No momento em que a opinião de influencers é mais importante que o comprometimento de jornalistas que levam seu trabalho a sério, apurando, entrevistando e aprofundando debates essenciais para serem travados na sociedade, como jornalista, trabalhadora do SUS e futura historiadora, proponho ao site internacional Pressenza, que tem foco nos Direitos Humanos, a criação de um espaço para conversar com jornalistas,  o que foi rapidamente aceito pela equipe. O objetivo é conhecer os  processos de escrita do jornalista, suas ideias, rotina e subverter a ordem,  colocar em primeiro plano quem geralmente está nos bastidores de uma grande reportagem, de uma investigação que pode mudar os rumos políticos do país.

Para estrear a coluna, neste 7 de abril, Dia Mundial da Saúde e Dia da Jornalista, nada  melhor do que conversar com a jornalista Cátia Guimarães, trabalhadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio Fiocruz (EPSJV/Fiocruz), que entrecruza os campos saúde, educação e comunicação a serviço de um jornalismo  comprometido com o Sistema Único de Saúde (SUS) e com a instrumentalização da sociedade, para que esta tenha mais informação de qualidade e mais autonomia para decidir sobre a sua saúde, os rumos de sua vida e do país. Um jornalismo menos veloz, em sintonia com a duração das estações, dos ciclos, com o silêncio necessário para esculpir o tempo e a palavra.

Joyce Enzler*

–Quando você decidiu ser jornalista?

Quando criança, eu sempre quis ser professora. Eu montava uma sala de aula com cadeiras vazias, quadro, giz, tinha caderno de plano de aula onde eu preparava a matéria que ia dar, o exercício que eu ia passar… ficava tardes inteiras dando aula. Quando cresci, me tornei adolescente, e chegou perto do momento de decidir que curso eu faria no vestibular. Eu sabia que queria ser professora, mas não existia um curso superior de professora. Para ministrar aulas, eu precisaria fazer um curso de alguma disciplina específica (História, Geografia, Matemática, Letras…). E eu não queria. Sempre quis fazer faculdade de História e de Filosofia, mas tinha clareza de que, se fizesse, seria uma segunda faculdade, não a primeira. Então, quando foi chegando perto da decisão para o vestibular, eu decidi ser jornalista, principalmente porque eu gostava de escrever. Além disso, porque eu achava muito interessante aquela vida de “não especialista”, digamos assim, aquela vida em que as pessoas tinham que ler, estudar, pesquisar, apurar sobre muitos temas diferentes: um dia falava de uma coisa, outro dia de outra…

Essa ideia, de poder saber de muitas coisas diferentes, me agradava muito e eu decidi, então, fazer o curso de jornalismo. Entrei na faculdade de jornalismo na UFRJ, em 1995, e logo no início, no segundo período, se não me engano, um professor de sociologia nos recebeu na primeira aula dizendo que se o estudante decidiu fazer jornalismo, era porque gostava de escrever, tudo bem, mas ele achava que essa não era melhor motivação, que se a pessoa quisesse fazer um bom curso, e ser um bom jornalista, tinha que gostar era de ler. Eu gostava muito de ler. Então, hoje eu sei que essa foi uma boa motivação também pra escolher esse curso, embora não soubesse na época. Foi isso e não me arrependo.

–Conte um pouco da rotina do jornalismo

Eu não vou caracterizar alguma coisa típica do jornalismo, porque eu nunca trabalhei em grande imprensa. Então, aquela imagem do jornalista correndo para fechar matéria, para fazer a cobertura do dia a dia, eu nunca vivi.  Aquele estereótipo do jornalista de grande imprensa, cada vez mais sem tempo pra produzir, guiado pela velocidade como valor da notícia, eu nunca vivenciei. Fosse no jornalismo mais organizacional ou na comunicação pública, que é onde eu considero que trabalho hoje, eu sempre trabalhei com tempo pra apuração, o que é um privilégio. É bom que se diga isso. Então, o dia a dia do jornalismo para mim foi sempre ler, estudar muito, fazer uma pré-apuração bastante forte, tentar mapear um leque muito grande de especialistas nas áreas em que estou trabalhando, sempre valorizando a ideia de diversidade e de pluralismo, que são muito importantes para o jornalismo, mas uma diversidade fundamentada, que não se reduz a ouvir uma variedade de opiniões ou visões de mundo.  No trabalho que eu desenvolvo hoje, a equipe, para uma matéria de capa, por exemplo, às vezes entrevista 10, 15 pessoas. Para construir o roteiro de perguntas desses entrevistados, nós estudamos muito, lemos artigos, livros, teses inteiras. Isso, de alguma forma, retoma a resposta que eu dei antes sobre gostar de ler, que podemos ampliar para entender que o jornalismo requer estudo. Apuração, no modelo Ideal, precisa ser mais do que esses estereótipo da correria de ouvir “declarações”. Apuração significa pesquisa,  mapeamento e identificação de sistemas de banco de dados, consiste em ouvir as pessoas, mas com um conhecimento prévio sobre aquele tema que permita aprofundar, contestar, contextualizar e não apenas reproduzir um jornalismo declaratório. Eu sou uma privilegiada de poder fazer esse tipo de jornalismo.

