CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

“Tell me quick, ain’t love a kick in the head”

(Dean Martin)

Meu nome é Cileide, sou médica neurologista formada há décadas pela UFRJ, – aquela mesma que está resistindo aos reveses do tempo e da míngua total da falta de repasses de verba para sua conservação, – de forma que balança e balança, mas não cai. Na faculdade, apenas para propósitos medicinais, viciei em anfetaminas e metilfenidatos.

Foi assim, acometida de ataques de excitação no sistema nervoso central, arritmia e minha pressão arterial a 30 por 18, que cheguei no Hospital Psiquiátrico de Santa Teresa. Bati à porta e uma freira com um enorme crucifixo, pendente de seu pescoço roliço e suado e que, por sua vez, de tão grande cobria todo o espaço de sua barriga até o ventre, recebeu minha condição de farrapo humano.

Olhos dilatados de um rubro candente, meus olhos fitaram aquela mulher suada e consagrada à sua fé. Era a hora em que a loba que alojo em meu inconsciente lutava por romper todas as barreiras da convencionalidade e grito como uma jogadora de vôlei em uma quadra coberta. Irmã Hímem-em-guarda arrojou todo seu imenso corpo sobre mim e atou meus braços – nada seria forte suficiente para sobrepujá-la; logo em seguida, surgem enfermeiro em seus alvos jalecos de aspecto espírita e enlaçam meus pés e mãos.

Já não possuía minha liberdade e passava a ser um objeto inerte manuseado pelas mãos translúcidas da convulsão e dos nós enleados pela superfície de minha pele.

Chega de rompante a milenar fada Aloperidol, a mesma que vem em miligramas compressos em uma seringa e que, sempre insuficiente, apela para seu complemento romântico: o mago Valium. Fazemos um ménage à trois e descemos ao azul de metileno do Hades, do profundo sono. Senti-me suavemente mais viciada do que antes.

Puseram-me na ala de dependentes químicos, na qual havia todos os tipos possíveis de enfermos mentais: uma cantora lésbica de quarenta e dois anos, deprimida, cuja esposa ia visitar uma vez por semana; uma senhora de cinquenta, fumante compulsiva e que também estava deprimida; Claudionor, andromaníaco – tarado no bom português -, tentava a todo tempo, a despeito de estar sedado por Depakote, traçar todas as enfermeiras e, também, se dessem algum tipo de condição, os enfermeiros.

Fomos todos levados ao segundo andar, onde encontrei mais um fumante desbragado que estalava os lábios abaixo de seus olhos vítreos, o homem-amarelo olhava o infinito à sua frente, turvado pela nicotina.

Todos nós tínhamos algo em comum, uma pupila mais dilatada do que a outra, formávamos um fã clube tropical do David Bowie; passado o efeito imediato do sedativo, pensamos em darmos nossas mãos e rezar; apenas recitados os dois primeiros versos do Pai-Nosso, surgem quatro enfermeiros com porretes gritando e desferindo golpes no ar – o pessoal não era muito chegado em rezas por ali. O tarado insistiu no Pai-Nosso e teve seus dentes quebrados – a libido é assim, trás mais pecados do que homicídios e roubos.

Depois soube que o psiquiatra-chefe era terrivelmente freudiano e, por isso, proibia orações no estabelecimento. Barroco confesso obrigava que todos os internos ouvissem o Concerto de Brandemburgo infinitamente; muitos se jogavam no chão e urravam “desliga essa merda” e “toca Raul”!

– Oi! – Falo com a cantora. – O que você fazia da vida antes de vir para cá?

– Eu era cantora, mas agora sou uma sombra, vivo afogada em tristezas e parece que o tempo engole minha esperança no futuro. – Num tom langoroso ela faz sua apresentação.

– Canta Cry me a river, então! – Peço a canção que tanto encantou minha adolescência ao embalar minhas desilusões amorosas-hormonais.

– Cala boca, sua puta! Eu vou cantar é a putaquiuspariu! – Transfigurada em esgares de ira, a cantora se joga para cima de mim querendo me agredir.

– Mas você é maluca? Só pedi que cantasse uma música para mim. Por que ficou tão furiosa comigo?

A cantora teve de ser levada para a sala “especial”, onde colocavam os enfurecidos descontrolados. Ainda me lembro de ela estar suspensa no ar por dois dos enfermeiros kardecistas; suas pernas cabriolando no ar divisando despudoradamente sua calcinha de rendas e babados de um lado e, de outro, os lábios cobertos por uma baba espumante.

Depois soube que ela sofrera um esgotamento dos nervos após quatro sessões com o maestro Sinovaldo; este impaciente e perfeccionista irritara de tal forma a cantora que esta passou a odiar canto e música. Eu não tinha como saber.

Insisti por socializar com algum dos presentes e fui dar com a fumante depressiva – não havia chance alguma de me aproximar do tarado sem perder algum membro do corpo. O tarado era uma mistura de Didi Mocó com o Hannibal Lecter e, de fato, haviam posto uma espécie de focinheira nele, mas, por se tratar de produto nacional, a focinheira tinha rasgado no lado direito.

– Oi, meu nome é Cileide, sou neurocirurgiã e estou aqui por usar anfetaminas e metilfenidatos com propósitos exclusivamente medicinais; qual o seu nome e por que você está internada aqui?

– Seu olho está verde, eu já estive aqui internada por vinte e quatro vezes. – Pigarreou essas duas frases e voltou para seus pitos no inefável cigarro, era de um feitio longo, tão longo que dava a impressão de ser a extensão dos dedos daquela mulher. Voz de um metal rangendo abaixo d’água, ela expeliu as duas frases gutural e entediada.

Nada mais sairia daquela boca amarela daquela mulher amarelada ao passo que percebi estarem seus olhos também nublados pelo infinito de sua existência sustenta em tabaco e depressão.

Passam os dias obliterados por sedativos e, após quatro dias internada, já debaixo de Dalmadorm, começo a esquecer meu nome e quem eu sou; surgem dois enfermeiros com suas roupas inconsúteis e espíritas e me laçam braços e pernas; levam-me para o terceiro andar repetindo um para o outro “aposto que essa não sobrevive um dia na ala dos possessos passa-fome”, “aposto duzentos mangos que ela aguenta”.

Acordo no ambiente mais oprimido que experimentei na minha vida; a televisão da década de oitenta no último volume, toda martelada e, por isso, cheia de sulcos que mais alardeavam o estridente da novela das oito. Horrível ouvir da Regina Duarte gritando com o Francisco Cuoco que não podia dar pra ele porque era sua irmã por parte de mãe; que eles tinham sido separados pela maternidade de uma mãe promíscua.

Ao tempo da novela e dos problemas da Regina com o Francisco, instalou-se um motim no salão de vídeo; alguns queriam ver o Sirvo Prantos e seu eterno cassino televisivo e outros queriam assistir ao Bicho Macedo com suas pregações monetárias no Canal da Rencord. Era sábado e as brigas foram se avolumando a um nível pré-hecatombe, socos e murretadas para todos os lados, de forma que tive de me refugiar em um canto protegida por uma mesa que tombei à minha frente para o caso de lançarem objetos pelo ar.

Estampidos de tiros aparados pelo teto me fazem entender que aqueles dois enfermeiros estúpidos haviam me posto na ala do manicômio prisional para os condenados à medida de segurança. Pena que minha vista estava turva quando me levaram para lá, eu não pude saber o nome daqueles putos.

Sempre eclipsada pelos medicamentos, apaguei mais uma vez e não vi o desfecho da insurgência pelos canais de TV.

Acordo na cama com um vulto branco arqueado com as mãos apoiadas na peseira, pergunto se é Jesus Cristo e uma voz cavernosa responde que é o doutor Alberico.

– Estou medicando Tomazopiden de um miligrama e se for preciso divido em três quartos o comprimido, o corte formará um sólido geométrico, mais especificamente um micro paralelepípedo, eis, minha filha, veja como Euclides é atual e eu uso suas ideias geométricas para chegar ao ponto certo de seu medicamento. – Falava como um professor de matemática de pré-vestibular e fazia com que eu me indagasse se o médico não era mais um enfermo mental do estabelecimento.

E ele continuou:

– Na faculdade eu discuti muito com meus professores sobre a importância da geometria aplicada na dosagem dos remédios e como Euclides é atual e fundamental para a cura mental dos pacientes internados. – Falava com os olhos esgazeados a fitar o infinito, aquele mesmo olhar dos deprimidos fumantes; isso me fez comparar Euclides com o Souza Cruz.

Foi quando eu disse ao médico que eu não era interna prisional e que, apesar de já estar enturmada com os detentos, estava no andar errado e queria voltar para casa. Olhou meu prontuário e imediatamente mandou desatar minhas mãos e pés da cama e ir ter com ele em seu consultório.

Um dos enfermeiros que me levara até a ala dos passa-fome estava sorrindo, deduzi que era aquele que apostara que eu sobreviveria na ala do manicômio prisional. Ele me encarou e disse:

– Valeu aí! Ganhei meus duzentos mangos, porque você soube cantar com os passa-fome.