Não basta dizimar países para manter a sua engrenagem militarista, mostra um novo livro. É preciso também explorar desigualdades internas para recrutar jovens empobrecidos – e incutir um imperialismo voluntário. O horror é político, militar, econômico e psíquico.

Por Jonathan Ng para Truthout | Tradução: Maurício Ayer

Em junho deste ano, a jornalista suíça Maurine Mercier encontrou vários cidadãos dos Estados Unidos lutando na Ucrânia sob o disfarce de trabalho humanitário. “Todos eles são veteranos, ex-soldados que lutaram em todas as guerras estadunidenses recentes: Guerra do Golfo, Iraque, Afeganistão”, relatou. Muitos sofrem de transtorno de stress pós-traumático, levando os fantasmas incorporados de conflitos passados ​​e feridas psíquicas profundas para a conflagração geopolítica mais recente.

Um veterano entrevistado por Mercier admite que é viciado em combate, lançando-se em missões suicidas na linha da frente. Ele já matou 13 pessoas na Ucrânia. A proximidade da morte permite-lhe sentir-se vivo, o choque da adrenalina transporta-o para “este belo espaço escondido”, onde “as cores são mais vivas” e os sons são “diferentes, vibrantes”. De volta para casa, ele nota a falta de um sentido de pertença. Mas na Ucrânia, “há alguma coisa”.

A um nível básico, esses guerreiros sem leme são o símbolo de uma sociedade viciada em guerra. Eles refletem as tensões que o autor e ativista antiguerra Norman Solomon revelou no seu brilhante novo livro, War Made Invisible [Guerra Invisibilizada], que examina as profundas causas e os custos do intervencionismo dos EUA. Solomon oferece uma perspectiva potente para entender as crises geopolíticas, bem como os custos invisíveis, mas duradouros, do militarismo.

À medida que a guerra na Ucrânia avança, Solomon destaca três facetas subjacentes do poder dos EUA que são especialmente úteis para interpretar o momento atual: uma intelligentsia incorporada, uma economia que exporta violência, e a infraestrutura de um império global.

Mobilizando mentes

O livro de Solomon revela a proximidade perturbadora entre a classe dominante e a mídia corporativa desde a Guerra do Vietname, revelando como o quarto poder sustenta as premissas que tornam possível a intervenção na Ucrânia e noutros lugares. “A essência da propaganda é a repetição”, argumenta. “As frequências de certas premissas se amalgamam numa espécie de ruído branco”, condicionando o povo dos EUA a apoiar operações militares que nunca veem nem entendem de verdade.

Isso nunca foi tão claro como na invasão do Iraque em 2003. Os oficiais da coligação militar liderada pelos EUA preocupavam-se em particular que os jornalistas pudessem perceber que não havia “nenhum ‘fato decisivo’” que “‘provasse’ que Saddam [Hussein] deveria ser combatido”. Apesar disso, o  New York Times reverberou falsas alegações de que o Iraque possuía armas nucleares e aplaudiu ativamente o esforço de guerra. O seu colunista Thomas Friedman, até defendeu o envio de soldados “de casa em casa, de Basra a Bagdá”, numa exibição crua de poderio militar, dizendo aos iraquianos para “chupar aqui”.

De fato, em todo o cenário da mídia, intelectuais incorporados mobilizaram as suas canetas para consolidar o apoio público à guerra. As redes ABCNBCCBS e PBS, todas elas distorceram as suas coberturas: nas duas semanas anteriores à invasão, as redes transmitiram apenas um em 267 convidados dos EUA que questionaram a guerra. A MSNBC até cancelou o show de Phil Donahue depois deste eminente apresentador ter questionado os motivos da intervenção do governo Bush.

Em vez de encorajar uma reflexão sustentada, a mídia corporativa reduziu a guerra a espetáculos sem sangue de poder nacional e de conquistas tecnológicas. Solomon observa que o Pentágono “incorporou” cerca de 750 jornalistas, integrando-os diretamente na arquitetura do esforço de guerra.

Depois de terem promovido a invasão do Iraque, muitas das mesmas vozes propõem agora uma maior intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na guerra da Ucrânia. O New York Times chama o “apoio dos Estados Unidos à Ucrânia” um “teste do seu lugar no mundo no século 21”. A maioria dos meios de comunicação parece ignorar as semelhanças entre as duas guerras de agressão. No entanto, os paralelos permanecem inescapáveis: em Maio, o ex-presidente George W. Bush erroneamente denunciara o presidente russo, Vladimir Putin, pela sua “invasão brutal e totalmente injustificada do Iraque”, antes de esclarecer que se referia à Ucrânia.