Foto do CECS, Centro de estudos de comunicação e sociedade, Universidade de Minho, Portugal. Captura de vídeo

–Fale sobre o seu processo de escrita.

Escrevo rápido, mas só começo a escrever, em geral, depois que a apuração está completamente pronta. Então, eu passo muito tempo fazendo apuração. Muitas vezes enquanto estou realizando uma entrevista ou lendo um documento, um relatório, já pesco dali frases, ideias ou declarações que eu já sei que vão servir para abrir, para fechar a matéria ou para dar nome a um intertítulo, por exemplo. Então, durante a apuração, vou percebendo e destacando trechos que vão ter um lugar específico na escrita propriamente dita. Mas só escrevo quando entendo que está quase tudo apurado. Portanto, primeiro eu monto um esqueleto da matéria, organizando os temas que vão ser tratados em ordem.  Se eu tiver identificado durante as entrevistas, por exemplo, trechos que vão servir para um determinado bloco de conteúdo, quando eu faço o esqueleto, coloco aquele conteúdo ou aquela frase ali e depois vou só preenchendo. O problema é quando estou escrevendo e descubro no meio da escrita que algum dado faltou, que tem um buraco na apuração. Outra curiosidade, talvez seja que eu escrevo botando muito “xxx”,  ou seja, espaço não preenchido do texto. Eu escrevo e deixo para pegar depois da matéria pronta os dados objetivos, como dados percentuais do IBGE, sobrenome dos entrevistados.

“Apuração significa pesquisa e não apenas reproduzir um jornalismo declaratório”

–Como você trilhou a sua carreira até chegar à Fiocruz?

Bem, ainda como estudante de jornalismo, na UFRJ, eu me tornei bolsista de um projeto de pesquisa que estudava redes sociais na região da Leopoldina, buscando, entre outras coisas, entender como se formavam redes de solidariedade por meio da comunicação e da informação nos territórios da Leopoldina, uma região do Rio de Janeiro formada sobretudo por complexos de favelas. Eu trabalhei como bolsista em pesquisas que iam se atualizando, mas todas em torno dessa região e desse tema durante vários anos. E nesse processo, conheci mais de perto a Fiocruz, porque alguns desses projetos foram desenvolvidos em parceria com pesquisadores da Fundação. Também durante a faculdade, no final do curso, comecei a trabalhar como jornalista na revista A chama, do Colégio São Vicente de Paulo, localizado no Rio de Janeiro, no Cosme Velho. Era uma escola privada, religiosa, portanto, evidentemente, os temas eram diferentes do debate sobre política pública de Educação que atravessa a minha experiência profissional hoje na Fiocruz. Porém, foi importante essa primeira experiência de contato com o ambiente da Educação como tema do jornalismo, porque ali tive contato com alguns autores desse campo, como Paulo Freire, com o conceito de educação para emancipação e muitos outros. Eu e uma outra jornalista, amiga, continuamos responsáveis por essa revista até muito tempo depois de formadas. É importante dizer que eu me formei durante o governo do Fernando Henrique Cardoso. O Brasil vivia uma crise importante e, entre outras coisas, não havia emprego e estágio era muito difícil na área do Jornalismo.

