MINERAÇÃO
Por Fernanda Perdigão
A dura realidade do Processo de Reparação após o Rompimento da Barragem da Mina do Córrego do Feijão, de responsabilidade da empresa Vale S/A no dia 25 de janeiro de 2019 em Brumadinho, desde aquele dia fatídico, temos acompanhado de perto o longo processo de reparação dos danos causados à toda a bacia do Rio Paraopeba. Infelizmente, o que deveria ser um momento de justiça e reconstrução está marcado por frustrações e indignações.
Uma das questões mais problemáticas é a chamada “assessoria técnica independente (ATI), direito previsto na Política Estadual dos Atingidos por Barragens (PEAB) que define o direito à ATI às comunidades que sofrem com os impactos da existência e/ou do rompimento de uma barragem, destinada a fornecer auxílio técnico e jurídico às vítimas durante todo o processo de reparação. O direito à assessoria técnica é fundamental para garantir que tenhamos voz ativa, através da participação informada e compreensão dos direitos das pessoas atingidas, mas essa assessoria tem sido cerceada e inacessível para as pessoas atingidas.
A luta pela obtenção de valores para a assessoria técnica como direito é um exemplo das dificuldades enfrentadas. O Acordo Judicial – firmado sem a participação das pessoas atingidas – , entre Vale S/A, Ministérios Públicos Federal e Estadual, Defensoria Pública do Estado e Governo do Estado de Minas Gerais em 04 de fevereiro de 2021, que deveria garantir a reparação justa e integral dos danos, estabelece um limite preocupante no montante de 700 milhões para as estruturas de apoio incluindo a ATI conforme cláusula a seguir:
4.4.11.A quantia de R$ 700.000.000,00 (setecentos milhões de reais) será destinada à contratação de estruturas de apoio, inclusive auditorias e assessorias técnicas independentes. No caso da não utilização destes valores, o saldo remanescente será utilizado conforme decisão dos compromitentes. (Acordo Judicial, 2021)
Esse valor, por mais alto que possa parecer à primeira vista, está longe de ser suficiente para atender a todas as demandas e necessidades das pessoas atingidas, essa limitação financeira apresenta desafios para a efetivação da ATI, uma vez que restringe o escopo e a qualidade dos serviços prestados. O acesso à justiça e a possibilidade de enfrentar um processo de reparação com igualdade de forças são fundamentais para superar a situação de vulnerabilidade em que as pessoas atingidas se encontram, mas o Acordo está deixando isso de lado.
Mais perturbador ainda é o fato de que, embora vários processos tenham sido encerrados a partir do Acordo Judicial, lacunas foram deixadas, inclusive sobre o Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana – elaborado pelo Grupo EPA contratado pela Vale -, medidas emergenciais – como entrega de água – e Plano de Reparação – elaborado e executado pela Vale através da empresa Arcadis – tais ações, estão mencionadas nas cláusulas do Acordo, mas elas acabam sendo tratadas como partes não cobertas pelo mesmo. Ou seja, são apenas palavras vazias, que não se traduzem em ações efetivas pelo Acordo Judicial.
Outro aspecto alarmante é a ausência de participação das pessoas atingidas nos espaços de deliberação. A falta de representação nos processos de tomada de decisão cria um cenário de revitimização, em que as pessoas atingidas são novamente desconsideradas e subjugadas. Suas vozes e experiências são essenciais para garantir que as decisões tomadas levem em conta a realidade daqueles que foram diretamente afetados pelo desastre.
A negação do direito à assessoria técnica adequada, a limitação dos recursos para sua estruturação, a omissão de obrigações importantes no Acordo e a exclusão das pessoas atingidas dos espaços de decisão minam as chances de obter uma reparação justa e efetiva. Isso compromete os direitos humanos básicos das pessoas atingidas, nega-os acesso à informação e os coloca em uma posição ainda mais vulnerável diante do poder da Vale e das entidades envolvidas.