Ao fazer eco das autoridades estatais, a mídia corporativa dá à propaganda do governo a aparência duma convicção privada e duma verdade objetiva. “No geral, os EUA foram condicionados a aceitar guerras em andamento sem saber realmente o que está sendo feito com pessoas que nunca veremos”, conclui Solomon.

Em particular, a cobertura da imprensa sobre a guerra na Ucrânia projeta a ilusão de consenso, mesmo num contexto em que o apoio público para o reforço militar da OTAN está a declinar. Ao apagar qualquer dissidência, os conglomerados de mídia escondem os terríveis custos da guerra e do sistema imperial que a financia – lucrando com o conflito que, pelas narrativas que vendem, se torna invisível.

Miséria mercantilizada

De muitas maneiras, o militarismo é uma forma de escola de guerra. “As gordas margens de lucro dos fornecedores do Pentágono e agências afins”, explica Solomon, aumentam a desigualdade econômica, ao mesmo tempo que retiram e redirecionam recursos de programas sociais. Com efeito, a guerra é perpétua porque é lucrativa, enriquecendo uma elite firmemente entrincheirada no complexo militar-industrial.

Confirmando a tese de Solomon, o Departamento de Defesa publicou um estudo histórico de empresários do setor militar em Abril passado, estudo no qual se registraram “excelentes retornos de mercado”, incluindo um aumento nas margens operacionais (lucro como parte percentual da receita) de 7-9 para 11-13% nas últimas duas décadas. Os fabricantes de armas superaram os seus pares comerciais por causa de contratos governamentais que garantem lucros e dinheiro em caixa.

Apesar de um salto nos dividendos e de recompras de ações de 3,7% a 6,4%, o setor na verdade diminuiu o investimento em operações comerciais. As empresas recusaram-se a reinvestir os ganhos em pesquisa ou no aumento de capital, canalizando as receitas para os acionistas. Os auditores compararam a transferência massiva de recursos para os investidores como o “comer a semente do milho” – “prejudicando as perspectivas futuras ao consumir recursos críticos em excesso para obter benefícios a curto prazo”.

Além de abocanhar as receitas do governo, os pesquisadores também criticam que as empresas se envolvam em desavergonhados lucros de guerra. O ex-diretor de preços no setor da defesa, Shay Assad, relata que o preço “extorsivo que ocorre é inescrupuloso” e generalizado. A Lockheed Martin e a Boeing cobraram do governo notoriamente acima do preço normal pelos mísseis PAC-3, obtendo lucros de 40%, em vez dos 10% a 12% legais, de acordo com um relatório do “60 Minutes”. Durante a Guerra do Iraque, o TransDigm Group até se recusou a fornecer válvulas críticas para os helicópteros Apache antes de ter aumentado os preços em 40% – uma prática que os auditores chamam de “extorsão”.

A concentração do poder da indústria nas mãos dos conglomerados de defesa e a guerra na Ucrânia encorajam a manipulação de preços. “Para muitas dessas armas que estão sendo enviadas para a Ucrânia agora, há apenas um fornecedor”, disse o ex-diretor de preços de defesa, Assad, ao “60 Minutes”. “E as empresas sabem-no.”

Enquanto isso, os empresários do setor militar estão usando a Ucrânia e outros mercados estratégicos como campos de teste para sistemas de armas. O major-general Robin Fontes e Jorrit Kamminga – que dirigem a empresa de consultadoria de armas RAIN – argumentam na revista National Defense que “A Ucrânia é um laboratório” para o futuro da guerra: “um esforço central, implacável e sem precedentes para ajustar, adaptar e melhorar os sistemas habilitados para a [inteligência artificial]”. Utilisando software de IA, empresas como a Planet Labs e a BlackSky Technology fornecem inteligência aos soldados em tempo real, funcionando como extensões dos EUA no esforço de guerra ucraniano, criando um ambiente de combate fluido e rico em informações.

