SAÚDE
Por Joyce Enzler
Na quarta, 26/7, das 10h às 15h, na sala 410 da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), aconteceu o seminário Tecnologias Sociais em Saúde na Bacia Hidrográfica do Canal do Cunha. O evento apresentou os resultados alcançados pela pesquisa realizada no Complexo do Alemão, que teve a coordenação colegiada do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental (DSSA/Ensp/Fiocruz) e da Coordenação de Cooperação Social da presidência da Fiocruz, com as parcerias de pesquisadores do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e das organizações da sociedade civil, com sede no Complexo do Alemão, Verdejar Socioambiental e Espaço Democrático de União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção (Educap).
A atividade buscou refletir sobre as interconexões entre doença, saneamento e Determinantes Sociais de Saúde e como as condições socioeconômicas afetam a vida das populações, impactando o processo saúde-doença. A mesa de abertura contou com a presença dos representantes da Direção da Ensp, atualmente coordenador geral do Lato Sensu e Qualificação Profissional da Escola, Gideon Borges; da Vice-presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz), a coordenadora de Promoção da Saúde, Adriana Castro; da Cooperação Social da Fiocruz, André Lima; do DSSA/Ensp/Fiocruz, Maria José Salles; da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Clima (Smac), Vinicius Oliveira e da Ong Verdejar, Adriana Princisval.
Na ocasião, o pesquisador Gideon Borges afirmou a questão hídrica como uma das prioritárias para a humanidade. Além disso, destacou o compromisso de toda a equipe do DSSA com a transformação social, em consonância com o que pensa a Ensp, como Escola produtora de conhecimento voltado às necessidades da sociedade. “Esse projeto mostra o compromisso de produzir um conhecimento que tem como perspectiva mudar a vida das pessoas. Isso é de uma importância que diz muito sobre essa instituição, sobre o DSSA e toda a equipe que esteve à frente disso”, acentuou.
Para a pesquisadora Adriana Castro, toda a reflexão sobre Promoção da Saúde e Determinantes Sociais da Saúde não pode se afastar da discussão de saneamento e direito à agua. “Essa pesquisa participativa em Tecnologias do Saneamento é relevante por pensar em soluções a partir dos territórios, ampliando a capacidade de incidência política das comunidades”, afirmou. Segundo ela, é necessário ratificar a todo momento o compromisso dos pesquisadores com os territórios, com as entregas de tecnologias sociais e empoderamento da cidadania.
Já André Lima, representante da Cooperação Social, chamou a atenção para o Conferência das Partes sobre o Clima (COP) em 2024: “Será importante para imprimirmos na agenda mundial a necessidade de revermos esse paradigma que destrói nosso ambiente e que por conseguinte vai encerrar a existência humana, se continuarmos nesse ritmo, como tem nos mostrado a Ciência”. Segundo Lima, a tecnologia social ao lado da economia solidária é um caminho para um mundo mais saudável, especialmente no que tange aos recursos hídricos, essenciais ao bem viver e na discussão do conceito ampliado de saúde.
“Nós que dependemos do planeta e não o contrário”
De acordo com a pesquisadora titular Maria José Salles, a saúde tem no saneamento um dos seus braços principais, porém na pandemia, o álcool ganhou da água, mesmo o Brasil sendo um país rico em biodiversidade e considerado o manancial do mundo. Para ela, a importância desse grupo, formado por trabalhadores da Fiocruz e lideranças comunitárias, foi colocar em prática tecnologias sociais e apropriadas, que podem ser aplicadas em qualquer lugar do Brasil e do mundo. “Essa equipe despertou aquela vontade de quando eu comecei a trabalhar com saneamento para melhorar a vida das pessoas”, lembrou Salles.
Vinicius Oliveira pontuou que tão importante quanto apresentar-se como Gerente de Monitoramento Ambiental da Smac foi identificar-se como um ex-aluno do DSSA/Ensp, colega de turma da professora Maria José Salles. Também declarou que a secretaria de Meio Ambiente trabalha com moradores locais na área de preservação ambiental há quase 40 anos. Por isso, ele observou: “Essa jornada nos coloca em uma posição de sentar à mesa para discutir, tendo muito a aprender e um pouco a dividir, e pensar projetos com a qualidade e interação dessa tecnologia social no Complexo do Alemão, salientou.”
