Um telefonema inesperado numa manhã qualquer é o germe da entrevista com Boaventura de Sousa Santos. A voz do outro lado da linha nos antecipa que o professor de Sociologia do Direito, da Universidade Yale, uma das mentes mais brilhantes do assunto, em breve, visitaria o País Basco. O sim é evidente, dadas a relevância do personagem e a ocasião, única, para compartilhar uma conversa com ele.
As semanas se passaram e Boaventura de Sousa Santos chegou a San Sebastián, por intermédio da Emaús Fundação Social, para um encontro entre movimentos sociais e universidade, com a metodologia da Universidade Popular dos Movimentos Sociais – UPMS, uma fórmula baseada na aproximação dos saberes acadêmicos e populares. Ele acredita firmemente no saber das ruas, da vida.
Crítico ao capitalismo e o imperialismo, demonstra preocupação com a democracia atual, que sucumbe aos ditames do mercado. Um modelo “insuficiente” que considera urgente repensar e refundar. E nessa transição que atravessamos emerge a extrema-direita, “uma das maiores ameaças” do momento. Também apela à necessidade de democratizar outros espaços da vida social, como a família e o trabalho.
De pensamento pausado e oratória vivaz, o gravador faz o resto diante desse abismo chamado Boaventura de Sousa Santos. Uma luz entre tanto ruído.
Entrevista de Oihane Larretxea (no Naiz, com tradução do IHU) a Boaventura de Sousa Santos (*):
Gostaria de começar fazendo referência ao Fórum Social Mundial, um evento que você ajudou a iluminar e ao qual pertence desde a sua criação, em 2001. Muito tempo se passou e muitas coisas mudaram. Atualmente, o que um Fórum levanta que não nos apontava antes?
Houve um encontro por telefone entre os de Davos e nós. E havia uma alternativa. Por um lado, os capitalistas, os empresários mundiais que estavam organizados em Davos. Por outro, nós, que resistíamos às consequências sociais e econômicas desse tipo de desenvolvimento.
Duas décadas depois, podemos dizer que as coisas pioraram muito. O Fórum Social Mundial ajudou a criar uma consciência mundial de que a resistência e outro mundo são possíveis. E hoje é cada vez mais urgente. As ameaças são muito mais graves agora, temos a desigualdade social que piorou, temos um colapso ecológico e a ideia de uma catástrofe iminente com os eventos climáticos extremos e, por outro lado, a ideia presente de uma III Guerra Mundial.
Teria sido necessária uma consciência mais política do Fórum Social Mundial. Nosso objetivo legítimo, então, era congregar o máximo de pessoas, mas sem querer tomar decisões políticas muito duras que pudessem excluir. No entanto, com o tempo, o Fórum se tornou pouco impactante politicamente por seu cuidado em não querer excluir e, hoje, realmente, está prestes a desaparecer.
Considero que é possível reconstruir ou criar outra agência, que não seja mundial, mas política, que tentará lutar contra essas três grandes ameaças, porque vemos que as democracias, de forma alguma, estão contendo-as. E há uma quarta ameaça que na Europa vemos mais dramaticamente: a ascensão da extrema-direita. Existem muitas forças políticas que estão se valendo da democracia para destruí-la. Servem-se dela para ser eleitos, mas depois, quando são promovidos, não a exercem, mas a destroem.
“Após a Segunda Guerra Mundial, tivemos a ilusão de que a democracia poderia controlar o capitalismo”
A democracia e o capitalismo são compatíveis?
Após a Segunda Guerra Mundial, tivemos uma ilusão: que a democracia poderia controlar o capitalismo, e a isso chamamos de social-democracia. Ou seja, uma democracia com direitos sociais. Com a entrada dos trabalhadores, das mulheres, depois de todos os direitos sociais, econômicos e ecológicos, culturais … tudo isso indicava que a democracia pode, poderia, de alguma forma, controlar o capitalismo. Isto foi uma coisa que durou cerca de 30 anos.
E o que aconteceu, então?
