CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

O rico precisa ser um gênio para avaliar o que é a pobreza”

(Charles Péguy).

Inclemente o calor abrasava o rosto de Dafne Star, com aquela peruca florida ao estilo samambaia Maria Betânia. Sentia, portanto, que só faltava entrar em autocombustão. Experimenta na pele o nome de seu Município, Queimados, Região Metropolitana do Rio: definitivamente ela incorpora de tal forma o nome de seu lugar de morada que se entende como uma das fundadoras de lá. Dafne, uma queimada e resistente prostituta, conhecida dos prefeitos de esquerda-direita-direita-esquerda; passando por todas as autoridades, inclusive já ajoelhou para ser “ungida” pelo cajado de Epaminondas, o pastor-chefe da Igreja do Poço Fundo do Jacó – filial de Nova Iguaçu.

Por fim, Dafne era o pronto socorro de aflitos cidadãos (“cidadões” como nos ensina o grande Juiz Mouro – agora em escala nacional), cuidados que prestava pela simplória taxa de cinquenta “reauls” (assim preleciona o grande senador campeão da Copa do Mundo). A verdade é que era a mulher mais linda do mundo, reconhecida por Epaminondas em uma epifania pública de bênçãos para a purificação do furor uterino em Queimados.

Assim, imponente por sobre o teto do palco de concreto localizado na Praça dos Eucaliptos, o homem enviado de Deus (sabe-se lá qual seria esse Deus da unção do furor uterino); ergue as mãos crispadas como um contraforte a apoiar seu rosto de pedra; imposta a voz como a de um falso velho rouco com tonalidades de pigarro de nicotina para parecer um ancião da Torá. Por fim, em meio às orações, estica a língua como uma criança pirracenta e faz os movimentos de “linguinha” serpenteando para cima e para baixo como nos ensinaram os castos Bacanais da Roma pagã.

Mal entendeu os problemas que acarretaria a ela aquela voz profética fanhosa ostentando a Messalina como a maior das beldades do mundo, pois era da vontade do Senhor (qual Senhor que elege mulheres como um concurso de Miss? Difícil precisar, mas era o Senhor de Epaminondas): assim o fez e assim foi consagrada a beleza de Dafne Star.

Acontece que o culto da Praça dos Eucaliptos era de ordem pública, estabelecia a força de domínio sobre corações e mentes da Igreja do Poço Fundo do Jacó e mantinha aquela empresa celeste como instituição oficial da Administração pública local – fixando a coleta de verbas que seriam “alocadas” às Alturas: motivo por que a prefeita Zenaide Venere Curió se corroeu de inveja, posto que sempre fora dito por todo o staff de servidores públicos ser ela a mais bela mulher do mundo.

Estava a autoridade consumida de inveja:

– Preciso falar com Sinval Matamosca para dar cabo dessa vadia! Cortar-lhe a cara em quatro partes ou jogá-la em algum poço no meio da mata da área rural; acontece que ninguém pode ser mais bela do que eu! Eu sou a prefeita e fui Miss Nilópolis ’96. – Suspira profundo para se deleitar com a imagem de Sinval rasgando Dafne: – Por que Epaminondas? Por que estraçalhar o meu reinado por uma puta de rua? Eu sou a beldade ungida e ninguém me rouba essa vontade do Senhor… Ninguém!

Terminado o culto da beleza celeste e do combate ao furor uterino, todos rapidamente se dispersam voltando à rotina da barra de rolagem de seus celulares; assuntos pesquisados: as orações mais pop do momento, mulheres nuas deflagradas em vídeos de submissão e degradação sexual à feminilidade. Um giro de noventa graus e todos passam a estar ilhados.

– Tua Excremência, a Prefeita, – cumprimenta Sinval após ser acercado por Zenaide – a que devo “as honra” (forma gramatical conforme professa o presidente cara de frango fake)?

– O que você acha dessa minha pintinha, essa aqui abaixo do meu lábio, aqui perto do queixo? – Ela já destruíra muitos casamentos consolidados com aquela pintinha, era seu carro chefe, foi a paulada que desacordou Bertoldo, seu marido belo e rico, que só recobrou os sentidos no Motel Chandon da Avenida Brasil.

– Tu é bunita pra cacete, por que pergunta? Tás querendo uma encoxada aqui do velho matador ou quer desconto especial na coca?

– Que romântico você é, lembra até o Roberto Carlos. Não sua besta humana! Quero que corte a cara daquela vaca da Dafne!

