MINERAÇÃO

Por Fernanda Perdigão

 

Mudar a verdade dos fatos é uma questão complexa e controversa. Teoricamente, é possível alterar a percepção da verdade através de várias estratégias, como propaganda, desinformação, ventilação de mídia e isolamento de resistência. No entanto, é importante ressaltar que essa manipulação da verdade é antiética e prejudicial para a sociedade.

A verdade dos fatos refere-se à realidade objetiva, independentemente de nossas opiniões, crenças ou desejos. É baseada em evidências, fatos verificáveis ​​e métodos científicos. Quando tentamos mudar a verdade dos fatos, estamos comprometendo a integridade da informação e a confiança que temos nas instituições, na mídia e em nossos sistemas democráticos.

A manipulação da verdade dos fatos tem sido utilizada ao longo da história para diversas finalidades, como controle político, propaganda ideológica e ganho pessoal. É um meio poderoso para influenciar a opinião pública, moldar narrativas e fortalecer preconceitos. A disseminação deliberada de informações falsas pode levar a consequências graves, como polarização social, conflitos, desconfiança nas instituições e danos à democracia.

O colapso da barragem da Vale S/A em Brumadinho, município de Minas Gerais, em 25 de janeiro de 2019, resultou em 272 vítimas fatais imediatas e o aumento de casos de autoextermínio em várias regiões da Bacia do Rio Paraopeba. Foi um desastre ambiental de grandes proporções que afetou uma extensa região da bacia do rio Paraopeba e trouxe à tona uma série de desafios e dilemas para as pessoas atingidas. Além das perdas humanas e ambientais, o enfrentamento das consequências e busca por uma reparação justa revelaram complicações que vão além dos danos físicos e materiais. Neste artigo, exploramos o conceito de ser atingido por uma barragem, a dificuldade de compreensão do direito de todos a uma reparação justa e as consequentes disputas e prioridades que emergem nesse cenário.

Ser atingido por uma barragem vai além das consequências imediatas e visíveis de um desastre. Envolve perda de vidas, destruição de comunidades, interrupção de meios de subsistência, desestruturação social e degradação ambiental. Essas múltiplas dimensões tornam a vivência das pessoas profundamente complexa, impactando não apenas suas condições de vida, mas também sua identidade, segurança e senso de pertencimento.

Um dos desafios enfrentados pelas pessoas atingidas é a falta de compreensão do direito de todos a uma reparação justa. A falta de acesso a informações claras e a complexidade do sistema legal contribuem para a dificuldade em exigir seus direitos de forma efetiva. Além disso, a assimetria de poder entre as comunidades atingidas e as grandes corporações, como a Vale, muitas vezes favorece os interesses privados em detrimento dos direitos individuais e coletivos.

No contexto pós-rompimento da barragem, emergem disputas com prioridades divergentes entre as pessoas atingidas. A escassez de recursos, a urgência de soluções e a multiplicidade de demandas individuais e coletivas criaram uma fragmentação das pessoas atingidas. Essas disputas internas dificultam a formação de uma frente unificada, enfraquecendo a capacidade de resistência e dificultando a conquista de soluções eficientes em curto prazo para todas as partes envolvidas.

A empresa Vale, como uma grande corporação, possui uma influência significativa nas regiões onde atua. As estratégias de dominação territorial adotadas pela empresa, como influência política, controle de recursos e manipulação da informação comprometem ainda mais os direitos das pessoas atingidas. A concentração do poder econômico e político nas mãos da Vale cria um desequilíbrio nas relações entre a empresa e as comunidades, dificultando a busca por justiça e uma reparação adequada.

Nesse contexto, a luta das pessoas atingidas após o rompimento da barragem em Brumadinho ganha uma nova dimensão. A busca por uma solução justa não se limita apenas a demandas legais, mas envolve também a luta por justiça social e ambiental. Roberto Lyra Filho argumenta que o direito deve estar a serviço dos mais vulneráveis e oprimidos, vivido como uma forma de resistência contra as desigualdades e injustiças presentes na sociedade.

Assim, ao analisarmos as disputas de prioridades das pessoas atingidas, é fundamental considerar a perspectiva de Lyra Filho. A busca por uma reparação justa deve ir além do cumprimento das obrigações legais, incorporando uma visão mais ampla de justiça e equidade. Isso implica reconhecer as desigualdades existentes e promover a participação ativa das comunidades atingidas no processo de tomada de decisões.

Ao enfrentar as estratégias de dominação territorial da Vale, é preciso ter em mente os princípios defendidos por Lyra Filho, como a democratização do acesso aos recursos e o empoderamento das comunidades. Isso envolve não apenas o enfrentamento legal e institucional, mas também o fortalecimento da organização comunitária e a construção de redes de solidariedade e apoio mútuo.

