Os países ricos do Ocidente e membros da OTAN, não se contentaram com o alargamento da OTAN (que, por definição, se deveria restringir apenas ao espaço do Atlântico Norte!) para uma série de países do Leste da Europa, como o provam os bombardeamentos ilegais contra a Sérvia (em 1999) assim como a intervenção massiva com armamento e aconselhamento técnico-político na atual Guerra da Ucrânia (desde 2022): Agora andam num grande frenesim para alargar a OTAN também para a zona da Ásia/Pacífico/Oceânia e para conquistarem lá novos apoios, com o intuito de formarem um bloco militar e prepararem uma guerra contra a China. Isso trata-se evidentemente de defender a todo o custo a hegemonia do império norte-americano no mundo inteiro.
por Jeffrey D. Sachs (*)
Após a guerra por procuração contra a Rússia, os EUA forçam novos atritos com a China. Submetem a Austrália e o Japão – e rejeitam a diplomacia e a paz. Inconsequência escancara: a burocracia militar está no comando da política externa de Washington.
Este texto é a transcrição do discurso proferido por Jeffrey Sachs no seminário “Salvando a Humanidade e o Planeta Terra” [Saving Humanity and Planet Earth, SHAPE], que teve lugar em Melbourne, na Austrália, a 5 de julho de 2023:
Boa tarde a todos. Quero agradecer ao SHAPE pelo convite e, especialmente, pela liderança neste processo. Tive o privilégio de ouvir Alison Broinowski e Chung-in Moon. Fomos presenteados com falas brilhantes e perspicazes. Concordo absolutamente com tudo o que foi dito. O mundo enlouqueceu, mas, isso vale especialmente para o mundo anglo-saxão. Não sei se há ainda algum bom senso nos pedaços do mundo onde se fala inglês: Claro que estou falando de Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
Há algo profundamente desalentador na política de nossos países no momento. A profunda insanidade, receio, consiste no pensamento imperial britânico que foi assumido pelos Estados Unidos. Meu país, os EUA, está irreconhecível, mesmo em comparação com 20 ou 30 anos atrás. Para falar a verdade, não tenho certeza de quem governa o país. Não acredito que seja o presidente dos Estados Unidos. Somos comandados por generais, por nossa burocracia de segurança. O público não tem conhecimento de nada. As mentiras que são contadas sobre política externa são diárias e difundidas por uma grande mídia que mal consigo continuar a ouvir ou ler. O New York Times, o Washington Post, o Wall Street Journal e os principais canais de televisão estão 100% repetindo a propaganda governamental todos os dias, e é quase impossível romper essa barreira.
O que é que se passa? Bem, como vocês ouviram, trata-se da insanidade dos Estados Unidos por manter a sua hegemonia global, uma política externa militarizada – dominada pelo pensamento de generais que são intelectos medíocres, pessoalmente gananciosos – e sem sentido porque o seu único modus operandi é fazer a guerra.
E eles são seguidos cegamente pela Grã-Bretanha que, infelizmente, ao longo da minha vida adulta, vi tornar-se cada vez mais patética, como uma aficionada a torcer pelos Estados Unidos, gritando pela hegemonia dos EUA e pela guerra! Não importa o que digam os EUA, a Grã-Bretanha repetirá com dez vezes mais entusiasmo. Os líderes do Reino Unido não poderiam amar mais a guerra na Ucrânia. Esta é a grande Segunda Guerra da Crimeia para a mídia britânica e para os líderes políticos britânicos.
Agora, como a Austrália e a Nova Zelândia também caem nessa idiotice, é realmente uma questão de fundo para mim e para vocês. As pessoas deveriam saber melhor o que está acontecendo. Mas temo que seja a Aliança dos Cinco Olhos [Five Eyes, aliança entre EUA, Canadá, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia] e a estrutura de segurança que disseram aos políticos, na medida em que os políticos são envolvidos nisso, “bem, é isso o que temos que fazer”. Este é o nosso Estado de Segurança e não acho que nossos políticos necessariamente tenham um papel muito relevante nisso. A propósito, o público não tem nenhum papel na política externa dos EUA: Não temos nenhum debate, nenhuma discussão, nenhuma deliberação, nenhum debate sobre a votação dos 100, agora US$ 113 milhares de milhões – na verdade, muito mais dinheiro – que até agora gastámos com a Guerra da Ucrânia.