Quando cai o Muro de Berlim, em 1989, ao mesmo tempo temos uma grande agressão: a resistência de um movimento de capitalismo mais agressivo e selvagem porque não gosta dos direitos sociais e econômicos, não gosta do Estado. A social-democracia forçava o Estado a ter um papel muito forte. Imediatamente, o neoliberalismo dirá que é necessário privatizar, liberalizar, que é necessário flexibilizar, ou seja, precarizar o trabalho … Houve um regime de desindustrialização de todo o norte, pois as grandes empresas foram para a Índia, foram para a China… onde os salários eram mais baratos, por isso nossas roupas são mais baratas.
Anos depois, veremos que é um modelo mundial, e esse modelo é o que está estabelecido hoje com as seguintes características: a democracia é tolerável na medida em que é funcional ao capitalismo; ou seja, serve-se das exigências dos investidores de capital. Por exemplo, existem os acordos internacionais das corporações com nossos países. Elas podem processar nossos Estados nos tribunais, mas os Estados não podem processar as empresas nos mesmos tribunais.
“Hoje é o capitalismo que controla a democracia. O capitalismo é antidemocrático.”
Uma relação que não é de igual para igual.
Absolutamente. De fato, hoje é o capitalismo que controla a democracia. E como o capitalismo é antidemocrático, tem uma expressão política que se chama extrema-direita. E o que é a extrema-direita? O ataque do neoliberalismo que, depois de atacar os direitos sociais, já não basta e quer atacar os direitos políticos e civis. Por isso, quer atacar o nó da democracia liberal. E por isso o Vox, em suas reuniões, pode cantar volver al 36.
O neoliberalismo não gosta da democracia porque é uma possibilidade de resistência, é a possibilidade de contradizer. A democracia nunca foi compatível com o capitalismo. Se queremos falar em conceito ideal da democracia, simplesmente, trata-se de um governo das maiorias em benefício das maiorias.
Acontece que estamos do lado contrário. Hoje, as democracias, no mundo em geral, são governos de minorias em benefício de minorias. É um disfarce do que deveria ser o ideário da democracia. E a expressão política do neoliberalismo é exatamente a extrema-direita, que nasce e cresce exatamente por isso.
Dormimos no caminho?
Sim. A esquerda e os partidos democráticos, que hoje são partidos de esquerda, que lutavam por uma alternativa pararam de lutar por isso. Os partidos socialistas, por exemplo, que se fazem chamar socialistas, pararam de pensar que o socialismo é uma alternativa. Isto foi chamado de Terceira Via de Tony Blair, e mais tarde foi aceito por todos.
“As alternativas existem, os movimentos e as organizações sociais do mundo continuam lutando por uma alternativa. Acontece que ela não se traduz ao nível dos partidos políticos, e este é o problema que temos hoje.”
O que os socialistas vão construir é um capitalismo mais suave, um pouco menos agressivo, mas capitalismo, ao final. E como não há alternativa, a política se transformou em um espetáculo onde só há ideologias, não há ideias. Vivemos em um mundo sem ideias. E por que não há alternativas? Porque não há política verdadeira. No entanto, as alternativas existem, os movimentos sociais e as organizações sociais do mundo continuam lutando por uma alternativa. Acontece que ela não se traduz ao nível dos partidos políticos, e este é o problema que temos hoje.
Existe um grande teórico do capitalismo, muito hostil ao socialismo, chamado Joseph Schumpeter, que dizia que não são os seus inimigos que o capitalismo tem que temer, mas a si mesmo, porque o capitalismo sem uma alternativa se autodestrói em sua ânsia de crescimento infinito, de ganância infinita. Sem falar de nossos corpos, de academia em academia, porque o capitalismo os transformou em mercadorias. Você tem que se preparar bem, ter uma determinada aparência física, e se você é um pouco mais velho ou velha, não é mais contratado…
Estamos em um momento muito difícil de transição histórica. Na Europa, o problema é sério, mas você não consegue imaginar como é na África ou na Ásia. Realmente, o capitalismo tem essa característica de ser global, mas desigual entre alguns países e outros, embora as tendências globais sejam totais.
Qual o papel dos movimentos sociais e civis nesse controle da democracia?