Dessa forma, ao aplicarmos os conceitos de Roberto Lyra Filho sobre o que é o direito, ampliamos o entendimento da luta das pessoas atingidas após o colapso da barragem em Brumadinho. Compreendemos que a busca por uma reparação justa não se restringe apenas a questões legais, mas engloba a promoção da justiça social, o fortalecimento das comunidades sobreviventes e a luta para prevenir desastres futuros e promover a equidade.

As disputas entre as pessoas atingidas após o rompimento da barragem em Brumadinho e sua complexidade podem ser analisadas à luz dos conceitos de Justiniano, imperador romano que promoveu a codificação das leis no Corpus Juris Civilis. Justiniano destacou a importância de tratar os indivíduos de forma justa e igualitária perante a lei. Nesse sentido, é crucial buscar uma abordagem que considere não apenas as demandas individuais, mas também as necessidades coletivas das comunidades atingidas. Ao reconhecer que todas as pessoas atingidas têm direito a uma reparação justa, independentemente de suas diferenças, pode-se promover uma maior coesão social e superar as disputas que surgem em torno de quem é mais ou menos atingido.

Ao explorarmos as disputas entre as pessoas atingidas após o colapso da barragem em Brumadinho, é interessante analisar os conceitos de Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista. Rousseau argumentava que a verdadeira justiça consiste em conciliar esses direitos, considerando o bem comum como objetivo principal. Portanto, é fundamental buscar soluções que equilibrem a reparação material necessária para a reconstrução das vidas das pessoas atingidas com a responsabilização das empresas envolvidas em assegurar a saúde, o meio ambiente e a não repetição.

As instituições de Justiça, como o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a Defensoria Pública do Estado (DPE) e o Ministério Público Federal (MPF), devem desempenhar um papel crucial no enfrentamento das disputas entre as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem em Brumadinho. Essas instituições têm a responsabilidade de garantir que os direitos das comunidades atingidas sejam protegidos e que uma reparação justa seja alcançada.

O MPMG, por exemplo, deve atuar na investigação dos responsáveis, na defesa dos interesses coletivos e na busca por medidas que visem à mitigação dos danos e à proteção das pessoas atingidas. A DPE deve desempenhar um papel fundamental ao fornecer assistência jurídica gratuita às pessoas atingidas, garantindo que tenham acesso à justiça e possam fazer valer seus direitos. O MPF, por sua vez, deve agir na esfera federal, investigando a violação de direitos humanos e buscando responsabilizar as empresas envolvidas. Essas instituições devem desempenhar um papel essencial na mediação de conflitos, na busca pela equidade e na defesa dos interesses das pessoas atingidas, para a superação das disputas e para a conquista de uma reparação justa e eficiente.

As Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) que atuam na Bacia do Rio Paraopeba, devem também desempenhar um papel fundamental na situação das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem em Brumadinho. Essas entidades têm como objetivo oferecer suporte técnico e científico às comunidades, fornecendo informações precisas e imparciais sobre os impactos ambientais, sociais e de saúde decorrentes do desastre. Como as ATIs são responsáveis ​​por realizar estudos, monitorar os danos, avaliar os riscos e garantir a participação informada, sua atuação é de extrema importância na garantia dos direitos das pessoas atingidas, permitindo que tenham acesso a informações mantidas e embasadas cientificamente. Além disso, as ATIs devem promover a participação das comunidades fortalecendo sua voz e empoderando-as diante das disputas.

Porém devemos considerar que a regionalização dos trabalhos das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), quando não concomitante de uma abordagem integrada, pode ter consequências negativas no entendimento dos direitos e no agravamento das disputas entre os territórios sobre quem são os mais ou menos atingidos.

Ao focar apenas em regiões específicas, pode-se criar disparidades no acesso à informação e na distribuição dos recursos destinados à reparação. Isso pode levar a um cenário em que diferentes comunidades podem competir entre si, acreditando que algumas são mais prejudicadas do que outras, dificultando a formação de uma frente unificada na busca por soluções justas. Além disso, a regionalização pode limitar a compreensão das interconexões entre os territórios atingidos, ignorando os aspectos socioambientais que podem se estender para além de uma região específica.

A possibilidade de afirmar que um município é mais ou menos atingido em casos de desastres socioambientais é complexa e controversa. Esses eventos desencadeiam uma série de efeitos que se estendem além das fronteiras geográficas, afetando não apenas o meio ambiente, mas também a vida e o bem-estar das comunidades locais. Afirmar que um município é mais ou menos atingido implica em uma comparação relativa entre os níveis de danos e prejuízos enfrentados pelas diferentes regiões atingidas.