Até ao presente, não houve sequer uma hora de debate organizado sobre isso, nem mesmo no Congresso, muito menos em público. Mas o meu palpite é que a burocracia de segurança [security establishment] é quem realmente conduz isso na Austrália. Eles explicam ao primeiro-ministro e a outros: “vocês sabem que esta é uma questão de segurança máxima nacional, e foi isso o que os EUA nos disseram. Deixe que nós, sua burocracia de segurança, expliquemos o que estamos vendo. Claro, você não pode divulgar isso para o público em geral, mas isso é, em essência, uma luta pela sobrevivência no mundo”.
Tudo o que eu vejo – e já atuo há 43 anos como consultor econômico em todo o mundo – sugere que essa mensagem é um disparate. Uma coisa que seria interessante para as pessoas olharem, a fim de entenderem esses desenvolvimentos, é um artigo muito revelador de um ex-colega meu em Harvard, o embaixador Robert Blackwell e Ashley Tellis, escrito para o Conselho de Relações Exteriores em Março de 2015. Quero ler alguns trechos dele porque expôs o plano do que está acontecendo agora de forma bastante direta. É assim que as coisas funcionam nos Estados Unidos, onde planos futuros são traçados para a burocracia em tais relatórios.Basicamente nos disseram em 2015 o que vai acontecer nas relações EUA-China. A deterioração das relações foi planejada – não é algo ad hoc. Então, aqui está o que Blackwell e Tellis escreveram em 2015. Primeiro: “Desde sua fundação, os Estados Unidos têm consistentemente buscado uma grande estratégia focada em adquirir e manter poder preeminente sobre vários rivais. Primeiro no continente norte-americano, depois no hemisfério ocidental e, finalmente, em todo o globo.” E então eles argumentam que “preservar a primazia dos EUA no sistema global deve continuar sendo o objetivo central da grande estratégia dos EUA no século XXI”.
Então, qual é o objetivo dos EUA? O objetivo é muito direto, é a primazia global dos Estados Unidos.
Blackwell e Tellis traçam o plano de jogo para a China. Eles nos dizem o que fazer.
Aqui está a lista, embora eu esteja citando apenas trechos: “Criar novos acordos comerciais preferenciais entre amigos e aliados dos EUA para aumentar seus ganhos mútuos por meio de instrumentos que conscientemente excluam a China”. Este é o jogo que Obama já começou com a Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), embora não tenha conseguido por meio da oposição política doméstica. Em segundo lugar, “criar, em parceria com aliados dos EUA, um regime de controle de tecnologia em relação a Pequim”, para bloquear as capacidades estratégicas da China. Em terceiro lugar, desenvolver “capacidades de poder político de amigos e aliados dos EUA na periferia da China” e “melhorar a capacidade das forças militares dos EUA de efetivamente projetar poder ao longo dos limites asiáticos, seja qual for a oposição chinesa”.
O que considero especialmente notável nessa lista é que ela foi feita em 2015. Portanto temos o plano de ação, passo a passo, sendo efetivamente executado. Esse prenúncio das políticas dos EUA, por meio do Conselho de Relações Exteriores (CFR), é bem conhecido na história recente. Em 1997, no jornal Foreign Affairs do CFR, Zbigniew Brzezinski expôs com precisão o cronograma pretendido para a expansão da OTAN e especificamente a intenção de incluir a Ucrânia nessa ampliação. É claro que esse plano de expansão da OTAN nos levou diretamente à Guerra da Ucrânia, que é de fato uma guerra por procuração Rússia-EUA motivada pela ampliação da OTAN.
Agora, os amigos e gênios que nos trouxeram a Guerra da Ucrânia estão a caminho de nos trazer uma nova guerra em sua vizinhança. Como observou o professor Moon, a Organização do Tratado do Atlântico Norte está começando a abrir seus escritórios no leste da Ásia, que não é exatamente a mesma coisa que o Atlântico Norte.
Então, estamos neste ponto. Não é absolutamente simples de enxergar as coisas por um motivo principal, pelo menos nos EUA. Não tenho certeza de como é na Austrália, mas acredito que seja praticamente o mesmo que nos EUA, onde não há honestidade nem decisão pública sobre nada disso. As políticas pertencem inteiramente à burocracia de segurança, ao complexo militar-industrial, à rede de think tanks ou laboratórios de pensamento que, na verdade, são laboratórios de não-pensamento em Washington, quase todos financiados pelo complexo militar-industrial.