“Para construir o roteiro de perguntas dos entrevistados, nós lemos muito. O jornalismo requer estudo”

No meu curso, o estágio não era obrigatório, mas a gente tentava. Os grandes veículos de comunicação, como o Grupo Globo produziam processos seletivos com poucas vagas. Os estágios em empresas, agências e outros espaços eram muito restritos. Então, terminei a faculdade sem ter realizado o estágio, embora tenha passado o tempo todo como bolsista de iniciação científica em pesquisa. Quando me formei, também não havia emprego. Era um período muito difícil. Fui contratada como jornalista numa universidade privada. Também lá eu me aproximava do Campo da educação. Trabalhava com comunicação organizacional numa universidade privada, então, não havia debate conceitual de educação crítica e outras, como no colégio São Vicente, mas ainda assim eu tive contato com a legislação, regulações, normas desse campo, principalmente da educação superior, que depois me foram muito úteis. Hoje eu trabalho na Fiocruz com Jornalismo no entrecruzamento entre saúde e educação, e essas experiências foram fundamentais. Eu fiz muito trabalho de freela: assessoria de imprensa, cobertura de eventos, fui responsável por jornais pequenos, além de revisão  e edição de textos jornalísticos e acadêmicos. Aparecia muito freela no campo da Saúde, alguns mais regulares. Trabalhei pro jornal do Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (Conasems), fui jornalista do Laboratório de Pesquisa Sobre Práticas de Integralidade em Saúde (Lappis/Uerj), entre vários outros, principalmente na Saúde.

Foto do CECS, Centro de estudos de comunicação e sociedade, Universidade de Minho, Portugal. Captura de vídeo

Na Fiocruz, trabalhei primeiro como jornalista responsável por uma rede de mais de 40 escolas do Brasil inteiro, a Rede de Escolas técnicas do SUS (RET-SUS). A secretaria técnica dessa rede era na EPSJV, uma unidade técnico científica da Fiocruz. São escolas que formam trabalhadores para o SUS.  Entre muitas outras coisas, idealizamos e construímos a revista RET-SUS, que tinha como objetivo principal articular essas escolas entre si e pautar o debate científico e de política pública na área de educação profissional em saúde. Quando a secretaria técnica da rede saiu da Escola Politécnica da Fiocruz, fui para a coordenação de comunicação dessa mesma unidade e nós criamos outra revista, a Poli, que existe com muito fôlego até  hoje.

Fui coordenadora de comunicação durante muito tempo e em vários perdidos diferentes, porém o que importa para o meu trabalho como jornalista é a criação da revista Poli, que tem como subtítulo: Saúde, Educação e Trabalho, seus temas principais. Também fui editora da Poli, desde a origem até julho do ano passado, quando eu entrei de licença para um pós-doutorado em Portugal, onde estou agora. É uma revista com um trabalho muito importante, que discute políticas de Saúde, de Educação e de Trabalho sempre por uma perspectiva crítica e não neutra, mas a partir de um Jornalismo muito rigoroso. Circula pelo Brasil inteiro e já está prestes a fazer 15 anos.

Ao longo de todo esse tempo,  estudei, sempre tentando fundamentar e melhorar minha prática como jornalista. Cursei especialização em Comunicação e Saúde,  mestrado em Comunicação e Cultura, doutorado em Serviço Social e agora estou fazendo pós-doutorado em Portugal, na Universidade do Minho, com uma pesquisa sobre jornalismo alternativo, desinformação e pós-verdade. Meu estudo e o meu trabalho como jornalista sempre estiveram Interligados. Guardadas todas as dificuldades, a gente tenta fazer, dentro da Fiocruz, um jornalismo alternativo, público, próximo do contra-hegemônico, tudo o que sempre estudei.

–Qual a importância de unir dois campos tão importantes para a sociedade, Comunicação e Saúde?

Na Escola Politécnica da Fiocruz, também ministrei aulas de Comunicação e Saúde para o ensino médio, buscando impulsionar o debate sobre mídia e jornalismo. A Saúde e, particularmente, a saúde pública, é um campo muito importante da vida da sociedade.  O campo da Comunicação e Saúde envolve vários aspectos, como  uma melhor comunicação dos Profissionais de Saúde com os usuários, pensar os saberes populares e outras formas de saber como importantes para o diálogo com o conhecimento científico. O que atravessa a minha experiência e me interessa mais particularmente é a Saúde Pública como um campo a ser explorado pelo jornalismo. É o Jornalismo em Saúde. É explorar esse campo de conhecimento a partir da produção de informações que necessitam chegar à sociedade e instrumentalizá-la. A sociedade precisa conhecer o conceito ampliado de saúde, precisa conhecer uma concepção de saúde que é diferente dessa concepção individualista e individualizante que prevalece na grande imprensa e na grande mídia Empresarial – a ideia de que as pessoas são responsáveis pela sua saúde pela sua doença. Precisa superar uma concepção de saúde associada à doença apenas e à responsabilização individual, descolada da análise sobre as condições de vida e sobretudo desvinculada do seu caráter necessariamente coletivo.