Tal abordagem pode ser problemática, pois pode gerar disputas entre as comunidades, enfraquecer a solidariedade e a busca por soluções coletivas e igualitárias. Além disso, destacar essa diferença pode ser de interesse de partes que buscam beneficiar-se de maneira desigual das ações de reparação, perpetuando assim desigualdades socioeconômicas e acentuando divisões entre os territórios atingidos. 

Portanto, é importante adotar uma perspectiva holística que reconheça a interdependência dos atingidos e promova a solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas atingidas, buscando uma relação justa e igualitária para todos os envolvidos. 

A empresa Vale se beneficia das disputas que surgem no processo de reparação integral dos danos causados ​​pelo rompimento da barragem em Brumadinho. Essas disputas resultam em um ambiente de fragmentação e divisão entre as comunidades atingidas, o que pode dificultar a formação de uma frente unificada na busca por soluções justas e efetivas. A empresa se aproveita dessas divisões para avançar com estratégias que visam minimizar sua responsabilidade, retardar os processos de reparação e evitar maiores custos financeiros. 

Além disso, a Vale utiliza as disputas para promover narrativas que diminuam a extensão dos danos causados, enfatizando a suposta minimização dos impactos e alegando que alguns territórios foram menos atingidos que outros. Dessa forma, a empresa tenta reduzir sua obrigação de reparação e indenização, buscando manter seu poder e domínio sobre os territórios afetados. 

Aproveita-se das disputas e da falta de consenso entre as partes envolvidas e minimiza seu envolvimento e responsabilidade pelos danos, retardando assim a efetivação do ressarcimento integral dos prejuízos causados. 

O Acordo Judicial firmado entre o Governo de Minas Gerais e a empresa Vale S/A contribui para a intensificação das disputas entre as pessoas atingidas, uma vez que os recursos foram pré-estabelecidos sem a participação efetiva dessas comunidades. A ausência da voz e da representação das pessoas atingidas no processo de negociação do acordo resulta em ações que não refletem seus interesses e necessidades reais. 

Isso cria um cenário em que as comunidades se sentem excluídas e desvalorizadas, alimentando a desconfiança em relação às medidas e aumentando a tensão entre os diferentes grupos afetados. Além disso, ao definir antecipadamente os recursos destinados à reparação, sem considerar as demandas individuais e coletivas, o acordo não é capaz de atender de forma adequada às necessidades específicas das pessoas atingidas. Isso perpetua a desigualdade de poder entre a empresa Vale e as comunidades atingidas, tornando mais difícil a conquista de uma reparação integral e justa para todos os envolvidos. 

Diante das disputas e dos desafios enfrentados no processo de reconhecimento dos danos causados ​​pelo rompimento da barragem em Brumadinho, é fundamental que as pessoas atingidas não permitam que suas vozes sejam silenciadas e se unam em prol de uma causa comum. 

A auto-organização das comunidades atingidas é uma estratégia poderosa para garantir que seus interesses sejam representados de forma coletiva e que a reparação integral e justa seja buscada para a maioria das pessoas atingidas nos 26 municípios da bacia do rio Paraopeba. 

Ao se unirem, as pessoas atingidas fortalecem sua capacidade de negociação, com participação efetiva nos processos de decisão, transparência nas relações e consideração de suas necessidades específicas. A solidariedade entre as comunidades e a busca por soluções coletivas são instrumentos poderosos para superar as estratégias de dominação da empresa Vale S/A e alcançar uma reparação que efetivamente respeite os direitos e interesses das pessoas atingidas.

Ao se organizarem, as comunidades tornam-se agentes ativos na busca por justiça, confiantes para a construção de um futuro mais justo e digno para todas as pessoas atingidas pelo desastre. 

“A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar.” – Martin Luther King- diante das disputas, das estratégias da empresa Vale e dos desafios enfrentados no processo de superar os danos causados ​​pelo colapso da barragem em Brumadinho, essa citação de Martin Luther King ressalta a importância de lutar contra a injustiça em qualquer situação. 

É fundamental que as pessoas atingidas se unam, se auto-organizem e busquem uma reparação integral e justa, não apenas para si, mas para todas as comunidades afetadas na bacia do rio Paraopeba. Somente através da solidariedade, do diálogo e da busca por soluções coletivas é possível enfrentar as estratégias de dominação, superar as disputas e garantir que a justiça prevaleça. 

A busca por uma reparação na Bacia do Rio Paraopeba não deve ser vista como um problema isolado, mas como uma luta em prol da justiça em todo o lugar.