Por Patricia Simon (*) – La Marea

“Quanto mais imigrantes se afogam no Mediterrâneo, mais orçamento a União Europeia destina a toda uma rede de empresas contratadas para implementar políticas de encerramento de fronteiras que fracassam já há mais de três décadas. Ou não: Talvez aumentar a mortalidade seja a sua única função»

Um dos trabalhadores que descarregaram os corpos dos mortos do naufrágio na Grécia na quinta-feira passada, tinha uma suástica e um outro bordado tatuados no braço, símbolo do partido neonazista Aurora Dourada, organização declarada criminosa, entre o mais por causa dos seus ataques a imigrantes. Sabemos disso graças à crónica do jornalista Hibai Arbide Aza, publicada no El País. A algumas dezenas de metros de distância, na área do porto de Kalamata para onde foram transferidos os sobreviventes, a polícia colocou telas ao lado das cercas para que eles não possam falar com a imprensa, como nos informa Queralt Castillo em lamarea.com.

Esses detalhes, que os jornalistas puderam documentar porque foram até lá para serem os nossos olhos, salvam-nos da tentação de ignorarmos este golpe de crueldade, de o reduzirmos à manchete de mais uma tragédia a acrescentar a muitas outras, de virarmos a página para não podermos imaginar os seus olhos assustados quando a água começou a cobrir tudo.

Eu reconheço tudo. Adiei por horas o clicar nas crónicas do naufrágio, porque esta guerra que a União Europeia trava contra os imigrantes e refugiados está a cumprir o seu objetivo: que nos seja cada vez mais difícil enfrentá-la porque, inevitavelmente, somos cúmplices destes crimes contra a humanidade. Tal como aconteceu com o Holocausto, aonde grande parte da sociedade alemã simplesmente silenciou. E eu poderia ter conseguido sentir-me seguro, se apenas tivesse lido os números, as declarações oficiais, as estatísticas.

Impunidade europeia

Mas depois veio aquele braço com a suástica, e senti-me ridículo por estar indignado com o fato de um nazi ter permissão para carregar os corpos das vítimas das diretivas racistas europeias. Porque o mais devastador é que não temos a menor esperança de que os responsáveis ​​pelas políticas criminosas de encerramento de fronteiras possam um dia ser responsabilizados num julgamento como o de Nuremberg.

A impunidade alimenta a criminalidade institucional: desde a primeira imagem de um homem afogado durante uma viagem de barco na costa de Tarifa em 1988 até este naufrágio na costa grega, a única coisa que os burocratas de Bruxelas fizeram foi dispor mais orçamento para a indústria militar de conter os imigrantes nas fronteiras, pagar mais aos países do Sul Global para impedirem as pessoas de usufruírem do seu direito de migrar, e destruir a consciência ética europeia através do seu permanente cinismo.

Agora vêm os discursos emocionais lamentando as perdas humanas, responsabilizando as máfias dos traficantes e omitindo a verdade: que todos esses homens, mulheres e crianças se afogaram apenas porque a UE os impede de vir num avião ou num barco de carreira normal; que muitos deles apenas fogem de países em guerra como a Síria ou a Palestina mas que, como não são brancos nem cristãos como os ucranianos, têm que morrer para poderem ser notícia e receber algumas palavras de solidariedade; que continuarão a vir e que Bruxelas continuará a pagar às máfias que controlam as instituições líbias que os detêm e os levam de volta; que continuarão a vir e que as guarda-costeiras e a FRONTEX continuarão a ignorar os seus pedidos de auxílio; e que continuarão a vir porque os seres humanos sempre buscaram lugares mais seguros, mais prósperos e onde possam ter uma vida melhor; e que continuarão a afogar-se, porque as condições de viagem são cada vez piores e porque a impunidade da crueldade conduz sempre à perversidade.

E continuarão chegando, cada vez mais, porque não é obrigatório fugir duma guerra para que o seu desejo de imigrar seja legítimo; e continuarão a afogar-se cada vez mais porque a crise climática e as desigualdades os vão empurrar para o mar; e vão continuar a afogar-se cada vez mais porque, quanto mais se afogam, mais orçamento a União Europeia destina a toda uma rede de empresas contratadas para políticas de encerramento de fronteiras que fracassam há já mais de três décadas. Ou não: Talvez aumentar a mortalidade seja a sua única função!

O racismo da União Europeia

Porque, como relata Castillo, o Alarm Phone mostrou o registo dos pedidos de ajuda que eles enviaram durante horas a partir do barco de pesca. A guarda-costeira grega e a Agência Europeia de Fronteiras (FRONTEX) localizaram o navio e não vieram em seu socorro até que fosse tarde demais. Os voluntários do Alarm Phone também alertaram as autoridades da Grécia, da Itália e de Malta. Em democracias plenas, uma tal informação levaria a que os responsáveis ​​tivessem que pagar por essas centenas de mortes.

Mas então li Arbide Aza, que explica que os sobreviventes serão transferidos para o campo de refugiados de Malakasa, construído numa base militar a 50 quilômetros de Atenas. E lembro-me novamente de que não há esperança. O que teria de acontecer para que as autoridades europeias encerrassem os sobreviventes brancos de um naufrágio, com o desaparecimento de centenas de pessoas, numa base militar? O que teria de acontecer para que a polícia se arrogasse o direito de os impedir de falar com a imprensa?

E então lembro-me das notícias que chegaram até nós da Líbia nas últimas semanas. E percebo que neste mega naufrágio há outro importante ator político: O governo de Abdul Hamid Ad-Dbeiba, apoiado pela ONU, que controla Trípoli e partes do Oeste da Líbia, e que tem bombardeado civis nos portos de Al-Maya, Zuwara e Az-Zaw com drones há já meses. No Leste, o general Khalifa Haftar, considerado um criminoso de guerra, ordenou detenções em massa de imigrantes em toda a região e uma ofensiva militar em Musaid e Tobruk, cidade de onde partiu o barco de pesca atingido. A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, reuniu-se nos últimos dois meses com os dois líderes rivais para fechar acordos a portas fechadas contra a imigração.

Enquanto isso, os jornalistas que nos contam o que está a acontecer em Kalamata, não apenas nos salvam do crime de indiferença, mas de alguma forma, eles estão ali também como representantes daqueles de nós que gostaríamos de preservar alguma decência, de participar dum ato em memória dos falecidos e desaparecidos, de ir a um lugar onde possamos ficar em silêncio em sua memória, deixar-lhes flores, desejar-lhes que descansem em paz, desfilar em silêncio diante dos sobreviventes, baixar a cabeça, sussurrar-lhes  que os acompanhamos na sua dor. E também de apontar o dedo aos responsáveis: Todos os criminosos de guerra acreditam que nunca serão julgados.

 


(*) Repórter especializada em direitos humanos e abordagem feminista. Patricia Simon foi cofundadora e vice-diretora do ‘Human Journalism’. Já cobriu mais de 25 países: Documentou os protestos no Iraque, as consequências da pandemia de Covid-19, o incêndio do campo de refugiados de Lesbos, as eleições presidenciais nos Estados Unidos e na Colômbia, a ascensão do jihadismo em Moçambique e no Mali e a guerra na Ucrânia. O seu trabalho foi reconhecido com o Prémio da Associação Espanhola de Mulheres nos Média em 2013, o Prémio Internacional Manuel Chaves Nogales, assim como o prémio Bones Pràctices de Comunicació No Sexista da Associação de Mulheres Jornalistas da Catalunha (ADPC) em 2022.

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