TEATRO
Por Alessandra Costa
Fruto da mistura entre um português e uma maracajá, “Joãozinho” é considerado o primeiro mestiço “carioca” legitimamente registrado na história.
Espetáculo que narra a trajetória do marinheiro João Lopes, no século XVI, considerado o primeiro homem europeu a assumir a paternidade de um filho gerado com uma indígena Maracajá, às margens da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, chega ao palco do Futuros – Arte e Tecnologia dia 04 de agosto, com temporada até 17 de setembro, de quinta a domingo.
Segundo o diretor da peça, Marco André Nunes, a ideia surgiu a partir do estudo de outro espetáculo da Cia, Guanabara Canibal, de 2017, e que continha uma história de um marinheiro, piloto português, degredado no Brasil como punição por traficar machados para indígenas, sendo considerado um traidor dos europeus. Ele estabelece contato com a aldeia Maracajá, na Ilha do Governador, quando acaba por se relacionar com uma indígena com a qual tem um filho.
Quatro anos depois, uma embarcação espanhola chega ao Brasil, rouba toda madeira (Pau-Brasil) e leva João Lopes com eles. O marinheiro volta para a Europa, não se sabe se a pedido dele próprio ou forçadamente, mas tenta voltar para o Brasil para rever o filho. “João consegue retornar nas caravelas de Fernão de Magalhães, uma vez que ele sabia que a expedição passaria pelo Brasil. Convence a expedição a parar no Rio de Janeiro para abastecer, pegar mantimentos, mesmo depois de ter parado em Salvador, e ficam por duas semanas na Cidade. Nessa parada, ele reencontra o filho e resolve levá-lo para a Europa”, explica.
“Diferentemente do padrão reproduzido ao longo da colonização, no qual a mestiçagem originou-se do estupro e violência europeia, a trajetória de João Lopes aponta para excepcionalidade: para além das relações de dominação, o afeto entre pai e filho”, acrescenta.
Este fato é considerado o primeiro registro de mestiçagem entre um homem europeu e uma mulher indígena. Não que não houvesse milhões de estupros antes disso, no entanto, esse é o primeiro registro de um “carioca”. “Mas o que quer dizer isso, o que encobre essa situação? A peça tenta abrir um pouco essa discussão. A peça nasceu junto com o Guanabara Canibal. É uma continuidade direta”, aponta Marco André.
Ainda de acordo com o diretor, a expedição de Magalhães tem um final bem trágico, quando, de todas as caravelas que saíram da Europa, apenas uma retorna e vários acontecimentos levam a isso. “O próprio Fernão de Magalhães morre no trajeto, alguns navios são afundados, tem motim, embarcações se perdem, uma grande parte da tripulação morre quando entram em embates geopolíticos na região, e acaba jogando um contra o outro, morrendo em batalhas”, conta.
Em continuidade à “Trilogia Carioca”, Terra Desce tem texto de Pedro Kosovski, e é uma realização da Aquela Cia, companhia teatral com mais de quinze anos de atividades ininterruptas e reconhecimento nacional e internacional da crítica e público tendo recebido os principais prêmios de teatro do Brasil.
“A criação tem como ponto de partida as narrativas da colonização do Brasil posicionando crítica e poeticamente personagens e acontecimentos históricos sob à luz da atualidade. Com uma dramaturgia tensionada entre a fabulação e a memória histórica e uma encenação onde a fisicalidade dos intérpretes, a performance musical e visual têm primazia”, revela Pedro Kosovski.
Cronologia
A história de João Lopes é contada através do livro “Rio antes do Rio”, de Rafael de Souza e o destino final eram as Ilhas Molucas, próximo à Indonésia, onde seriam negociadas as especiarias. Chegando lá, o responsável pelo local é o sultão Siripada, e quem está no comando da expedição é João Lopes. Ele deixa o filho e mais dois tripulantes fazendo negócios, mas o líder local, que estava a favor dele, se coloca contra, ataca, pega o filho e aprisiona. Nesse momento, João Lopes não tinha como voltar, seguindo até determinado ponto com duas embarcações. Eles resolvem que uma vai seguir a circunavegação e a outra vai voltar, fazendo o mesmo caminho, passando pelas Ilhas Molucas, na esperança de rever o filho.
Esta embarcação que manteve a circunavegação chega à Espanha, seu ponto inicial, e João Lopes acaba morrendo no trajeto e, pelo que consta na história, deprimido, triste por não conseguir reencontrar o filho.
“Alguns livros que a gente lia durante o estudo do Guanabara Canibal nos deram a ideia de como colocar em prática o Terra Desce. Essa foi uma das histórias que marcou muito. Era uma história tão ‘rocambolesca’ de acontecimentos que acabou se tornando outra peça, não dava para estar contida no Guanabara”, afirma Pedro Kosovski.
Essas narrativas do Rio de Janeiro se tornaram temas desde 2012, e Terra Desce vai nesse mesmo sentido pois parte desse primeiro registro de um encontro entre um europeu e uma mulher indígena. Tanto que, no livro do Rafael, Rio antes do Rio, esse tema é chamado ‘a viagem do primeiro carioca’.
O espetáculo se inicia com Guida Vianna e Ricardo Kosovski interpretando dois atores que há quatro décadas tentam realizar uma peça que narra a história de João Lopes e seu filho, “Joãozinho”. “Eles estão em uma sala de ensaio e há 40 anos ensaiando a mesma peça. Ao mesmo tempo, a obra é uma oportunidade de narrar a história do Brasil a partir do olhar de dois atores mais velhos, inclusive sobre si próprios, quase como antropólogos de si mesmos, como se o teatro fosse uma aldeia”, afirma Pedro Kosovski.