Para finalizar a mesa, a ativista e moradora do Complexo do Alemão, Adriana Princisval, da Ong Verdejar expôs como foi rica a troca entre moradores e pesquisadores do projeto sobre tecnologias sociais em saúde. “Com a pesquisa, tivemos a oportunidade de conversar com as pessoas sobre a importância da água, do saneamento e das tecnologias sociais”. Para ela, tanto a Ong que discute Educação Ambiental há 25 anos, como todos os parceiros tiveram relevante papel na implantação do biofiltro e processo de evapotranspiração na favela, porque a maioria das pessoas não conhecia que existia uma outra alternativa possível na questão de tratamento do esgoto. “Precisamos repensar o nosso modo de vida. Nós dependemos do planeta e não ele da gente”, com essa frase a ativista mostrou como é fundamental trocas e parcerias na produção do conhecimento e no exercício de colocar em prática ferramentas a serviço da sociedade.
Apresentação dos resultados da pesquisa no Alemão
A segunda parte do evento começou com a apresentação dos resultados da pesquisa. A coordenadora do projeto e pesquisadora titular do DSSA/Ensp, Adriana Sotero, discorreu sobre o processo de implementação da tecnologia social de saneamento ambiental na área dos Mineiros, no Complexo do Alemão. A situação econômica desse local, que é considerado um aglomerado subnormal de acordo com a caracterização do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), geralmente possui déficit de acesso à água e de esgotamento sanitário e ocorrem doenças e mortes que poderiam ser evitadas, caso houvesse saneamento ambiental adequado na região. A partir de um questionário, a equipe do projeto também constatou que 38,2% tinham intermitência de água, recebiam água uma ou duas vezes por semana, e 40% ficaram sem água para higienização durante a pandemia.
A pesquisadora relatou como a equipe do projeto mapeou as possíveis nascentes que poderiam receber a tecnologia, realizando análise de vazão e da qualidade sanitária da água. Além disso, houve troca e valorização do conhecimento daquela localidade, agregaram-se saberes com a experiência da Ong Verdejar tanto na bacia de evapotranspiração, usada no tratamento de esgoto, como na articulação dentro do território, promovendo Educação Ambiental, mutirões agroecológicos. Para ela, toda a equipe da pesquisa assumiu o papel do beija-flor, como na fábula, em que ele levava umas gotinhas de água para apagar o incêndio na floresta. “Esperamos assim despoluir a Baía de Guanabara e que essa iniciativa se propague. A região poderia receber mais tecnologia, se a prefeitura apoiasse, o que beneficiaria mais pessoas”, destacou Sotero.
A coordenadora informou que moradores mostraram um local no alto do morro com nascentes limpas e bonitas, uma área verde onde as crianças brincavam. “Era uma queda de água de 70 metros, com peixinhos, e a relação das pessoas dali com a natureza, tomando banho no rio, era emocionante. É preciso resgatar nos moradores essa memória afetiva com as águas”, afirmou. Essa é a região onde nascem as águas, que percorrem uma grande área até chegar ao Canal do Cunha e desembocar na Baía de Guanabara. Para Sotero, a solução para a despoluição da Baía deve começar lá em cima, “As nascentes são limpas, porém no caminho são poluídas, recebendo esgotos, sujando os rios, até a população confundir o rio com valão”, assegurou.
“Caminho das águas: a importância da Serra da Misericórdia”
A geógrafa da Cooperação Social da Presidência da Fiocruz e integrante do Observatório da Bacia Hidrográfica do Canal do Cunha, Rejany Ferreira, também destacou a beleza daquela área verde, que é uma APARU (Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana), desde o ano 2000, via decreto nº 19.144, por meio de mobilização dos moradores e lideranças ambientalistas da região, tendo à frente as Ongs Verdejar e Bicuda Ecológica, que conta com o apoio da Rádio Comunitária Bicuda FM. Outro pleito da comunidade é que o local vire o Parque Ecológico da Serra da Misericórdia. “Precisa-se implementar o Parque com urgência, porque esta é a última área verde da Zona da Leopoldina. Então, a preservação desse território é essencial, cuidando das áreas verdes das nossas nascentes, teremos um Canal do Cunha menos poluído e a Baía de Guanabara limpa”, constatou.
A pesquisadora explicou que a bacia de evapotranspiração era um sistema que o Verdejar tinha em sua sede. Então, todo o processo foi construído em diálogo com os moradores e tecendo os saberes existentes no Complexo. “Na cozinha a água era quente via luz solar e todo o esgoto da sede era tratado pela bacia de evapo. Eles já usavam essas alternativas e nos ensinaram algumas tecnologias”, garantiu Ferreira. Para ela, a Ong consegue colocar em prática no território o que aprendem, promovendo um ciclo produtivo de aprendizagem e ensino: com problematização, significação, experimentação, reflexão, ação e avaliação. Então, a bacia de evapotranspiração, também conhecida como “fossa de bananeira”, foi construída dentro do quintal de uma família para não usar a área de proteção ambiental. Além dessa, o esgoto de duas casas foram ligados à bacia, que os recebe, trata, transforma os resíduos em nutrientes para plantas e árvores, como a bananeira, e a água sai pela parte de cima, por evaporação, completamente limpa.
