔNICA
Por Guilherme Maia
I – FACADA NA LAPA
Noite afora pela Lapa, o bom e velho bairro boêmio e místico do Rio de Janeiro. Entre sambas, chorinhos e funk; entre fantasmas de Manuel bandeira e Madame Satã, aqui vou em meu passo largo, sempre pelo mesmo caminho torto pelo qual fundi minha vida.
Ela estaria no dia seguinte comigo e resolvi, para aplacar a ânsia de tê-la nos meus braços, encontrar Odin – amigo de tempos loucos: pois é, eu e Odin somos sobreviventes da noite carioca. Nada melhor do que encontrar um irmão enquanto ela não vem.
Ligo pra ele:
– Velhão, tô daquele jeito, sabe? Minha amada só vem amanhã e eu preciso dar uma volta. Que tal a gente se embrenhar pela noite, Charlie? – Falei com ele num tom sôfrego de quem querendo driblar a ansiedade, acaba por se arrastar.
– Já vi que tu tá precisando de um psicólogo, vem pra cá, meu chefe! A consulta vai em cerveja e cachaça. – Jovial, meu amigo me intimou a pagar a conta do bar.
Vesti uma bermuda e uma camisa florida – tipo carioca resistente – e fui andando pela Mem de Sá. Ao atravessar os Arcos, dei uma olhada no relógio de pulso, meia-noite. Essa é uma hora sempre sugestiva para gente da noite; ergo meus olhos para o céu e ela está lá, a lua: redonda, brilhante, amarelecida pela poluição mundana; é a grande dama de sempre, a mulher inalcançável, a que vive apenas no mundo das ideias platônicas.
Mulher plena é a lua, acolhedora, traidora, traz fortuna e desgraça ao homem.
O vento da Beira-mar concorda com ela e aponta o beco onde o ancestral malandro está exposto num altar. Oferendas de cachaça e charutos ao magnífico Zé Pelintra, força oriunda do Catimbó e santo protetor de malandros. Certo que devido à eterna crise econômica brasileira, o que mais se vê são cachaças bem vagabundas em pets. Penso que se fosse eu – claro, depois de aferir a renda do ofertante, – tacava um raio na cabeça do mão-de-vaca que vem poluir o altar.
Pilantragem, às vezes a gente cai bem por se achar esperto demais. Malandro mesmo é ele dependurado sobre o altar com um sorrisinho sacana no canto da boca e o olhar de ancião nagô. Fica lá, só observando…
Chego em frente ao grande malandro e saco o meu celular para tirar uma foto. Tudo acontece rápido demais: alguém vem às minhas costas e ata meus braços, enquanto um menor puxa o celular da minha mão. Penso que hoje em dia não se tem mais respeito por nada, afinal ali é um lugar de certa forma sagrado. Do fundo do beco surge outro cara que puxa uma faca em minha direção; só para se afirmar desfere um golpe com seu joelho no meu estômago. Dói, mas que se dane!
– Escuta aqui, seu merda! Eu sou advogado e ajudo gente aí do seu tipo. Vâmo parando com isso que eu não sou saco de pancada de ninguém.
Quando começo a esquecer que sou advogado aparece uma situação dessas… Imagina se por alguma desgraça do destino eu fosse promotor público…
Foi o que salvou a minha pele. Vem o chefe do movimento e já aparece enchendo a cara dos ladrões de porrada. Ostenta um pedaço de madeira à maneira de um bastão; larga na cara de um e nos peitos do outro. Como é boa a sensação de ficar com os braços livres de novo.
– Amigo, sou o dirigente do altar e isso aqui é proibido, não podem fazer isso. Vou punir esses merdas! Mas escuta uma coisa, dá uma olhada ali em baixo do arco: tá tendo “movimento” aqui hoje e você tava tirando foto, o pessoal ficou doido com isso. Se quiser tirar fotos agora, sem problema, filho!
Assim disse o meu herói.
Imagina! Morrer esfaqueado na Lapa e eu ainda nem li Dostoiévski.
Agradeci àquele funcionário da pilantragem, afinal somos uma irmandade, segui meu caminho para encontrar Odin e conversar sobre o que eu quero da vida e de Andréia.
II – CERVEJA EM BOTAFOGO
O pai de Odin foi um grande cara, ainda estamos secando lágrimas por sua morte. Amigo de Raul Seixas, inimigo de Paulo Coelho – tudo numa ordem natural. Ele foi um agitador da cena cultural carioca dos bons tempos; foi livre de pensamento e de vida deixando um legado para quem queira entender melhor o que estamos fazendo nesse planeta.
Encontramos o lugar ideal, estava passando uma partida decisiva no telão, era o jogo que levou à vitória do Fluminense, vitória bonita para um país onde já se jogou futebol com maestria. Eterno bar dos fundos da Cobal da Voluntários da Pátria. Lá, erguemos nossas canecas de chope, essa deusa nórdica adaptada aos tristes trópicos, ela brilha e satisfaz a sanha dos que a procuram; canecas como espadas de vikings, sede de retirantes da seca nordestina, assim como dois guerreiros perdidos pela noite deixamos a sedução do gelo nos engolfar.