O complexo industrial militar e seu poderoso lobby corporativo tomaram conta das universidades da Costa Leste onde leciono. Ensinei em Harvard por mais de 20 anos e agora leciono na Universidade de Columbia. A influência das agências de inteligência nos campi é sem precedentes, de acordo com a minha experiência. Tudo isso aconteceu sem muito aviso público, quase num golpe silencioso. Não há debate, não há política pública, não há honestidade, não há documentos publicados. Tudo é secreto, confidencial e um tanto misterioso. Como sou um economista que se envolve com chefes de Estado e ministros de todo o mundo, ouço e vejo muitas coisas que me ajudam a penetrar nas “narrativas” oficiais e nas mentiras generalizadas. Você não encontrará nada disso em nosso discurso público.
E apenas uma palavra, se me permitem, sobre a Guerra da Ucrânia.
A guerra era completamente previsível e resultou de um plano de hegemonia dos EUA baseado na ampliação da OTAN que remonta ao início dos anos 1990. A estratégia dos EUA era trazer a Ucrânia para a órbita militar dos EUA. Brzezinski, novamente em 1997, em seu livro The Grand Chessboard [O grande tabuleiro de xadrez], expôs a estratégia: A Rússia sem a Ucrânia não é nada, argumentou. A Ucrânia, escreveu ele, é o pivô geográfico da Eurásia. Curiosamente, Brzezinski alertou os formuladores de políticas dos EUA que eles garantissem não pressionar a Rússia e a China para uma aliança. Na verdade, isso seria tão contrário aos interesses dos EUA que Brzezinski claramente acreditava que isso nunca aconteceria. Mas aconteceu, porque a política externa dos EUA é incompetente, bem como profundamente perigosa e equivocada.
Em 1990-1991 fui conselheiro de Mikhail Gorbachev e, durante o período de 1991-1994, de Boris Yeltsin e de Leonid Kuchma, abrangendo os últimos dias da perestroika e os primeiros dias da independência russa e ucraniana após a dissolução da União Soviética. Observei muito de perto o que estava acontecendo. Vi que os Estados Unidos estavam absolutamente desinteressados em ajudar a Rússia a se estabilizar.
A ideia da burocracia de segurança dos EUA, desde o início dos anos 1990, era a da unipolaridade liderada pelos EUA, ou a da hegemonia dos EUA. No início da década de 1990, os EUA rejeitaram medidas para ajudar a estabilizar a economia soviética e depois a economia russa, enquanto também começaram a planejar a ampliação da OTAN, em contradição direta com o que os EUA e a Alemanha haviam prometido a Gorbachev e Yeltsin. Portanto, a questão da ampliação da OTAN, inclusive para a Ucrânia, faz parte de um plano de jogo dos EUA que começou no início dos anos 1990 e acabou levando à guerra na Ucrânia.
A propósito, os EUA estiveram profundamente envolvidos no derrube do presidente pró-Rússia da Ucrânia em 2014. Sim, aquilo foi um golpe e, em grande medida, uma operação de mudança de regime feita pelos Estados Unidos. Acontece que eu vi uma parte disso e sei que o dinheiro dos EUA foi derramado para apoiar o Maidan. Essa intromissão dos EUA foi repugnante e desestabilizadora, e fazia parte do plano de ampliar a OTAN para a Ucrânia e a Geórgia.
Quando se olha para o mapa, o que vemos é de fato a ideia de Brzezinski de 1997: cercar a Rússia na região do Mar Negro. Ucrânia, Romênia, Bulgária, Turquia e Geórgia se tornariam todos membros da OTAN. Isso seria o fim da projeção de poder russo no Mediterrâneo Oriental e no Oriente Médio. E foi isso o que buscaram esses gênios da “segurança”.
Putin apresentou respostas diplomáticas que foram repetidamente rejeitadas pelos EUA e seus aliados da OTAN, incluindo o Acordo de Minsk II, endossado pelo Conselho de Segurança da ONU, mas depois ignorado pela Ucrânia.
Em 17 de dezembro de 2021, Putin colocou sobre a mesa um documento perfeitamente razoável como base para a negociação, um rascunho do Acordo de Segurança EUA-Rússia. No centro estava o apelo da Rússia para o fim da expansão da OTAN. Tragicamente, os EUA mandaram tudo às favas. Liguei para a Casa Branca no final de dezembro de 2021, falei com um de nossos principais funcionários de segurança e implorei: “Negocie. Pare o alargamento da OTAN. Você tem uma chance de evitar a guerra”. Claro, não tive sucesso. A resposta formal dos Estados Unidos a Putin foi que a ampliação da OTAN não era negociável com a Rússia, um assunto sobre o qual a Rússia não tem absolutamente nada a dizer.