Eles são, para mim, a grande fonte da possibilidade de uma mudança. Não acredito que os partidos possam ser a chave, mas é preciso superar um duplo equívoco: o de que os partidos são, por essência, quase antimovimento, e os movimentos, por reação, têm uma atitude antipartido.
Muitos movimentos lutam na vida social por suas causas, mas não querem ter algo a ver com os partidos porque, muitas vezes, quando trabalharam com eles, foram traídos, usados. Chegaram à conclusão de que os partidos gostam dos movimentos um mês antes das eleições, depois, esquecem-se deles por quatro anos. Por isso, tornaram-se antipolítica, e isso cria um problema.
Dou como exemplo o caso da Itália, que eu conheço bem. Existe uma sociedade civil muito ativa pelos direitos sociais, mas foi eleita a pior direita que você pode imaginar. Berlusconi, Salvini e Meloni, que combinação trágica! Isso mostra, digamos, a discrepância, a fratura entre a política partidária e a política que está no tecido social.
É possível democratizar a democracia?
Obviamente, a democracia precisa ser fortalecida, e há muitas pessoas que compartilham essa afirmação e esta crítica que eu faço à democracia, da forma como existe, para sustentar que o melhor é uma ditadura. “A democracia não serve, vamos para a autocracia”. E nós já a temos, aqui, na Europa. Está na Polônia e na Hungria. E talvez não pare por aí.
“A democracia corre o risco de morrer democraticamente porque a própria democracia está elegendo antidemocratas para o poder.”
Essa é a atitude da direita e da extrema-direita. Às vezes, parece que coincidem na denúncia da democracia, mas não coincidem na solução que propomos. Não é que a democracia seja ruim, é pouca, é insuficiente. A democracia corre o risco de morrer democraticamente porque a própria democracia está elegendo antidemocratas para o poder.
Queremos fortalecê-la, não há dúvida. Mas, como? Em primeiro lugar, resgatemos a ideia de democracia dos gregos, que é simplesmente o espaço público. É preciso democratizar as relações sociais e mais espaços da vida social, como a família. Não se trata de votar no que se come ou se janta, mas, sim, de outra maneira de compartilhar as tarefas e responsabilidades, de democratizar a própria família; criar uma cultura democrática e não uma cultura agressiva de homens e mulheres, de brancos e negros, de padrões e operários. Tudo isso é antidemocrático. Acabar com as relações de poder e que elas sejam iguais basicamente em todos os níveis e esferas da vida.
“No momento, os partidos são dominados por oligarquias partidárias”
E a democracia política que temos como sistema, a democracia liberal, também precisa se transformar. Penso que a vida dos partidos que temos hoje e a concepção deles está condenada. Da forma como estão, os partidos não têm viabilidade no futuro. Precisam praticar o que é chamado de democracia participativa: que os militantes, os simpatizantes de um partido possam realmente escolher os candidatos, discutir o programa … No momento, os partidos são dominados por oligarquias partidárias que controlam a agenda, escolhem os candidatos, propõem o que querem e, muitas vezes, estão a serviço de interesses econômicos poderosos.
“Não é possível imaginar uma sociedade capitalista que não seja racista ou que não seja sexista.”
É possível falar em uma sociedade pós-colonial, pós-patriarcal e pós-capitalista
Minha amiga, esse é o meu trabalho, escrevi livros e livros com a ideia de que as sociedades não são simplesmente capitalistas, também são colonialistas, racistas e são sexistas e patriarcais, e que um aspecto não faz desaparecer o outro. Ou seja, não é possível imaginar uma sociedade capitalista que não seja racista ou que não seja sexista. É claro que as feministas podem alcançar algum êxito aqui ou ali, ou que os movimentos de migrantes podem ter vitórias locais, mas a sociedade continuará, em geral, sendo sexista. Talvez não esta, mas a do lado.
Com todas as vitórias do movimento feminista, por que ainda existem feminicídios e, além disso, aumentam? Por que a violência contra as mulheres continua crescendo em todo o mundo? E não apenas no chamado terceiro mundo. Não, aqui, na Europa. Porque o capitalismo cria relações de concorrência que repercutem no trabalho, na vida social, nas diferenças étnico-raciais, territoriais e de gênero.