– Cara, quase que fui dessa pra melhor no meio do caminho, não sabia que você tinha ficado tão perigoso assim. – Lamento o ocorrido ao amigo.
– Você que tá ficando um velho burro. Como é que vai parar no meio do movimento para tirar fotos? Parece até que não passou no teste da farinha. Burro pra caralho! – Assim o meu velho conforta o amigo sensível.
– E tua irmã continua aquela gostosa? – Pergunta pra mim sempre afável.
– Não sei, não temos casos de incesto na família, seu escroto.
– Certo, compadre. Escuta, eu ando meio quebrado, sabe? Esse negócio de divórcio e meu esgotamento nervoso e essas porras de processos parados insuportáveis e arte que não dá pra caceta nenhuma. – Começo meu rosário de lamentações, afinal quem estava pagando a cerveja era eu e tinha que render.
Continuo: – Essa minha mão que fica tremendo e o médico disse que eu tenho que comer direito e parar de beber e fumar… Aí tudo fica muito triste…
– Se eu fosse você parava de beber! Hoje, cara! – Dá pra notar um tom de comiseração no meu velho.
– Por quê?
– Porque eu estou seco e aí eu tomo a minha e a sua. Hahaha.
– ‘Quispariu, meu irmão. Queria falar com você sobre um grande amor que encontrei; inesperado, corajoso e profundo. Você é meio paranormal, né? – Vou ao centro do que quero falar com ele.
– Falei pra você não se separar da tua esposa. Eu fiz isso e me fodi de verde e amarelo pela pátria. Troquei mulher por cachaça. Mas se foi, foi. Agora essa dona nova aí no teu pedaço, de qual é?
– Odin, Odin… Ela é uma deusa, ela é forte na cama. Cara! parece que voltei ao auge (tu se lembra daquela época, né, irmão?). Então: autêntica, decidida, com inteligência emocional de dar inveja no Einstein. Ela resistiu aos meus surtos de divorciado cardiopata e da noite. Eu quero ir até o fim com ela.
– Eu tenho uma coisa pra te falar.
– Fala, ué? Não tá bem lubrificado aí não?
– Essa tua ansiosidade está prejudicando o meu Flu… Já perderam dois lances na cara do gol.
– Só pensa nisso… Eu aqui sofrendo…
– Sofres por que queres, cara! Ela já não disse que tá contigo? Palavra de mulher não é que nem a de homem, não! Falou, tá falado… Agora você, como tá se portando seu piranho? – Tão profundas as colocações de amigos de infância que temos.
– Dei umas erradas por aí, Odin. Mas foram péssimas, tinha uma dona me seguindo. E eu lá sou Jesus pra me seguirem? – Já sobe um cheiro acre de cerveja velha do meu copo; já do lado do amigo, cinco canecas emborcadas e a cerveja saltitando como um dervixe na garganta dele.- Eu não sei direito, de um tempo pra cá comecei a ficar inseguro com tudo, temos uma distância imensa entre nós e eu fico querendo substituir minha “ex” de uma forma muito artificial, mas é um sentimento que toma minha vontade e fico nessa…
– Mas depois de velho virou punheteiro? Não se esqueça do garoto de Minas que morreu depois de tocar duzentas e quarenta bronhas. Fica na tua, irmão! Curte a vida e curte teu amor. Sorte a tua de ter encontrado alguém que quer estar ao teu lado de verdade. Entende o tempo das coisas e fica firme, tu já tá cheio de problemas e fica criando chifre em mosca pra sofrer! Vai te catar!
O Fluminense ganhou o campeonato e tive de carregar Odin pra casa, mesmo ele insistindo em irmos para um bordel de um amigo dele, onde as prostitutas dão desconto de quarenta por cento se o cara conseguir fazê-las gozar.
Foi ótimo ter revisto meu velho amigo, amigo de sempre. A Amizade tem um caráter perpétuo e reconforta sempre – faz-nos mais joviais. Resistente ao tempo, ela reaparece como se nunca tivesse saído do lugar de origem.
Eu amo esse cara!
III – AMOR NO CATETE
Ela estava lá, sempre está lá. Encontrei-a já no quarto do hotel e pouco teve importância o buquê de rosas que oferecia a minha deusa, nosso tempo é sempre curto, pois precisamos nos amar das formas mais intensas possíveis.
Não há ocasião para outra coisa a não ser nos perdermos no corpo e na alma um do outro.
Cerramos as cortinas e ligamos a luz de algum abajur, como dois vampiros: um dia se passa – sempre o tempo de nosso amor é um dia. Provavelmente é alguma equação cabalística, vivemos um amor de um dia, um dia intermitente, que não acaba nunca, porque ele continua em nossos encontros presentes e -Deus queira – futuros.
O amor, essa grande roda gigante dos sentimentos, que leva alegria, conforto, irritações, desprezos, desgraças e bênçãos em iguais medidas aos que sabem e aos que não sabem vivenciá-lo, está presente no laço que me une ao grande e inefável querer bem a ela… Sempre ela!