CRÔNICA
Por Ana Paula de Souza
O sol amanhecia no asfalto esfarelento superfaturado pelo prefeito, os bancos de madeira mais uma vez denunciavam os pombos órfãos e a ausência de manutenção de todo o bem que se julgava de propriedade pública, os banheiros exalavam aroma fúnebre de defunto fermentado. Era o início de mais um dia comum na cidade de Itaperê,
Dentro do seu apartamento, o Doutor Ajionso Viracopos nutria ódio pelo cotidiano, ódio pelas meninas da noite, pelos fanfarrões da política, pelos traficantes, pela milícia, pelo clero religioso agora em várias denominações, nutria ódio por tudo o que via e supunha.
Tinha mais um dia de trabalho pela frente, junto com os boçais do fórum que sempre o atormentavam: “Qual foi a sentença, excelentíssimo?” Sentia-se péssimo na maioria das vezes, gostaria de responder: “Cala-te, não vês que a sentença foi injusta?”
Mas não podia agir loucamente, apenas sabia que a milícia, tão bem vestida de polícia digna na sua cidade, comprava testemunhas e provas para manipular o sentido das investigações, impermeabilizando qualquer justiça digna de aparentar-se nas suas decisões.
A milícia favorecia o tráfico e o tráfico favorecia a milícia em acordos envolvendo uma grande quantidade de dinheiro, de drogas( sim, isso mesmo), de armas e de privilégios.
Pensava inutilmente sobre tudo o que acontecia, uma vez que já era homem velho e nada poderia fazer que não o pusesse em péssimas circunstâncias, ainda mais agora que o neto estava sob sua responsabilidade.
Ouviu um barulho na porta, que se abriu rapidamente, assustou-se, mas era apenas o neto embriagado com a festa da noite anterior.
_Um dia, ainda vais errar de casa!
_Por sorte, não bebo muito…
_Por que bebeste tanto, filho? Não é teu feitio…
_Lembra que disse que te apresentaria alguém?
_Mulheres…diga-me o que houve.
_Ela me contou muitas mentiras, é casada, tem filho, mora no bairro Sapé.
_Quantos anos disse que a moça tinha?
_A idade estava certa, tem quinze anos e eu dezessete.
_Quinze anos e já nessa vida… qual o nome da moça?
_Aurora Vaz Suplino.
O Senhor Ajionso quase teve um infarto. Lembrava-se ainda da decisão que destruiu a vida da moça, dada por ele, imutável pela manipulação das provas. A moça era a filha do coronel Epaminondas Vaz Suplino, um cão do inferno, homem da pior espécie, afastou a mãe da menina sob razões de doença mental inexistente, se utilizando de provas cabais, mas todas falsas, todas manipuladas, para induzir qualquer juiz a erro.
Sentenciou com uma arma na cabeça, completamente ameaçado pelo bando de capangas do sujeito. Soube depois que a moça foi forçada a se casar com o chefe da facção, quando ainda tinha treze anos.
A justiça era muito quebradiça, não funcionava, era torpe, beneficiava o pior tipo de gente.
Estava farto daquilo.
_O que foi, vô? O senhor está bem?
_Essa menina é casada com um criminoso. Filho, por favor, se mantenha longe disso!
_Casada com um criminoso e filho de outro ainda pior, com o filho no mesmo caminho…
_Está completamente apaixonado pela moça, vejo nos teus olhos… Talvez seja esse o momento de voltar a morar com teu pai na Itália.
_O senhor sabe que eu não vou voltar, não é?—algumas lágrimas escorriam do rosto jovem.
_Como assim? Não vai voltar?–perguntou, o velho assustado.
_Me marcaram…eles me marcaram—o rapaz soluçava, enquanto exibia uma caveira com uma cruz, marcada a ferro quente em seu braço.
O rapaz estava jurado de morte, já havia visto aquela marca antes… uma dúzia de vezes, em fotos de cadáveres.
_Meu filho…não…onde esteve por causa dessa moça, meu filho?
O velho estava embargado de tristeza, como alguém que sabe que o neto está prestes a morrer e não há possibilidade alguma de salvação.
Enquanto isso, no bairro Sapé, Aurora Vaz Suplino dançava com duas taças de wisky nas mãos, sem peso nenhum na consciência, sem amor por ninguém, fora dada tantas vezes como mercadoria, tantas vezes como desculpa, tantas vezes como acordos de paz… perdia as contas de todos os homens com os quais fora obrigada a se deitar, de todas as vezes que fora humilhada.
Perdera sua liberdade por conta de uma sentença e agora o Doutor Ajionso Viracopos sentiria o poder da sua vingança, perdendo seu bem mais precioso que era o neto Apolo, jovem de ótima educação, afortunado das ideias, podre de rico, agora jurado pelo tráfico.
Sabia que assim que o marido chegasse em casa e soubesse dos rumores de traição, seria a primeira a morrer, a primeira a ter uma arma descarregada em seu corpo, a primeira a ter o seu corpo estilhaçado à facadas, este era o preço de ser filha do diabo.
Alguém bateu à porta, a moça aguardava apenas a morte, mais nada. Abriu a porta e Apolo estava à sua frente.
_O que está fazendo aqui?!
_Eu vim salvar você!
_Você está jurado pelo tráfico, seu idiota!
_Eu já estou jurado pelo tráfico, meu tempo está acabando e eu quero passar o resto da minha vida com você!
Aurora agora sentia-se péssima, fora maldita sua vingança, eram sinceros os sentimentos do jovem.
_Eu… estraguei a sua vida. Eu estraguei a sua vida e você ainda vem me salvar?!–soluçou.
_Venho, vamos embora! Rápido, pegue seu filho!
_Meu filho está com a minha mãe em Etero Salvador. Eu não vou a lugar algum!
_Então eu também fico.
Era a primeira vez que um homem se aproximava de Aurora e sua intenção era a de verdadeiramente protegê-la.
Sentiu-se tão deslumbrada pelo acaso, tão segura na presença de alguém frágil como Apolo, tão preciosa que terminou por aceitar fugir.
De repente, estavam os dois dentro de um carro popular com insulfilme, que não permitia a identificação, em direção à Etero Salvador para levar a mãe e o filho na bagagem.
Aurora muito se arrependia da vingança, mas havia sido o único erro que salvaria sua vida.
Sabia que se os encontrassem, a morte era uma questão de tempo, mas por agora só queria viver, só queria viver como nunca havia vivido antes, tinha agora uma felicidade sua, longe da clandestinidade da felicidade daqueles que se divertem com a infelicidade dos outros.