Esta é uma maneira incompreensível de gerir relações exteriores porque é um caminho direto para a guerra. E espero que todos entendam que esta guerra na Ucrânia estava bem perto de terminar em Março de 2022 com um acordo negociado, apenas um mês após a invasão da Rússia em 24 de Fevereiro. A negociação do acordo foi interrompida pelos EUA porque se baseava na neutralidade da Ucrânia. Os EUA disseram à Ucrânia para guerrear, encerrar as negociações e rejeitar a neutralidade.
E assim estamos numa guerra que continua a escalar para uma possível guerra nuclear, que é o que aconteceria se a Rússia sofresse profundas derrotas no campo de batalha. A Rússia não está perdendo no campo de batalha, neste momento, mas se viesse a perder, provavelmente escalaria para uma guerra nuclear. A Rússia nunca será expulsa do Donbass e da Crimeia ou humildemente voltará para casa pedindo desculpas. A Rússia vai escalar se precisar de escalar. Então, estamos agora numa espiral que é extremamente perigosa.
O Japão atua absolutamente nessa espiral. E a Austrália também. É muito triste ver a Austrália aceitando ser usada dessa maneira imprudente. Pagar uma fortuna por novas bases militares de forma imprudente, provocativa e cara, que alimentarão o complexo militar-industrial dos EUA e, ao mesmo tempo, irão pesar muito sobre a Austrália.
Essas ações dos EUA estão-nos colocando no caminho da guerra com a China, da mesma forma que as ações dos EUA levaram à guerra na Ucrânia.
A diferença é que uma guerra na Ásia-Pacífico seria ainda mais desastrosa. A ideia de um bloco formado pelos EUA e os seus aliados lutando contra a China é incompreensível nas suas implicações, na sua estupidez e na sua imprudência. Tudo isso é totalmente divorciado dos reais interesses de segurança da Austrália. A China não é uma ameaça para a Austrália. Não é uma ameaça para o mundo.
A propósito, não conheço uma única invasão ultramarina chinesa na sua história, exceto quando os mongóis governaram a China por um breve período e tentaram invadir o Japão. Além da invasão mongol, derrotada por um tufão, a China não lançou guerras no exterior. Simplesmente não faz parte da arte de governar da China, nem essas guerras seriam do interesse nacional chinês.
O que me preocupa no mundo é uma liderança de (in)segurança profundamente neurótica dos Estados Unidos que pretende ser o número um, mas que não pode ser o número um da maneira que acredita. Isso é patético, mas é aplaudido todos os dias em Londres, um lugar que ainda sonha com a glória do império global de uma era muito passada.
Permitam-me, em conclusão, tomar um minuto para dizer o que deveria ser feito:
- Primeiro, a guerra na Ucrânia pode terminar no dia em que Joe Biden disser que a OTAN não se expandirá para a Ucrânia. A base para um acordo de segurança negociado existe há 30 anos, mas foi rejeitada até agora pelos EUA.
- Em segundo lugar, a ideia de abrir escritórios da OTAN na Ásia é incompreensível, tamanha tolice que é. Por favor, digam aos japoneses para parar com essa ação imprudente.
- Em terceiro lugar, a abordagem dos EUA para armar Taiwan é profunda e deliberadamente perigosa, provocativa.
- Quarto, o que é mais necessário na Ásia-Pacífico é o diálogo regional entre as nações da Ásia-Pacífico.
- Quinto, a Ásia-Pacífico deve basear-se no RCEP [Acordo de Parceria Econômica Abrangente Regional]. O RCEP é o conceito correto para reunir China, Coreia, Japão, os dez países da ASEAN [Associação das Nações do Sudeste Asiático], Austrália e Nova Zelândia numa estrutura coerente, especialmente em torno do desafio climático, política energética, política comercial e política de infraestruturas e de investimento. Um RCEP que funcione bem faria um bem enorme, não apenas para os 15 países do RCEP, mas para o mundo inteiro.
Desculpem ter-me alongado tanto, mas é mesmo muito importante o que o SHAPE está fazendo. Vocês estão absolutamente no caminho certo e desejo todos os melhores votos para os vossos esforços.