ARTES VISUAIS
Por Wando Schwarz Soares
Arte Sesc abre exposição sobre signos ancestrais com obras de Emanoel Araujo e nomes da nova geração
– Trabalhos de Guilhermina Augusti e Raphael Cruz vão dialogar com obras do fundador do Museu Afro Brasil, que morreu ano passado.
– Mostra “ÀMÌ: Signos Ancestrais” dá sequência ao trabalho do Sesc RJ de tornar público seu acervo de mais de 500 peças.
– Obra em madeira policromada de mais de 2 metros exposta em uma área externa do Sesc Copacabana foi restaurada e volta ao circuito expositivo no Flamengo
– Revelação do jazz contemporâneo, o pianista Jonathan Ferr faz o show de abertura
RIO DE JANEIRO – O Espaço Cultural Arte Sesc (Rua Marquês de Abrantes 99 – Flamengo) inaugurou no dia 2 de maio, às 18h, a exposição “ÀMÌ: Signos Ancestrais”, com pinturas, esculturas e serigrafias que jogam luz sobre os significados dos cultos de matrizes africanas. O espaço receberá 13 obras assinadas por Guilhermina Augusti, Raphael Cruz e Emanoel Araújo – artista plástico baiano falecido ano passado, um dos principais nomes das artes do país e fundador do Museu Afro Brasil, em São Paulo. A mostra será aberta com show do pianista Jonathan Ferr, um dos maiores nomes do jazz brasileiro na atualidade. A entrada é franca.
O nome da mostra – “ÀMì” – vem da língua yorubá e significa “símbolo”. Ela era falada pelo povo de mesmo nome escravizado e comercializado na Costa dos Escravos e trazido ao Brasil na diáspora africana no século XIX. Antes residente abaixo do deserto do Saara, o povo nagô, como ficou conhecido no Brasil, possuía uma riqueza de ritos, cultos e pensamento matemático que acabaram sendo incorporados ao Brasil como parte da cultura nacional.
“Estimulados pela obra de Emanoel Araújo, constante da Coleção Arte Sesc, percebemos um jogo dual que o grande artista nos propunha. Por um lado, a geometrização abstrata, formal; por outro, cores que se relacionam aos cultos afro-brasileiros. Decidimos, então, seguir esta rota, perguntar ao presente sobre o legado deixado por Araújo nas criações mais recentes”, explica o curador Marcelo Campos, fazendo referência aos artistas convidados, Guilhermina Augusti e Raphael Cruz, nomes da nova geração cujos trabalhos dialogam em significado com a obra de Emanoel.
Artista trans criou a bandeira hasteada no MAR
A artista trans Guilhermina Augusti vem elaborando reflexões sobre o corpo e suas diversas metamorfoses, utilizando imagens de cunho histórico para recontextualizações. Foca, sobretudo, nas relações entre gênero, sexualidade e racialidade, valendo-se de geometrismos, símbolos e simbologias. Um exemplo é a bandeira hasteada pelo Museu de Arte do Rio (MAR), em maio do ano passado, com as palavras Atravecar e Escurecer, obra selecionada no 8º Prêmio Artes Tomie Ohtake (veja abaixo detalhes sobre o trabalho da artista).
Nascido na periferia, artista carioca fez residência em Berlim
Nascido e criado no bairro de Irajá, Zona Norte do Rio, Raphael Cruz passeia pela pintura, fotografia, performance e escultura. Suas obras são consideradas uma continuidade orgânica da arte clássica africana em linguagem contemporânea conectada à tríade forma, cor e ritmo – em correlação a signos sacros afrodiaspóricos. Após residência em Berlim, na Alemanha, teve seu trabalho exposto na mostra Nova Vanguarda Carioca, com curadoria de Gringo Cardia, ano passado, na Cidade das Artes (veja abaixo mais sobre Raphael Cruz).
Obra restaurada de Emanoel é ponto de partida da mostra
Reaberto em janeiro de 2022 depois da restauração da Mansão Figner, o Espaço Cultural Arte Sesc vem se dedicando a tornar acessível ao público obras do seu acervo de mais de 500 peças por meio de diferentes recortes curatoriais.
A mostra inaugural foi “Notícias do Brasil: Carybé, Cícero Dias e Glauco Rodrigues”, com gravuras assinadas por esses artistas, em celebração aos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. Na sequência, o espaço recebeu “Abstrações”, composta por obras de artistas mulheres que exploram o caminho da abstração em diferentes tempos e formas expressivas: Fayga Ostrower, Renina Katz, Anna Letycia e Anna Maria Maiolino (peças do acervo), Ana Cláudia Almeida e Laís Amaral (convidadas).
Desta vez, o embrião de “ÀMÌ: Signos Ancestrais” foi uma peça de Emanoel Araújo que estava exposta em uma área externa do Sesc Copacabana. A obra, sem título, data de 1985, foi feita em madeira policromada e tem 2,5 metros de altura e 1,6 metros de largura. Após restauro e tratamento curatorial, a obra voltará ao circuito das artes visuais.