Segundo a direção, em determinado momento há uma intervenção na cena que subverte radicalmente o olhar colonizador da história. “A peça tem essa pegadinha, como se fosse uma peça de dois brancos, mais uma vez, contando a história da colonização do Brasil, mas há um agente surpresa que toma o protagonismo da cena e inverte a ótica sobre a história.”, acrescenta Marco André.
O espetáculo também projeta uma utopia social, como preconiza Darcy Ribeiro, em que o Brasil seria um lugar de encontro das raças, com reparações a serem feitas, mas ao mesmo tempo com a ideia da invenção de um país. “Acho que a peça propõe pensar nisso. ‘O que se faz a partir desse encontro?’ O Darcy também é uma referência até no sentido crítico”, conclui Pedro Kosovski.
De pai para filho
Um dos atores em cena no espetáculo é Ricardo Kosovski, pai do autor da peça, Pedro Kosovski. Ele celebra os encontros que são realizados durante a apresentação. “Esse projeto constitui um triângulo muito poderoso, que envolve uma questão fraterna em relação à Guida [Vianna], que é minha irmã teatral, minha irmã artística, desde a década de 70. Nós temos um convívio geracional de atravessarmos um período da história. Tem também uma questão paterna muito forte, que é trabalhar com Pedro, meu filho. Esse projeto segmenta uma parceria que já vem de muito tempo, a parceria artística. É pai e filho dentro de uma sala de ensaio, artisticamente”, aponta Ricardo.
“Além disso, tem uma questão da amizade muito grande que eu nutro pelo Marquinhos [Marco André], então, acho que tem esses três lugares que se constituem como processo de trabalho, amizade e paternidade, e a fraternidade, sendo um tripé muito forte”, completa.
Guida Vianna, atriz que contracena com Ricardo Kosovski, lembra que a peça retrata a história de um dos primeiros mestiços registrados no Rio de Janeiro e faz com que reflita em todo um país, marcado pela miscigenação.
“A partir de uma fábula do ‘primeiro carioca’, podemos falar de nós, do Brasil, dessa utopia mestiça. Como o reencontro meu e de Ricardo no palco ficou muito forte, surgiu ainda essa sala de ensaio, onde nós redescobrimos o mesmo amor e entusiasmo pelo teatro que compartilhamos desde a década de 70. Estamos há quase 50 anos dedicando a essa ficção de nós mesmos”, comemora a atriz.
Sobre o Futuros – Arte e Tecnologia
Inaugurado há 18 anos com a proposta de democratizar o acesso a experiências de arte, ciência e tecnologia, o centro cultural Futuros – Arte e Tecnologia tem a Oi como fundadora e principal mantenedora. Em abril de 2023, sob a chancela do Oi Futuro, o equipamento cultural se abriu a novos parceiros: EY, Eletrobras Furnas e BMA Advogados são os primeiros patrocinadores anunciados pela instituição.
Com programação diversa que aposta na convergência entre arte contemporânea, ciência e tecnologia, Futuros recebe cerca de 100 mil visitantes por ano. O espaço abriga galerias de arte, um teatro multiuso, um bistrô e o Musehum – Museu das Comunicações e Humanidades, que detém um acervo de mais de 130 mil peças históricas sobre as comunicações no Brasil. O Musehum promove experiências imersivas e interativas que convidam a refletir sobre o impacto das tecnologias nas relações humanas.
As galerias do centro cultural já foram ocupadas por expoentes internacionais de diversas vertentes, como Andy Warhol, Nam June Paik, Tony Oursler, Jean-Luc Godard, Pierre et Gilles, David Lachapelle, Chantal Akerman; e brasileiros como Luiz Zerbini, Rosângela Rennó, Daniel Senise, Lenora de Barros, Iran do Espírito Santo, Arthur Omar, Marcos Chaves e outros. Nas artes cênicas, o espaço foi palco de espetáculos inéditos e premiados de Felipe Hirsh, Gerald Thomas, Enrique Diaz, Antonio Abujamra, Denise Stoklos, Victor Garcia Peralta, Aderbal Freire, João Fonseca e outros.
Com quase duas décadas de trajetória, Futuros – Arte e Tecnologia também sediou diversos eventos de destaque na cena cultural carioca, incluindo Festival do Rio, Panorama de Dança, FIL, Multiplicidade, Novas Frequências e Tempo Festival, sendo os três últimos especialmente concebidos para a instituição.
SERVIÇO
Espetáculo Terra Desce
De 3 de agosto e 17 de setembro – De quinta a domingo – às 19:00
Teatro Oi Futuro Flamengo
Endereço: R. Dois de Dezembro, 63 – Flamengo, Rio de Janeiro
Ingressos: R$ 40 (inteira) / R$ 20,00 (meia)
FICHA TÉCNICA
Espetáculo Terra Desce
Direção: Marco André Nunes
Texto: Pedro Kosovski
Elenco: Guida Vianna, Ricardo Kosovski e Raynna
Músico: Xainã
Direção Musical: Felipe Storino
Cenário: Aurora dos Campos e Marco André Nunes
Figurino: Fernanda Garcia
Iluminação: Renato Machado
Diretora Assistente: Carolina Lavigne
Direção de Movimento: Paula Águas e Toni Rodrigues
Design Gráfico: Igor Gouvea
Fotos: João Júlio Mello
Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa
Produção Executiva: Thaís Venitt e Isadora Frucchi
Direção de Produção: Gabi Gonçalves
Realização: Aquela Cia e Corpo Rastreado