Foucault, em suas obras, ressalta a dinâmica do poder como algo intrinsecamente relacionado ao controle e à imposição de vontades. Na tragédia de Brumadinho, a Vale assume o papel de um poder soberano, capaz de ditar os rumos do processo de proteger e minimizar suas responsabilidades perante as vítimas. A ausência de participação das pessoas atingidas nos espaços de decisão corrobora a visão de Foucault sobre o poder como algo exercido de forma vertical e autoritária.
Por sua vez, a Vale, como entidade detentora de recursos e influência, exerce sua supremacia em detrimento dos mais fracos. Essa supremacia é refletida na limitação dos valores destinados à assessoria técnica no Acordo Judicial, negando às vítimas a possibilidade de contar com um apoio efetivo e adequado para enfrentar a batalha por seus direitos. O Governo do Estado de Minas Gerais, por sua vez, parece estar submerso nas teias do poder da Vale, refletindo a visão foucaultiana de instituições que são influenciadas e controladas por forças externas. A subserviência do Governo de Minas Gerais aos interesses da empresa resulta em decisões que muitas vezes não consideram os direitos e necessidades das pessoas atingidas.
As instituições de justiça, embora essenciais para garantir a justiça e a equidade, mostram-se insuficientes para enfrentar o poder da Vale e as desigualdades presentes no processo de reparação. Essas instituições, muitas vezes burocráticas e arraigadas em estruturas antiquadas, parecem não estar à altura dos desafios impostos por uma empresa de tamanha influência e recursos. Além disso, a lamentável prática de conversão em ganho dos direitos das pessoas atingidas tem se mostrado uma constante na realidade. Empresas e entidades envolvidas no processo de reparação, têm colocado seus interesses financeiros em primeiro lugar, em detrimento das necessidades reais e direitos das pessoas atingidas. A lógica capitalista tem prevalecido, convertendo a tragédia em uma oportunidade de ganho para alguns, enquanto as pessoas atingidas continuam sofrendo com as consequências da catástrofe.
Essa conversão lucrativa dos direitos das vítimas se manifesta de diversas formas, desde a subvalorização das indenizações e compensações até a terceirização de serviços essenciais, como a própria assistência técnica oferecida pelas ATIs. Essa terceirização pode acabar servindo como uma cortina de fumaça, escondendo os reais interesses por trás de empresas que não demonstram um verdadeiro compromisso com as pessoas atingidas, mas sim com o lucro que podem obter através dessa prestação de serviços.
Dessa forma, a espera do direito de ATI, como garantia de voz e participação informada para as vítimas, confronta-se com a realidade limitante e frustrante que as pessoas atingidas vivenciam. O aparato da máquina do capital parece se sobrepor à essência do social, negligenciando as necessidades das vítimas. Nesse desastre ainda em andamento, a luta pela justiça nos leva a uma profunda reflexão sobre o poder, as desigualdades e a máquina do capital. A voz das vítimas precisa ser ouvida e respeitada, e os responsáveis pelo processo de reparação devem estar dispostos a enfrentar o poder soberano da Vale e a garantir um processo justo, equitativo e reparador.
É imperativo que a sociedade, os órgãos reguladores e as instituições públicas exigem uma revisão urgente da aplicação do Direito à Assessoria Técnica Independente, e exijam que a Vale arque conforme determina a Política Estadual dos Atingidos por Barragens e as entidades que prestam o trabalho de ATI que foquem em sua essência de caráter social, “entidades sem fins lucrativos” e enquanto a luta pelo direito segue nos bastidores dos poderes, sejam e garantam os direitos das pessoas atingidas mantendo suas atividades sem penalizar aqueles que já carregam o fardo da dor de um desastre-crime.
Precisamos garantir que a justiça prevaleça e que os danos causados sejam reparados integralmente, considerando as demandas reais das pessoas atingidas. Não podemos permitir que escusos e a postura capitalista de algumas entidades prevaleçam sobre a vida e os direitos humanos de nossa comunidade. A bacia do rio Paraopeba não pode ser apenas mais um exemplo da impunidade e negligência que imperam em nossa sociedade.