“A obra ficou durante muitos anos alocada em uma região externa do Sesc Copacabana, aberta à visitação do público, mas não participando de um circuito expositivo. Ela compunha o design da entrada do espaço, sem um diálogo conceitual e curatorial, nem identificação”, explica Ana Paula Rocha, museóloga do Sesc RJ.
“A partir da identificação do trabalho, nós fizemos um diagnóstico do estado de conservação, identificamos se as cores são originais, reintegramos algumas perdas na estrutura – que são naturais por causa do tempo e da exposição às intempéries do clima – e fizemos um trabalho de descupinização. Tivemos toda uma preocupação em cima desse acervo para que ele estivesse em plenas condições de exibição, mas respeitando o preceito da interferência mínima”, conclui a museóloga.
Além da obra restaurada, a exposição conta com mais três trabalhos oriundos do espólio da família de Emanoel Araújo e que ficam sob os cuidados da galeria Simões de Assis de São Paulo. As demais peças da exposição são trabalhos comissionados para a exposição assinados por Raphael Cruz e Guilhermina Augusti.
Jonathan Ferr apresenta canções do álbum “Cura”
Chamado de “Garoto estandarte do jazz” pelo jornal El País, o pianista carioca Jonathan Ferr é um dos nomes mais celebrados da nova geração do jazz brasileiro. Chamou a atenção do Brasil e do mundo ao transformar o jazz em um gênero mais acessível para as audiências mais populares, valendo-se de influências como o hip-hop, o soul e até o baile funk.
Na abertura da exposição, o artista apresenta músicas de seu mais recente álbum “Cura”, que entrou em várias listas de melhores álbuns. O conceito de música medicina está presente em um mergulho profundo no desconhecido, com canções que buscam curar através desta experiência única.
SERVIÇO
Exposição ÀMÌ: Signos Ancestrais
Obras de Emanoel Araújo, Guilhermina Augusti e Raphael Cruz
Espaço Cultural Arte Sesc (Rua Marquês de Abrantes, 99 – Flamengo – Rio de Janeiro)
Inauguração: Dia 02/05/2022 (terça-feira) – 18h
Show de Jonathan Ferr
Período: 02/05 a 31/10/2023
Visitação: Segunda a sábado, das 12h às 19h – até 31/01/2023
Entrada franca
Mais informações em www.sescrio.orb.br
SAIBA MAIS SOBRE OS ARTISTAS
Emanoel Araújo
Escultor, desenhista, ilustrador, figurinista, gravador, cenógrafo, pintor, curador e museólogo. Nascido em Santo Amaro da Purificação, com formação em gravura pela Escola de Belas Artes da Bahia, da Universidade Federal da Bahia – UFBA, em Salvador. Foi diretor do Museu de Arte da Bahia (1981-1983). Lecionou artes gráficas e escultura no Arts College, na The City University of New York (1988). Entre 1992 e 2002, foi diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo. No período de 1995 e 1996, foi membro convidado da Comissão dos Museus e do Conselho Federal de Política Cultural, instituídos pelo Ministério da Cultura. Em 2004, fundou o Museu Afro Brasil, em São Paulo, onde foi Diretor Curador até a sua morte em 07 de setembro de 2022.
Emanoel Araújo tensiona, em suas obras, tridimensionalidades que dialogam com construções totêmicas africanas. Tais influências se dão desde o seu contato com as estéticas africanas dentro do contexto do Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana (FESTAC), realizado em Lagos/Nigéria, em 1977. Abre-se então um portal de referências e conexões afroatlânticas, fundamental e singular para a arte brasileira, que reitera as percepções e vivências contidas em seu entorno. Araújo observa e reflete a África em dimensões contemporâneas, pensa a travessia dos signos, registra o povo negro com amabilidade e doçura, raras nas interpretações violentas e caricatas de então, direcionando-se, também, à percepção de si como um homem negro afrodiaspórico. Em suas declarações e entrevistas, Emanoel Araújo relatava casos de racismo cotidianos, dada a sua mobilidade nos círculos da elite.
O monumentalismo presente em suas criações apresenta um conjunto de dogmas paleoafricanos, levando suas pesquisas a inscrições longínquas daquele continente, depois retrabalhados e reinscritos em um novo lugar: na diáspora afro-brasileira. Como um evocativo a essas presenças, o artista compilava a pesquisa sobre os signos a um refinamento de geometrismos conectados a aspectos ancestrais, paralelos em jogos entre cores e formas que delegam associações iorubanas, advindas das relações e das forças presentes na mitologia dos orixás. Revelam-se, então, significados e, ao mesmo tempo, perpetuam-se segredos guardados nos avessos, insinuados e desfeitos, que abrem possibilidades de interpretação como chaves de (re)existências.
Guilhermina Augusti
Guilhermina Augusti vem elaborando reflexões sobre o corpo e suas diversas metamorfoses. Com isso, convoca imagens de cunho histórico para recontextualizações que focam, sobretudo, nas relações entre gênero, sexualidade e racialidade.
