Por Carlos Matos Gomes (*)
A globalização correu mal, voltemos aos nossos redis! — Este é o ponto da situação da ordem mundial. A globalização é uma das causas da guerra na Ucrânia e a sua desmontagem uma das consequências. O puzzle de um planisfério com as peças ajustadas e ligadas desfez-se. Esse puzzle finou-se. As peças estão a ajustar-se e a constituir outros grupos. Começa a surgir um pensamento que reconhece a necessidade de derrubar os velhos ícones e pensar como sair da armadilha da globalização. É o caso de uma entrevista de um antigo banqueiro do Goldman Sachs à revista liberal francesa L’ Express.
O neoliberalismo resultou do processo de evolução do globalismo. As novas tecnologias e a implosão da União Soviética criaram no Ocidente ilusões sobre a possibilidade de êxito do imperialismo como fase superior do capitalismo, a tese de Lenine, de consolidação de um imperialismo global e mundial com uma moeda, um exército, uma língua, um centro a dominar uma constelação de colónias.
O neoliberalismo teve uma época primordial, a de Frederich HayecK, da Escola Austríaca do «Individualismo e Ordem Económica», seguida da operação de sucesso da escola de Chicago, de Milton Friedman e os Chicago Boys, que utilizou o Chile de Pinochet como laboratório, tendo Ronald Reagan e Margareth Tatcher como promotores políticos e o papa João Paulo II como caucionador moral. A época de glória!
O neoliberalismo como filosofia assenta no individualismo — não existe sociedade, mas indivíduos — a conhecida definição de Margareth Tatcher; nos resultados financeiros como único elemento de avaliação das atividades económicos — o lucro a todo o custo e sem qualquer requisito de ética (e até de senso); e na globalização — o universo como um mercado.
O neoliberalismo produziu um conceito: O fim da História! (titulo de uma obra de Fukuyama). A leitura preconceituosa da História decretou a morte do socialismo com a implosão da União Soviética, que afinal nada mais era do que o regime de uma superpotência militar concorrente dos EUA, e o mundo neoliberal descobriu o seu casal bíblico resgatado da maldade do socialismo: Reagan e Tatcher, que substituíram não já Adão e Eva, mas Noé e a mulher Noéma, os justos da sua geração que iriam refundar a humanidade após o dilúvio. Tratava-se de mais uma versão do milenarismo que é recorrente na História ocidental e no islamismo.
A globalização, com a admissão da China na Organização Mundial do Comércio (2001), passou a constituir a resposta para todas as questões. Com a globalização não haveria mais questões. As empresas de trabalho intensivo europeias e americanas deslocalizaram-se para espaços de baixos custos de produção (China e Ásia), conseguidos através do trabalho quase-escravo, de desrespeito absoluto por direitos humanos e de desprezo por consequências ambientais.
O neoliberalismo, na realidade um neoimperalismo, assentou em três fatores: globalização (o planeta como um mercado e os humanos como consumidores); domínio das fontes de energia e de matérias-primas através de um exército imperial (o dos Estados Unidos); a imposição de uma moeda de troca universal, o dólar, com um valor determinado pelo seu emissor. Era o Fim da História! Uma gigantesca operação de manipulação das consciências foi desenvolvida para impingir a nova verdade.
As redes de televisão, os satélites, a publicidade, as plataformas digitais, encarregaram-se de difundir o que corresponde a duas das mais determinantes mensagens do pensamento ocidental, uma vinda do Antigo Testamento: o discurso de Moisés aos judeus depois de ter recebido a tábua dos mandamentos no Monte Sinai, e outra já do Novo Testamento cristão, do Sermão da Montanha, de Cristo aos “simples e pobres de espirito.” Um Deus único, uma lei única, um paraíso para os crentes e obedientes: os mansos do sermão.
O picante da proclamação do filósofo Francis Fukuyama é que ele pode ter tido razão quanto ao fim da História, mas não pela causa que aponta: a humanidade haver chegado ao ponto em que, como as águas de um longo rio após um percurso acidentado, as suas tentativas para encontrar a satisfação haverem desaguado no lago final das democracias liberais, mas sim porque a humanidade se encarregou de destruir o frágil equilíbrio dos quatros elementos definidos pelos antigos gregos — a Terra, a Água, o Fogo e o Ar — que lhe permitia viver. O fim da História por suicídio da humanidade! (E andam uns excitados a discutir a eutanásia e o direito ao aborto, dois direitos individuais!)