– Qué isso Sua Excremência? Mas que violência; “falo pá tu” (assim foi ensinado pelo general da asfixia manauara) “qui só ilimino cum mutivu jurstu”(ainda pelo aprendizado do alto escalão asfixiante). Não é do ‘grado de Deus qui eu mate “grartiutamente”! – Dizia naquela fala estenográfica com ar compungido, seguidor rígido que era de um estrito e macabro livro de ética moral.

– O que foi essa última palavra que você disse, Sinval? Não deu p’ra entender, repete.

– Grartiutamente… Sem motivo! – Explicou por fim.

Além de usurpar meu status de bênção da beleza celeste ainda essa puta amolece o coração do meu melhor servidor do setor de eliminação pública? ” – Pensava e remoía ainda mais seu despeito por Dafne.

Alterada e abre-alas como um Bulldozer Zenaide Venere pega Sinval pela gola de sua camisa regata, puxa-o até compartilharem a mesma respiração, e entredentes ruge:

– Você quer que eu te jogue no salão do Touro? Quer conhecer o ódio que meu filho tem do povão aqui de Queimados? Se quiser peço a Epaminondas abrir as portas para a sua desgraça! Você sabe que Bertoldo e eu fomos amaldiçoados pelas mais belas orações da Igreja do Poço Fundo do Jacó e Touro nasceu forte e lustroso, bem torneado, mas com cara de boi. E por achar injusto ter pago pelas traições de Bertoldo e as minhas também, Touro perdeu a fé na Igreja e passou a trucidar tudo o que aparecia à sua frente. – Arreganhando os dentes em um ricto maledicente continuou: – Quer ser esquartejado por Touro? Quer sentir a ira da minha família? Quer estar frente-à-frente com o fruto da injustiça?

– Deixa cumigu, sua Excremência! Nunca fui com as fuça daquela quenga mesmo! – Tornou-se subitamente bastante flexível frente ao seu código de honra frente a tais considerações feitas pela prefeita.

Alta madrugada – com o vapor barato comendo solto e traduzindo o lugar como um apodo: sim, o ar queima, – e Sinval vai ao encontro de Dafne; busca-a nas vielas traçadas ao longo da Rua Nádia.

Procura a beldade divina na Rua do Perdeu, ode imediatamente perde seu relógio “Romex” e seu dente canino esquerdo de ouro sem sequer perceber… “Oras” – pensa Sinval – “essa rua do Perdeu não muda nunca, a gente perde inté nossas cuecas aqui! ”

Esgueira por todos os cantos escuros e obscuros de Queimados; adentra motéis; botequins e terrenos baldios atrás de sua vítima.

Avista a presa grimpado em uma árvore ressequida, mas ainda viva, ao lado da Avenida do Vá com Deus (lugar de sortilégios e de desovas, por isso o nome). Dafne está terminando seus afazeres pubianos em Aszuceno, o mecânico monocelho e com traços de burrice congênita, um tipo Neumann da antiga revista Mad.

Matamosca dependurado na árvore que está cedendo fita o rosto, os olhos avermelhados pela “semente de Aszuceno” que ainda escorriam em Dafne e, com isso, o velho matador se apaixonou. Tomado de um sentimento avassalador vinha em sua mente a bela canção Cavalgada que, ao lado de Jesus Cristo eu estou aqui, forma o grande sucesso de Roberto Carlos.

Como transfiguração mundana, as faces de Dafne Star brilhavam coruscantes aos olhos de Sinval, e daquela gosma espessa gotejando pulsava como a vida, como a concepção sagrada de toda a Humanidade.

– Mas eu que sempre trouxe a morte agora estou morto de amores! – Filosofou o assassino da Prefeitura.

Correu para sua musa, apanhando-a pelos braços como galã de novela dos oito; sacou de um lenço que trazia no bolso da bermuda florida; lavou o rosto da amada e beijou como nunca o tinha feito na vida…. Beijou como a profundidade da morte: não havia mais diferença entre amor e morte, alma e carnalidade.

– O quê? Como? Nunca senti tanta euforia, tanta entrega em minha vida! – Disse Dafne estupefata. – Você é tão homem, tão forte e beija como se estivesse à beira do caixão. Eu…. Beija mais!

E foi o que fez o velho assassino mesmo sabendo que seria uma semana depois encerrado no labiríntico salão do Touro.