Suas obras debruçam-se sobre as possibilidades do “corpo”, dentro de um perspectivismo descentrado, onde os usos dessa existência integram e conduzem questões de cunho político-social, ético-estético, ancestral-contemporâneo, de gênero e suas interseccionalidades. Pontos estes que são atravessados por geometrismos, símbolos e simbologias, enredos que reivindicam o resgate de uma humanidade e suscitam metodologias para uma pluralidade visual dentro do cenário das artes.
Guilhermina Augusti também se dedica a repensar os retratos de personalidades negras, envoltas por cores e traços, que contribuem para a construção da trajetória dos símbolos e ícones nacionais, reparando a história ao projetá-la, como imagem, na guia do tempo.
Raphael Cruz
Nascido e criado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Irajá, Cruz experencia e transborda suas ideias no audiovisual, na tridimensionalidade virtual, na pintura e na fotografia. Tem como ponto de partida suas relações familiares, ancestralidades e musicalidades afrorreferenciadas, como o samba e todas as transversalidades pretas presentes nas ruas. Apresenta, em suas criações, uma busca incessante por uma liberdade de ser e de se colocar no mundo. Faz do seu próprio corpo em movimento um sinal que enfrenta obstáculos e redireciona a cidade em seu caráter indicial.
Um artista multimeios que subverte a lógica colonial e detém, como grande parte da sua pesquisa, uma investigação a partir da prerrogativa da arte como um meio fundamental para promover narrativas, amplas e complexas, sobre o impacto e o papel da cultura africana na formação do que conhecemos como Brasil. Suas produções são uma continuidade orgânica da arte clássica africana em linguagem contemporânea conectada à tríade: forma, cor e ritmo em correlação a signos sacros afrodiaspóricos.
TEXTO CURATORIAL
ÀMÌ: signos ancestrais
ÀMÌ, palavra que designa “signo” e “símbolo” na língua yorubá. Trazidos da África para o Brasil no século XIX, o povo de origem nagô, antes residente abaixo do deserto do Saara, possuía uma riqueza de ritos, cultos, pensamento matemático que acabaram sendo incorporados ao Brasil como partícipes da cultura nacional.
Tornou-se corriqueiro, desde então, vermos e identificarmos cores e formas sobreviventes da diáspora que se associam aos cultos de matrizes africanas. O preto e o vermelho de Exú, o amarelo-ouro de Oxum, o vermelho e o branco de Xangô, e o branco de Oxalá. Toda sexta-feira, em todas as cidades deste país, o uso de roupas brancas se disseminou, nem sempre diretamente associado ao culto do candomblé. Nas noites de ano novo, também nos dedicamos a escolher as cores e seus significados projetados. O fato é que, se podemos perceber uma ciência dos signos, no Brasil, nossa semiologia, assim denominada pela Europa, deverá levar em consideração um aprendizado que começa antes, dentro das casas, a partir de conhecimentos ancestrais, nos amuletos, miçangas, contas que adornam o corpo, os retrovisores dos carros e sobrecarregam o pescoço de grandes matriarcas.
Na arte brasileira, a aceitação de tais signos yorubás custou a acontecer. O século XX teve um grande influxo de pesquisas sobre a realidade nacional, que resultou em pensamentos e programas de um modernismo ao qual podemos adjetivar de “identitário”. A cultura popular passou a interessar, as cores tropicais foram protagonizadas; no paisagismo, passamos a valorizar a vegetação nativa, comum. E, com isso, uma elite intelectual passa a se apropriar de culturas diaspóricas afroindígenas, às quais os artistas não pertenciam.
A exposição ÀMÌ: signos ancestrais parte de outro viés. Estimulados pela obra de Emanoel Araújo, constante da Coleção Arte Sesc, percebemos um jogo dual que o grande artista nos propunha. Por um lado, a geometrização abstrata, formal; por outro, cores que se relacionam aos cultos afro-brasileiros. Decidimos, então, seguir esta rota, perguntar ao presente sobre o legado deixado por Araújo nas criações mais recentes. Convidamos ao diálogo dois artistas de jovem produção: Guilhermina Augusti e Raphael Cruz. Amplificamos as ressonâncias dos ÀMÌ, percebendo que Cruz e Guilhermina possuem referências que lidam com o jogo da figuração e da abstração em diálogo com os signos afrodescendentes. Nessa conjuntura, outros nomes da arte rondam as criações atuais, como Rubem Valentim, Mestre Didi e Abdias Nascimento.
Associar cor e forma aos signos ancestrais é atentar para um complexo pensamento que ora coaduna o poder e a potência das divindades a gestos significativos, ora simplifica e essencializa imagens da natureza. Podemos, aqui, citar exemplos, o arco-íris da divindade Oxumarê quando interpretado por desenhos e esculturas de ferro, torna-se uma sequência de linhas formando um arco; a caça, atividade primordial do deus Oxóssi, vem sendo simbolizada há séculos por um arco e flecha (ofá); a justiça ligada às histórias (itans) do orixá Xangô se apresenta no machado de duas lâminas (oxê). Na relação com as cores, nada é mais representativo dessa penetração dos símbolos na realidade brasileira do que o uso do preto e vermelho de Exú.
Assim, apresentamos uma trama prenhe de significados transpassada por criações diversas de artistas que, hoje, assumem um lugar de representação e representatividade.
Marcelo Campos