Na realidade basta escutar um homem tão sereno, crente na bondade humana e na providência divina como António Guterres, o secretário-geral da ONU, sobre a reduzida esperança de vida humana no planeta como resultado da sobrexploração dos recursos para obtenção de lucros custe o que custar. O fim da História pode ser o fim da humanidade como a conhecemos, morta às mãos dos seus seres, de fome, de sede, queimados numa explosão nuclear ou sufocados pela poluição. Mortos às mãos dos que entendem que cada individuo apenas tem como objetivo a sua riqueza e está liberto de responsabilidades sociais. Salve-se quem puder! Os mais fortes vencerão, a lógica suicida do neoliberalismo.
Perante a evidência da catástrofe, os sacerdotes neoliberais têm vindo a apresentar duas linhas de fuga para os seus clientes privados. Uma representada por Elon Musk e os neocons americanos, que recorrem às possibilidades tecnológicas para garantir a sua sobrevivência durante o inevitável e previsível tempo do caos (que eles causaram), seja construindo abrigos com vida autónoma, ou de fuga para outros planetas. A outra saída defendida pelos liberais europeus mais esclarecidos, que defendem uma “desmundialização” ou “desglobalização”. Reconhecem que “Isto deu errado!”
É o ponto de vista de Thomas Friedberger, antigo diretor do banco Goldman Sachs, a instituição que tem empregado a elite dos cardeais do neoliberalismo. Thomas Friedberger concedeu uma entrevista ao semanário francês liberal «L’ Express» (10/12/22) onde afirma: «É necessário refundar um capitalismo mundializado que até aqui tem suscitado demasiadas angústias e sofrimentos.»
A esta refundação ele deu o nome de “remundialização”, que tem já um novo Graal com uma apelativa sigla promocional: “ESG” (preocupações ambientais — Environement, Sociais e de bom governo — Governance). Para que os especuladores das oligarquias não se assustem, o antigo banqueiro afirma que estas novas preocupações não visam somente preservar o ambiente e promover o bem-estar humano, a sua finalidade é assegurar os melhores retornos financeiros a longo prazo num mundo inflacionista e tendencialmente “desmundializado”.
Estamos, pois, já muito afastados da doutrina predadora de Milton Friedman (Prémio Nobel da Economia 1976), para quem a “responsabilidade social” era um custo e tinha um impacto negativo nos resultados das sacrossantas empresas. A História não acabou e as preocupações com o ambiente e as reações sociais passaram a ser um fator importante nas decisões dos investidores.
A nova vaga de neoliberais europeus, aqui representada por Thomas Friedberger, chegou finalmente à conclusão de que a busca do crescimento infinito se tornou disfuncional a ponto de ameaçar a vida humana no planeta. «Este modelo — esta doutrina — degradou a biodiversidade, o clima, acentuou desigualdades e criou bolhas de mau emprego do capital (crise do subprime)». Ele prevê que os próximos 20 anos serão de “desglobalização”, de um processo semelhante ao que ocorreu na Europa das sociedades mais desenvolvidas com a Reforma Protestante do século XVI para salvar o essencial de uma religião ao serviço da luxúria dos papas de Roma.
«Critérios extra-financeiros serão determinantes na decisão de performances financeiras. Este novo modelo de capitalismo passa pela criação de ecossistemas localizados, da recolocação da produção de bens e serviços próximos do consumidor, da tributação nos países onde as empresas exercem as suas atividades. » Garante o antigo banqueiro e ainda: «A imposição do PIB como único indicador económico e de desenvolvimento é apenas um truque que permite ao atual sistema de ditadura do lucro sem qualquer preocupação social se perpetuar.»
Será, ao que parece, num mundo “desglobalizado” que as próximas gerações vão viver. Num mundo com vários polos de poder, várias moedas de troca, com múltiplos conflitos, desregulado, atomizado, com o reforço de nacionalismos, de muros e barreiras, de deliberadas incompatibilidades tecnológicas. O Ocidente deu o pontapé de saída para esta nova era. E deu-o deliberada e conscientemente. “Isto” não começou com a traiçoeira invasão da Ucrânia pela Rússia!
A guerra na Ucrânia, independentemente do que for acordado para o fim das ações militares, marcou a inevitabilidade deste novo modelo de organização planetária, de vários blocos em tensão e competição. Os tristes líderes da União Europeia e os mordomos ingleses optaram por fazer do continente Europeu um beco americano, entre os velhos e novos bairros que se estão a organizar no planeta, levantando muros dentro dos quais cada grupo procurará abrigo.
(*) Carlos Matos Gomes é um dos mais conceituados militares e historiadores da guerra colonial. Nasceu em 1946. A sua carreira militar iniciou-se em 1963. Cumpriu comissões durante a guerra colonial em Moçambique, em Angola e na Guiné, nas tropas especiais Comandos. Na Guiné foi um dos fundadores do Movimento dos Capitães e participou na primeira Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA). Militar no ativo até 2003, é atualmente Coronel na situação de reserva. Desenvolveu também uma carreira literária, com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz.