CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

Aos gritos de “Tá gostosinho!”, lema do grupo de menores arregimentados pelo tráfico do Alemão chamado Bonde do Penetra Cano, Frodo foi morto em combate. Uma bala transfixou e rasgou a carótida, de imediato desmoronou no chão da Fazendinha. A munição era Dundum e, por isso, o projétil transformou-se numa rosa metálica mutilando o pescoço do soldado: ao redor de Frodo havia um jardim de rosas metálicas. As pétalas arrastaram tecidos e vasos e tingem o roseiral brotado

Frodo era um desses reservados idealistas que pensam na Corporação como um canal para um futuro de paz, porém a ponta e a consequência estão bem longe das causas. Antes de seu ingresso na carreira militar fora dublador de uma franquia importante de Hollywood – a ficção para ele estava muito fora da luta concreta por um mundo melhor e, por isso largou a dublagem tornando-se um policial.

Tudo começou quando Baiacu, o chefe da Fazendinha, que sempre cumpriu com os arregos dos hômi, teve uma de suas bocas tomadas por Funil, policial corrupto que tomava grana suja do tráfico e que faz a vergonha dos que tiveram as suas fardas encharcadas por seus sangues, Aí começou a esquentar a chapa, porque os policiais apontados no caderninho de controle da boca já tinham sido pagos. Como dois mais dois são quatro, Baiacu sacou rápido que Funil estava no meio e que, por sua vez, implantara uns praças no local para levar a grana.

Quando Funil soube que estava na linha da rajada do Baiacu, estremeceu nas bases, balançou, balançou, mas não caiu. Pensou então em como chegar cara a cara com o chefão do morro sem com isso perder sua vida. Como estava muito estreito para o seu lado, teve de buscar ajuda do sobrenatural: sua solução apenas poderia surgir da boca de Babalaô Três Soluções.

Início da sessão.

– Papai, estou com problemas na Fazendinha, o movimento descobriu que eu segurei o arrego e pus uns praças no comando da boca, agora o chefe da boca sou eu, mas não tenho como fazer corpo contra o frente da favela. O que eu faço, papai? – Pergunta tomado pelo medo.

– Mizinfio, hoje Exú tá comigo, eu sou cavalo dele. Escuta o que ele tem pra te falar: vosmecê vira as costas e segue teu negócio mas perde o ouro; vosmecê pode sacrificar teus hômi e falar com o rei aí depende da obediência dos teus para ter teu ouro; e pode juntar o teu e sumir. A escolha é tua, mizinfio, teu ouro depende de vosmecê. – Voz gutural da ancestralidade banto.

– Meu papai, poderia ser um pouco mais específico, com todo o respeito.

Não houve resposta alguma, pois o santo já tinha subido e não havia mais nada no lugar.

Das opções, Funil resolveu escolher a segunda. Para garantir a grana da boca ocupada ia criar uma operação na Fazendinha e usá-la como subterfúgio para poder chegar no esconderijo do Baiacu e tentar trocar os arregos pela boca de uma vez por todas; se não desse, matava o escroto com a Berretta calibre 6.35, o chefão merecia o cabo de madrepérola da arma guardada para um bote desse porte.

Tudo arrumado: um “Tróia” de incursão policial; Funil chamou alguns soldados, dentre eles Frodo. Nada como manipular um idealista para manter o velho sistema.

Na noite de São Jorge a balaria comeu solto na Fazendinha; saindo de uma ambulância, dez policiais altamente armados procederam na favela. Baiacu pegou o seu ParaFal calíbre 762X51mm pintado com dentes de tubarão nas laterais e ficou escondido na casa da caixa de supermercados Anete enquanto seus homens corriam as vielas para tocaia dos policiais.

A população se esgueirava pelas vielas para passar pela linha de fogo entre os policiais e os bandidos e assim não serem mortos por balas perdidas. Frodo assumiu o flanco esquerdo e com sua visão de mundo pensava estar lutando pela justiça ao passo em que – sem o saber – estava servindo de bucha para que o seu superior Funil, o comandante da unidade militar da área se encontrasse com o dono do morro para garantir seus negócios particulares de corrupção.