Este mês, o governo Biden aprovou até bombas de fragmentação para a Ucrânia, depois de ter sugerido que o seu uso constituía um “crime de guerra”. As forças ucranianas e russas já as empunham em combate, violando uma convenção internacional que proíbe o uso de explosivos indiscriminados. Em conflitos anteriores, os investigadores alegaram que as empresas ocidentais fabricavam essas bombas em formatos de brinquedos para atrair e mutilar civis – incluindo crianças.

No entanto, para os fabricantes de armas, o Oriente Médio continua sendo o laboratório de armas por excelência. Israel foi o primeiro país estrangeiro para receber o avião F-35 Lightning, e os seus pedidos financiaram o desenvolvimento do caça. Em 2014, as forças israelitas destruíram áreas inteiras da Palestina com esses jatos, enquanto ajudavam a Lockheed Martin a aprimorar o seu design. Durante a ofensiva, os EUA reabasteceram as munições de Israel imediatamente após ter sido bombardeada uma escola primária, permitindo que as suas forças excedessem o poder de fogo do Hamas numa proporção de 440 para 1.

Pouco antes dos seus ataques de Maio de 2023, os pilotos israelitas realizaram um “exercício em larga escala” com F-35s juntamente com os seus colegas americanos na Base Aérea de Nellis, no estado de Nevada. “É uma rara oportunidade para combatentes de ambos os países integrarem as nossas capacidades mais avançadas”, exclamou o coronel Jared Hutchinson, o comandante dos EUA que supervisiona a iniciativa.

Posteriormente, Israel bombardeou a faixa de Gaza com artilharia dos EUA, incluindo uma bomba Boeing GBU-39 que destruiu um prédio de apartamentos – matando vários civis, incluindo uma jovem no momento em que se preparava para o seu casamento. A campanha militar danificou 2.943 unidades habitacionais, empregando nos ataques aéreos meios “desproporcionais” que a Amnistia Internacional considerou crimes de guerra.

Em vez de isso ter contribuido para minar as suas relações, os fabricantes de armas dos EUA e de Israel converteram crimes de guerra em argumentos publicitários. Apenas um mês depois, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, a Elbit Systems e a Israel Aerospace Industries participaram no Paris Air Show para conseguir novas vendas, gabando-se de que suas armas tinham passado pela “comprovação em combate”. Significativamente, o jornal Haaretz chama os territórios ocupados de “salas de aula” para os militares “testarem os seus equipamentos”, pesadamente subsidiados pela ajuda dos EUA.

O dinheiro continua afluindo. Solomon relata que os fabricantes de armas gastaram US$ 2,5 milhares de milhões em lobby nas últimas duas décadas, financiando as campanhas de legisladores importantes como Adam Smith, presidente do Comitê de Serviços Armados da Câmara.

Ao globalizar o complexo militar-industrial, a classe dominante tornou a guerra ao mesmo tempo permanente e distante, sustentando a formidável capacidade bélica do império dos EUA em conflitos no estrangeiro. Aliados como a Ucrânia e Israel, tornam-se mercados para venda de equipamentos testados em batalha. A turbulência geopolítica consolida a prosperidade dos conglomerados enquanto consome recursos que deveriam ser afetados a programas sociais e para os pobres.

Imperialismo voluntário

Finalmente, a classe dominante torna a guerra invisível usando recrutas anônimos e contratados privados para manter a infraestrutura difusa de um império global. Na década de 1970, os militares fizeram a transição para uma “força totalmente voluntária”, para sugar a energia do movimento antiguerra e separar as forças armadas do escrutínio. “O recrutamento do exército aprendeu a vender o serviço militar juntamente com o sabão e os refrigerantes no mercado de consumo”, observa a historiadora Beth Bailey.

Solomon enfatiza que os recrutadores têm-se aproveitado das pessoas mais vulneráveis, prometendo que “o recrutamento significa abrir portas para melhores oportunidades”. Ao introduzir incentivos econômicos e eliminando o recrutamento geral da população, os oficiais criaram uma classe guerreira isolada do público em geral. O Pentágono, agora, mobiliza para guerras que a maioria da população dos EUA nunca testemunhará, minimizando preventivamente a reação política.

