CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

Ela falava compulsivamente, simplesmente não parava. No momento de tomar fôlego víamos sua língua tremer de baixo para cima em um tremor frenético de pistão de carro; em determinado momento, causava vertigem nos seus ouvintes. Assim era Helenize, a síndica do Edifício Emília, na rua Vital, Quintino. Instância última das soluções dos problemas que assolam o condomínio está sempre preparada para agir em recuperação da paz no lugar.

Um pouco das eternas ocorrências do famoso prédio e da atuação decisiva de Helenize seguem abaixo:

O morador do 308, um policial aposentado já à beira do caixão – ou já do outro lado, apenas não sendo avisado em seu devido tempo -, atende o telefone (aquele mesmo, o que tinha fio e ficava plugado na tomada) e inicia uma conversa acalorada com sua irmã sobre os novos caminhos que o fascismo deve seguir para se impor mais uma vez ao mundo. Enquanto conversa por horas ao telefone, o feijão que estava fazendo no fogão, além de estourar a panela de pressão, emporcalhando as paredes de sua cozinha, já estava carbonizando e nada de Ademir, o morador do 308, perceber.

Fumaça tomando os corredores e um cheiro acre de queima se alastra por todo o prédio e já há algumas labaredas bruxuleando, quando o morador do 307, policial na ativa, arromba a porta e, possuído pelo espírito da boa vizinhança, ao invés de apagar o fogo, parte pra cima do aposentado enchendo o velho de porrada; demonstra, assim, seu preparo psicológico para permanecer na Corporação – sempre a bem servir à população.

Como os maços de fumaça compacta já tornam o prédio uma espécie de Londres tropical dado o fog do ambiente: o morador do 306, bombeiro aposentado e, por isso mesmo, quer passar longe de onde houver fogo e fumaça, vai ao encontro de Helenize, a síndica.

Graças a Deus que começou esse incêndio”, pensa o porteiro posto que já estava ouvindo Helenize há quatro horas falando sobre sua sobrinha dançarina do Silvio Santos que quase fora morta por um policial em Anchieta (seria um acidente provocado por bebida, no caso de o policial estar bêbado; ou seria premeditado, – ela roubara corações e mentes de alguns dementes por aí e poderia ser um crime passional) emendando com os benefícios do Ginkgo Biloba para a ereção dos porteiros do subúrbio carioca, tudo devido à temperatura dos assentos das cadeiras da portaria e à claridade vinda do reflexo da luz solar batendo nas vidraças da cabine onde ficam os porteiros – tudo cientificamente explicado pelo corpo de especialistas da Zoraide cosméticos e medicamentos LTDA.

Helenize, ao ser comunicada da ocorrência, muda seu semblante de imediato, de sorrisos desconexos de uma quase loucura da braba passa a circunspecção total da síndica eficiente. ‘Vamos” convoca o porteiro e o bombeiro aposentado (este espera num canto os outros partirem para garantir uma média com pão na chapa no bar da esquina e sai à Bangu – claro, aqui não é Inglaterra para dizer-se à francesa).

Exsurgindo em meio às chamas Helenize pega de um desses vasos vagabundos imitando Ming e dá na cabeça do morador do 308 – era o que estava mais próximo -, ela manda, comanda os condôminos, o do 307 a ajuda-la a retirar o corpo do que está desmaiado daquele inferno. Já do lado de fora exige explicações do que está consciente; este explica que quando arrombou a porta percebeu que o imbecil tinha deixado o fogo aceso e por causa da ignorância daquele em provocar um incêndio no prédio, partiu pra dar porrada naquele estúpido filho da puta.

– Escuta aqui seu burro, – irrompe Helenize repreendendo o vizinho revoltado. – Você não entendeu que se você tivesse entrado e apagado o fogo, poderíamos estar sem esse incêndio que vai trazer cota extra para todo mundo aqui? Você é deficiente mental ou apenas burro mesmo?

Aí de repente Helenize é tomada pela vontade de associar ideias sem eira nem beira, o que a caracteriza como “em transe”, e começa suas perorações:

– Você não deveria ser tão impulsivo, lembra meu falecido marido, o Alcinho da Vintém: ele começou com uma revolta legítima social, daí entrou pro tráfico de drogas e começou a invadir e furtar bens exclusivamente de policiais; fazia isso como uma forma de justiça; mas depois tomou mais coragem e começou a assaltar bancos e a matar meganhas. Como eu amava o Alcinho, fui eu quem acendeu a vela na Avenida Brasil quando ele estava com a cara estourada de AR-10… Coitado do Alcinho e olha que ele nunca me traiu, isso sim é que homem de família e cristão, não podia passar um dia sem orar a Jesus. Mas então, como eu dizia, Alcinho tinha esse problema, era ansioso, queria tudo na hora dele e você é igual; oras, onde já se viu, ao invés de apagar a porra do fogo, tu vai lá e enche a cara do doido do 308 de porrada!