Uma solução de esperança é que se inicie uma transição, mesmo sabendo que as transições históricas são longas. O capitalismo não vai durar para sempre. Durante muito tempo, no século XX, acreditávamos que era o socialismo que poderia ter as vantagens, mas não as desvantagens do capitalismo, que seria superior. O socialismo que foi realizado, de fato, no mundo soviético, fracassou. Isso não quer dizer que o socialismo tenha fracassado, foi uma versão dele que fracassou, compreende?
“O neoliberalismo coloca você permanentemente em crise.”
É preciso lutar e iniciar uma transição, embora isso seja cada vez mais difícil, porque o neoliberalismo não quer que se fale a esse respeito de forma alguma. E como faz isso? De uma maneira muito inteligente: coloca você permanentemente em crise. Se você observar os governos dos Estados, todos estão em crise financeira permanente.
“O Estado financia a educação pública e a saúde por meio de empréstimos, mas os empréstimos vão para o mercado internacional e, nesse mercado, o Estado não tem soberania, está à mercê do capital financeiro global.”
Antes, os Estados eram financiados com os impostos, agora, não é possível um financiamento assim porque houve uma luta neoliberal contra os impostos. Quanto mais rico você é, menos impostos paga. Antes, era o contrário. O Estado financia a educação pública e a saúde por meio de empréstimos, mas os empréstimos vão para o mercado internacional e, nesse mercado, o Estado não tem soberania. É um devedor como outro e está à mercê do capital financeiro global.
A crise foi inventada para que você não pense em alternativas. Você não pode pensar em alternativas quando tem família e não sabe se pode alimentar os seus filhos amanhã. Não pensará no socialismo, pensará em como poderá criar seus filhos e ponto. É isso que o neoliberalismo está fazendo: que você não pense no futuro, nem em alternativas, apenas no imediato. Isso torna muito difícil a possível transição.
“O problema dessa transição é que fazemos parte do problema. Por isso, a transição vai contra nós mesmos.”
Acredita que existe algo mais político do que a vida cotidiana?
Claro, o político começa em si mesmo! Um dos grandes exemplos que temos hoje é o movimento feminista, quando afirma que o pessoal é político. “Meu corpo é político, é agredido por homens”. Para mim, isso faz parte da política, obviamente. O problema dessa transição que estamos falando é que fazemos parte do problema. Por isso, a transição vai contra nós mesmos.
“É necessário mais transporte público gratuito, que as pessoas se acostumem a ter mais limites de consumo… e não trabalhar cinco, seis dias por semana, quando não quatro.”
As famílias de classe média na Europa precisam ter dois carros e, agora, é dito que a transição energética passa por possuir carros elétricos. E não se trata disso, porque os carros elétricos exigem lítio, que é um mineral cada vez mais raro e que criará cada vez mais tensões no mundo e nos países que possuem lítio. O que se faz necessário é mais transporte público gratuito e que as pessoas se acostumem a ter mais limites de consumo… E ter mais estabilidade no trabalho, e não trabalhar cinco, seis dias por semana, quando não quatro. Ou seja, temos que nos cuidar mais e lutar por condições, mas temos que colaborar na medida em que são nossos próprios hábitos. Somos parte do problema.
Compreendo que você se define como um ‘otimista trágico’.
Temos que ter medo porque as condições em que vivemos convidam para isso, mas também esperança. Acontecem pequenas vitórias aqui e ali que a alimentam. Este é o otimismo trágico. É preciso pensar que sempre existe uma alternativa, mesmo que seja complicada. Não é um otimismo louco, mas nunca serei pessimista, porque isso seria trair as organizações que, em campo, estão lutando por outras vias.
(*) Boaventura de Sousa Santos é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça. Autor reconhecido e premiado em diversas partes do mundo, tem escrito e publicado extensivamente nas áreas de sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, sobre movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado e direitos humanos, além de fazer trabalho de campo em Portugal, no Brasil, na Colômbia, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde, na Bolívia e no Equador.