À medida que as desigualdades econômicas aumentam, um analista da Brookings Institution ressalta que os militares são “um dos últimos bastiões da mobilidade social da classe média”, atraindo recrutas com assistência médica e mensalidades universitárias gratuitas. No entanto, o Exército enfrenta escassez crônica de pessoal, incentivando os oficiais a visar crianças a partir dos 12 anos, bem como grupos marginalizados, incluindo comunidades indígenas no Canadá. Nos últimos anos, os militares têm buscado recrutas oferecendo cidadania a estrangeiros, reforçando a sua presença nas redes sociais e até mesmo anunciando brindes falsos do Xbox só para atrair os jovens para o seu site.

Solomon também aponta que esse pessoal supervisiona uma intrincada rede de cerca de 750 bases militares em todo o mundo, permitindo que as forças armadas exercitem a sua musculatura em todos os continentes. Além de facilitar mobilizações em larga escala, as instalações militares no estrangeiro possibilitam operações secretas e até manipulações políticas.

Repetidas vezes, bases na América Latina facilitaram golpes contra governos de esquerda. Após o presidente equatoriano, Rafael Correa, ter fechado uma base militar em Manta, o seu sucessor levantou acusações judiciais espúrias contra ele, enquanto, em paralelo, recebia de braços abertos as forças dos EUA de volta ao país. Em 2018, o Ministério da Defesa do Equador chegou a anunciar planos para permitir que militares dos EUA usem as Ilhas Galápagos para operações, apelidando o arquipélago dum “porta-aviões natural”.

As bases estrangeiras também permitem que os EUA assegurem o controle sobre recursos estratégicos. Em nenhum lugar isso é mais verdadeiro do que no Perú, um país rico em minerais, onde em Dezembro passado autoridades dos EUA apoiaram a deposição do presidente Pedro Castillo, um populista que estava promovendo a soberania econômica. Sua rival Dina Boluarte iniciou uma onda de repressão que matou mais de 60 civis, culminando no que o presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos chamou de “massacre” contra a população indígena em Ayacucho.

Recentemente, Boluarte autorizou a entrada de 1.242 soldados estadunidenses, enviando um sinal aterrador aos manifestantes. Citando a mudança de regime no Perú, um coronel treinado pelos EUA na Colômbia também anunciou em Maio planos para “defenestrar” o presidente esquerdista do seu país.

Na África e no Oriente Médio, as bases funcionam como plataformas de armas multiplicadoras de força para ataques de drones. Desde 2007, a guerra aérea dos EUA na Somália contra o al-Shabab matou pelo menos 90 civis, mas o Pentágono reconhece apenas cinco das vítimas e recusa-se a indemnizar as suas famílias.

Apesar das alegações de precisão, a precisão indiscriminada da guerra de drones agrava os conflitos regionais. Em 2017, os EUA ajudaram por engano autoridades nigerianas a bombardear um campo de refugiados que o próprio governo tinha construido, matando mais de 160 civis. Drones até bombardearam casamentos no Iêmen e no Afeganistão. Mais recentemente, um drone dos EUA permitiu que a França matasse “membros de grupos terroristas armados” em Bounti, no Mali. Mais tarde, as forças das Nações Unidas descobriram que as vítimas eram membros de outra festa de casamento.

Os formuladores de políticas dos EUA retratam invariavelmente os seus dispositivos militares “além do horizonte”, tais como bases militares e de drones, como um imperativo de segurança. No entanto, como Solomon argumenta, eles na verdade fomentam a insegurança, alienando comunidades em todo o mundo e alimentando ciclos de respostas violentas.

Essas consequências não são apenas invisíveis, mas duradouras. Nesta primavera, a Brown University publicou um estudo estimando que os conflitos pós-11 de Setembro mataram mais de 4,5 milhões de pessoas. Sob as sanções dos EUA, observa o artigo, a maioria dos afegãos sofre de desnutrição e está morrendo de causas relacionadas com a guerra em taxas mais altas do que nunca.

Enquanto os veteranos americanos da guerra no Afeganistão lutam na Ucrânia, o espectro dos conflitos do passado assombra o presente. Isso nos deixa com o que Salomon chama de cicatrizes profundas e “ausências trágicas”: mentes envenenadas e corpos despedaçados, populações famintas e terras semeadas com munições. Do Afeganistão à Ucrânia, os mesmos argumentos, armas e soldados estão colhendo os mesmos resultados. Mais de duas décadas depois de invadir o Oriente Médio, os EUA ainda anunciam a paz ao longo de uma via circular que só pode conduzir à guerra.


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