E assim seguiu falando sobre a Virgem Maria que fizera uma aparição em Ubatuba e sobre a irmã que matara o marido a facadas porque descobriu que ele a traía, e olha que o marido assassinado era imenso e todo musculoso/saradão e ela, a irmã, era uma quase anã, diminuindo 5 centímetros por mês… Onde ela iria parar? Talvez caísse em algum bueiro e nunca mais seria vista por ninguém…

Um aparte: para nós escritores fica difícil não sermos contagiados por esse tipo de personagem, falo de Helenize, que me dá vontade de encher mais cinco páginas apenas com seus ensinamentos sobre cura de cobreiro e sobre seu sobrinho que comia a comadre enquanto o compadre dormia no sofá nos dias de jogo do Flamengo. Mas devo me controlar e vou seguir abaixo com os outros personagens do edifício Emília. Nada que um café não resolva.

Então houve o dia em que Jaiminho, um garoto de 23 anos casado com Zoraide, esta uma senhora de 73 anos, foi agredido por esta de forma tão furiosa que a polícia foi acionada, chegando os soldados Paulão e Pedrada para resolver a altercação.

– Seu merda! Já falei que só me resolvo na terceira! Vou arrebentar tua cara! – enfurecida tonitruava Zoraide.

– Terceira o quê, minha senhora? – Intervém Paulão após olhar para Pedrada.

– Eu só consigo dormir se eu gozar três vezes, seu imbecil! E esse frango aí não consegue manter o Bráulio para cima.

Jaiminho teve de se defender: – Mas, meu amor, eu estou cansado, hoje carreguei vários fardos nas costas no Cais do Porto. Eu não vou para a Delegacia, não falo nada sobre as agressões que sofri; só me deixa descansar um pouco e aí eu te pego minha gata gostosa! – Falava com um ar de quase choro, o que, de fato, comoveu os soldados da Polícia. Paulão era sensível aos tormentos de amor e Pedrada pensava em sua avó (Dona 44, de Engenho de Dentro) ao olhar para Zoraide… Ai, vovó…

Como aqui não é a Inglaterra, os soldados compraram umas latinhas de Skol e fizeram uma social para apaziguar os ânimos dos envolvidos na ocorrência.

– Porra, o Zico é que era o cara! Agora ficam esses mercenários de merda aí sendo sustentados por essas marcas de roupas e não jogam porra nenhuma. – Considerações rubro-negras de Paulão.

_ **&&%*&%*TBK B. – Dizia emocionada Zoraide relembrando que deu um pega no Zico quando era mais nova.

– O que ela disse, rapaz? – Pedrada perguntou para Jaiminho.

– Disse que comeu o Zico aqui em Quintino quando era mais nova… Ah, Zoraide, meu amor… Como você é deliciosa… – Intérprete dela desde que fez implantes e ao beber perdia a dicção das palavras, embolando tudo em uma bela tapeçaria persa.

E assim o tempo foi passando e o edifício Emília continuava em pé, apesar de seus moradores serem do jeito que eram.

O morador do 402 tinha um arsenal maior do que o do exército, mantendo todas as armas limpas e escovadas, lustradas todos os dias após a hora do Angelus, ou seja, após as 6 da matina.

Houve o dia em que o morador do 401 resolveu aplacar suas pulsões sexuais enchendo a cara da esposa de porrada, além de compensar sua disfunção erétil, claro (coisa românticas que acontecem em Quintino, mas não se enganem, não, acontece em Paris ,também).

– Eu te amo, Francineide! Vem cá, Francineide para seu cachorro te dar porrada! Por que você corre de mim, meu amor? – Gritava o possesso morador do 401. Procurando sua presa, encontra-a em baixo da mesa da cozinha e a puxa pelos cabelos. De fato, a mulher do 401 estava naquele estágio de submissão aos destratos do marido brocha, mas não gostava da dor que lhe provocavam as agressões, por isso, fugia dele.

Ensurdecedor o barulho provocado pelo macho em declínio em seu apartamento: móveis sendo quebrados; Francineide gritando pela dor provocada pelos golpes desferidos contra ela; berros estarrecedoramente loucos do homem do 401, como possuído pelo prazer incompleto do impotente que não assume sua condição.

Tanto estardalhaço praticamente obrigou o morador do 402 a intervir e, quando ele intervinha, intervinha com vontade: o jeito sutil de ser de um sujeito que possui fuzis, revólveres e granadas num armário.

Aí é pé na porta; já puxa o vizinho pelos cabelos liberando Francineide do agressor; soco na boca do estômago e o inelutável chute no saco…. E assim: adeus, agressor brocha e covarde de mulheres.

– Aceita um café? – Pergunta á vítima o Rambo de Madureira naquela impostação de voz tipo galã das novelas das 8. De fato, ele sentira imediatamente toda a beleza daquela sensível feminilidade exposta à profanação; mas, em um primeiro momento, chamou-a mais para tirar a subordinação feminina da cabeça dela, pois ela estava tentando amparar o agressor, com pondo um patético ícone de Pietá.

E tem a do taxista, o apontador do jogo do bicho e o gari da Comlurb….

Pensando melhor, deixa essa para depois!