Tanto a pesquisa de mestrado de Rejany, Análise da Presença de Atividade Estrogênica e Toxicidade no Canal do Cunha e sua Contribuição para a Poluição da Baía de Guanabara, quanto a de doutorado de Natasha Handam, Condições Sanitárias da Água Residencial, do Solo Peridomiciliar e dos Rios das Comunidades do Território de Manguinhos, RJ contribuíram para essa experiência no Complexo do Alemão. Para Ferreira, o que a equipe do projeto levou de novo foi o filtro biológico. Foram realizadas algumas oficinas no território para que a população pudesse escolher o sistema desde que tivesse viabilidade técnica de instalação. Destaca ainda que a equipe da Fiocruz levou o projeto, mas para fazer com os moradores, porém promoveu a escuta e o diálogo. “O mais importante desse projeto é que nós construímos com o território, com ações que já existiam, enquanto pesquisadoras de instituição pública tentamos viabilizar, buscando recursos, como a Emenda Impositiva do Marcelo Freixo”, destacou.
“Todo o processo construído com os moradores”
A pesquisadora do Programa de Saúde Pública e Meio Ambiente (PSPMA) da Ensp, Natasha Handam, descreveu como primordial para o projeto a participação dos moradores do Complexo do Alemão tanto guiando a equipe pelo caminho das águas, em um território que abriga nascentes, como participando das oficinas para a construção das tecnologias sociais. “Todo o processo construído realizou-se com a participação dos moradores do território”, garantiu Handam. Além disso, aconteceu a criação coletiva da cartilha que apoiou as ações de Educação Ambiental. Nessa fase, em conversas com moradores, descobriu-se, por exemplo, como armazenam e filtram a água para beber e daí surgiu a ideia de utilizar o Caderno de Saúde e Ambiente – Volume 1, nº1, que se chama Água Potável: cuidados e dicas. Essa cartilha está no repositório da Agência Nacional de Águas Saneamento Básico (ANA) e foi produzida durante o projeto realizado em Manguinhos. O material trata da melhoria da água residencial, de como melhorar a água que a população recebe em sua casa.
O biofiltro é uma tecnologia para a população ter acesso a uma água tratada e o que foi construído no Complexo do Alemão é uma forma alternativa durante a falta ou intermitência do abastecimento de água para a população. De acordo com Handam, essa água vem direto das nascentes, recebe tratamento e pode ser usada para atividades domésticas, como lavar roupa, limpeza da casa ou para outros fins, como regar jardins, utilizar nas hortas e se mantiver o bom funcionamento do biofiltro, poderá ser usada para beber também. Essa nascente foi escolhida porque apresentou um nível médio do Índice de Qualidade das Águas (IQA) adequado. Esse índice avalia a qualidade da água bruta para tratamento e abastecimento público. “Esse local foi escolhido, porque apresentou um nível de qualidade satisfatório para receber a tecnologia de biofiltro, por ter fácil acesso para os moradores e por ser uma localidade alta, na Serra da Misericórdia, no Morro dos Mineiros”, explicou Natasha. Com o sistema, não há lançamento direto de esgoto sanitário nas nascentes.
Durante o projeto no Complexo do Alemão, foi construído, com um grupo de pesquisa e com os moradores do território, o Caderno de Saúde e Ambiente nº2 Alternativas para o saneamento e Tecnologias Sociais. “Todo o processo construído realizou-se com a participação dos moradores do território”, garantiu Handam. Para instalar o sistema de biofiltro são necessárias algumas condições, como a declividade do terreno, para que a água possa entrar no sistema de biofiltro através da ação da gravidade. Para isso, precisa ter vazão de água nas nascentes. É importante também que tenha mata ciliar em volta dessas nascentes para ajudar no equilíbrio hídrico. Segundo a pesquisadora, o sistema é composto pelos seguintes elementos: uma pequena represa, que é o local da captação da nascente; o decantador, que separa os sedimentos da água; a filtração lenta e o reservatório. É importante também que o encanamento tenha furos e seja protegido com manta de acrilon para evitar a entrada de galhos, de parte sólidas, de folhas e até de peixes, porque podem entupir o sistema de biofiltro.
Estudantes, representantes da Águas do Rio e de diversos movimentos sociais também estiveram presentes no seminário, interagindo com perguntas e comentários sobre a implementação das tecnologias sociais.