“O que tem sido valorizado é a rapidez em se conseguir frases e declarações que gerem engajamento nas redes sociais”

A pandemia nos mostrou nitidamente o quanto a saúde individual depende diretamente da Saúde Coletiva, o quanto não existe saúde apenas centrada no indivíduo. Isso não é novidade. Há todo um arcabouço teórico e conceitual de políticas públicas,  existe todo um conjunto de questões que poderia dar um novo significado ao campo da Saúde Pública, além de promover outras concepções sobre saúde, diferentes daquelas de abordagem individualista e medicalizante realizada pela grande imprensa. Uma visão que valoriza o privado e a dimensão individual e que produz consequências sérias, como um abandono da vacinação, a baixa cobertura vacinal e um desinvestimento naquilo que cada um pode fazer pela saúde coletiva Essa me parece uma tarefa importante do jornalismo que se desenvolve fora da grande imprensa nesse momento. É uma atribuição do que chamamos de Comunicação Pública: promover um conjunto de informações fundamentadas sobre saúde de modo a transformar,  desafiar e disputar a concepção de saúde que existe na sociedade brasileira hoje, que desconhece ou só negativiza o SUS. Essa é a função principal do jornalismo como parte da Comunicação em Saúde.

Foto do CECS, Centro de estudos de comunicação e sociedade, Universidade de Minho, Portugal. Captura de vídeo

–Atualmente, com a presença das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) em nosso cotidiano, onde todo mundo pode se intitular jornalista, como você enxerga o futuro do jornalismo?

O futuro do jornalismo depende de se fazer jornalismo de verdade, de se abandonar essa concepção recente, que em parte é uma concepção e em parte é resultado da precarização do trabalho das redações, de que jornalismo é apenas repetir declarações. Nós vivemos uma era do jornalismo declaratório, pautado pela velocidade e cada vez mais definido pela capacidade de fazer circular seus conteúdos nas redes sociais. De modo que mais importante do que apurar, do que investigar e dar uma informação precisa, o que tem sido valorizado é a rapidez em se conseguir frases e declarações que gerem engajamento nas redes sociais. Entrar na lógica das redes é se render a uma lógica não jornalística. Divulgar declaração bombástica e polêmica qualquer pessoa pode fazer. O jornalismo quando se reduz a isso,  por um lado se torna igual a todas as outras práticas que não são Jornalismo, e por outro se torna irresponsável, se torna o antijornalismo, na medida em que não faz aquilo que é a sua função:  apurar, complementar ou contrapor as declarações de personalidades com dados objetivos, verificar as declarações e só publicar aquilo que é verdade. Vivemos uma crise de credibilidade que vai além do jornalismo e que é fomentada por uma indústria de desinformação que não é nada espontânea e que circula prioritariamente nas redes sociais. Não quer dizer que iremos resolver todos os problemas das Fake News, da desinformação, da pós-verdade só com o bom jornalismo, mas acredito que o primeiro passo para a gente diferenciar o jornalismo das práticas que fomentam a desinformação através das redes sociais é voltar a fazer jornalismo, ou seja, voltar a buscar a verdade dos fatos, não se deixando pautar pela lógica dos cliques das redes sociais. O jornalismo hegemônico sempre teve muitos problemas, principalmente num cenário de concentração midiática, como o brasileiro, em que os interesses econômicos empresariais se expressam muito nitidamente em alguns momentos na pauta jornalística. O jornalismo alternativo sempre foi muito necessário, porém não  conseguimos responder à altura. Mas o que pretendo destacar é que mesmo o jornalismo hegemônico sofreu um processo de degradação forte nos últimos tempos, o que ele se tornou certamente alimentou a crise de credibilidade que vivemos hoje.


* Jornalista cedida pela Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz). Uma parceria que começou com a Vice-Direção de Escola de Governo em Saúde (VDEGS/Ensp/Fiocruz) e continua, agora na VPAAPS,  pela importância da Pressenza no debate sobre Direitos Humanos e temas relevantes na sociedade.