Quando Frodo chegou no Inferno Verde, sentiu que a situação não era a de uma “casa de família”.

– “Tá gostosinho! Tá gostosinho!” – tal cantilena fanha veio tomando corpo aumentando o volume, de uma leve nota de grilo no mato a uma sinfonia estrondosa de um Beethoven alucinado pelo pó.

Seguido de “Morre, filha da puta! Morre cu azul!””.

Começa a dodecafonia das balas, percebe logo se tratar de balas dumdum, o inferno queimando em meio a todo aquele capim verde, muito verde. Surpreso com os buracos nas paredes dos barracos, mesmo sendo obstinado e corajoso, Frodo sentiu o arrepio do medo, mas soube controla-lo e pôs sua missão acima de sua vida. Prosseguiu.

Muito tiro, destravada, sua Colt 556 estava preparada para o combate; a cantilena era para demonstrar o que os gansos sentiam com o tiroteio… Prazer. E, para piorar ainda mais a situação, eram garotos armados que disparavam contra ele e seus colegas. Matar garotos o desgastava muito, porque em seu passado dublara filmes para crianças e adolescentes; mas o que ele via à sua frente não eram crianças, eram demônios cuspindo o fogo do inferno; o fogo verde de um inferno opressivo.

Enquanto Frodo enfrentava crianças armadas até os dentes, Funil encontrava Baiacu.

– Federal, vim aqui pra resolver com você o domínio da boca. Tenho uma proposta: eu fico com essa boca e suspendo os arregos. O que acha? Um pelo outro. – Falou assertivo Funil para Baiacu.

À espera de uma resposta, Funil mandou seus homens esperarem fora do barraco de Anette, que fora morta ao oferecer um “cafezinho” aos visitantes.

– Responde, Baiacu! O negócio dá pra ser fechado aqui e fica tudo na paz, você já viu o meu poder aí fora, tô tacando o terror com os meus subordinados. Quero a boca, ela vai ser minha, você fica com todas as outras.

Baiacu ainda não falara nada, quando seu rádio tocou e informaram a ele que estava rolando guerra no Inferno Verde. Ao saber, abaixou o rosto em direção ao chão e manteve seu silêncio.

Frodo estava abrigado em um monte de gelo baiano, o que lhe garantia alguma proteção e direcionava seu ataque para frente; quando olhou para trás no intuito de dar ordens aos dois que estavam com ele, viu que estavam mortos e, a partir dali sabia que seu tempo estava esgotado na ampulheta da vida: estava sobre uma árvore um garoto e disparou em seu pescoço.

Num segundo uma vida, num segundo a magia do cinema dublado para o entendimento do povo brasileiro estava à beira da morte.

_ Responde seu bandido de merda! – Gritou tomado pela ansiosidade Funil.

– Quer resposta, cu azul do inferno? – Baiacu recebe a notícia de Frodo; puxa de sua arma e solta o ferro, a rajada do Baiacu, que vara o corpo do corrupto terminando por estourar sua cabeça.

No entanto, como um reflexo, enquanto era alvejado, Funil puxa sua Beretta e dispara no baço do traficante.

Recolhidos na mesma ambulância, Frodo e Baiacu estavam lado a lado até chegarem ao Getúlio Vargas para o socorro.

Trocam olhares e expressam recriminações intermináveis, cada um entendendo o mundo de sua forma: da busca da justiça e da busca da afirmação ao mundo do consumo; da dedicação e da luta. Ali estavam dois homens entranhadamente diferentes, mas ali naquelas condições os dois estavam igualados pela dor e expectativa da morte.

– Eu mantei teu chefe, seu merda. – Estertorou Baiacu arrastando a voz o máximo que pode, como a querer sentir o prazer da derrota do seu inimigo ao lado. – Ele armou essa merda de operação só pra tomar uma das minhas bocas papa ele! Corrupto escroto.

Ouvindo que seu chefe estava morto e quais eram as suas intenções ao pôr em perigo a vida de muitos de seus subordinados apenas para lucrar com o tráfico, Frodo virou o rosto em direção ao traficante, abriu ao máximo o sorriso que sua condição lhe permitia e morreu.