CRÔNICA
Por Guilherme Maia
Estava bêbado como um estúpido, subia a escada espiral com lances sucessivos que se estreitavam a cada degrau. Durval, meu cliente estratégico, ou melhor, meu cliente Caixa Econômica, tinha me convidado para conhecer a nova casa de entretenimento pubiano da Carioca. O ar de névoa de gelo seco era sufocante e a quantidade de prostitutas e homens naquele cubículo era de matar um claustrofóbico.
Devo esclarecer: Durval tinha se especializado em cair dentro de agências do banco público para, com a ajuda do Desembargador Pafúncio, ganharmos indenizações – eram caídas homéricas, trambolhões nas escadas, escorregões nos sanitários, cabeçadas nas portas giratórias – um gênio esse cara!
Ele era minha galinha dos ovos de ouro. Suas quedas eram os objetos recorrentes de minhas demandas judiciais e, assim que distribuídas, comunicávamos ao nosso desembargador que, por sua vez, intimidava o juiz natural da causa a dar procedência. E que essa procedência não fosse a da tabela interna do Tribunal, que era por volta de mil fecais (perdão: reais) por cabeça: o valor de cada indenização de nossos processos era o que a justiça mandava pagar para os abençoados (ricos, empresários, famosos e megatraficantes). Recebíamos sempre trezentos mil reais por ação, divididos na ordem de 50% para o desembargador; 30% para o juiz da causa; 15% para mim e o restante para o gênio das quedas.
Iniciei minha carreira de advogado há trinta anos atrás: pensava que era uma forma de corrigir os erros da sociedade, aprendi que esse ofício tão-somente é a depressão! É a forma mais direita de se deparar frente a frente com toda a podridão que o Estado brasileiro impõe aos seus cidadãos. Minha profissão não era mais respeitada, simplesmente porque ela só funciona em países de democracia consolidada: o que, por óbvio, não é o caso do Salvelindo Auriverde Pendão da Esperança.
Meu nome é Édipo e sou um advogado brasileiro.
Naquela sexta-feira, recebêramos nossa pequena fortuna e Durval me chamou para conhecer o Trepada Azul, nova boate da rua da Carioca; tinham lhe falado que era um sucesso, com putas lindas e de todas as cores e jeitos possíveis. Que havia uma chamada Valeusca que até recitava versos de Fernando Pessoa para clientes intelectuais alcançarem seu clímax – ela usava óculos de lentes grossíssimas e caminhava nua com aquela naturalidade de Salomé de olho na cabeça de seu João Batista.
Entramos no puteiro quando já tínhamos mamado uma garrafa de uísque inteira entremeada a incontáveis latinhas de cerveja. Nossa condição era patética, e, como estava dizendo, aquela escada caracol, que terminava seus giros a cada andar, levava a uma recepcionista, uma mulher nua e suada que tentava fisgar o seu homem, ou melhor, sua grana. Essas mulheres estavam suando como se estivessem em uma sauna e, de fato, se tratava disso, posto que não havia refrigeração no prédio e o calor era saariano, lembrando o sol que nos fritava nas ruas.
Sentamos, eu e Durval, em cadeiras de plástico da Brahma, vermelhas com o diabo. A minha estava cedendo de um pé, mas aguentaria meu peso. À nossa frente um renque de armários, desses de fórmica, com portas de um metro e setenta e uma profundidade suficiente para duas pessoas se amoldarem. Foi quando vi Sayonara, uma negra de dois metros com o corpo escultural, suas carnes brilhavam e seus cabelos pareciam serpentes coleando em volta de um jarro da Ilha de Creta; uma deusa de ébano, uma tez de negritude marcante; um olhar verde hipnótico e ancas volumosas, mas comprimidas como se esculpidas milimetricamente. Vênus Calipígia!
Sayonara tinha acabado de sair de um dos armários e o cara que estava com ela, maculando sua beleza dos trópicos, não passava de um sujeito franzino, amarelecido pela rotina dos escritórios de advogados da Rio Branco: um frango viscoso e encurvado. Ela o tinha devorado, a firmeza das carnes brilhantes daquela puta dos céus era demais para aquele formiga, ela deve tê-lo castrado com sua vagina telúrica esfomeada e extática.
Durval deu um tapa no meu ombro para me despertar daquele sonho de divindade gonocócica.
– Acorda, doutor! Tá apaixonado? Quer que eu marque o casamento?
– Qual é, Durval? Você sabe que mulher nenhuma me fuzila mais com esse negócio de aliança e pensão! – Mantinha os olhos em Sayonara enquanto respondia de soslaio a ele. – Tá me achando com cara de bunda para me apaixonar por piranha agora? Só falta essa!
– Tu num tira o olho daquele rabão que acabou de sair do armário, doutor; não é possível, ‘tás com torcicolo?
– Estou pensando em pôr uma fórmica dessas no quartinho de empregada lá de casa. Não tenho uma dispensa e as compras ficam todas jogadas em cima da mesa da cozinha onde eu como.
– Sei… Sei… ‘Tás querendo é a fôrma daquela bunda sentada na tua cozinha; tu num quer morrer de inanição, isso sim. Há,há,há!
E com essa risada estúpida de vampiro da Central do Brasil, Durval chamou Sayonara para vir á nossa mesa conversar.
Movimentos de felina, aquele brilho da pele negra me cegava; conforme suas coxas iam se movimentando em minha direção, sentia a força da vida, a origem e o ventre da humanidade inteira surgindo como a Afrodite nascendo da concha no preamar de Chipre…
Eu te amo! Eu te amo! Meu coração batucava esse monótono samba em minha cabeça; quando ela estancou à minha frente era um monólito, um templo da perfeição que estava ali.
-Sente-se, meu amor. – Balbuciei como um neném filho da Marilyn Monroe ao se deparar pela primeira vez com os seios expostos para a primeira amamentação.
– Prazer, sou Sayonara! Estou cursando psicologia e trabalho aqui para manter meu curso na faculdade. O que você acha de irmos para o Olímpo (era assim que era chamado aquele armário velho e surrado, ela me explicou).
– Vamos conversar primeiro, por favor. – Nunca gostei de fast food, muito menos humano; o ato sexual, por mais vulgarizado, massificado que estivesse sendo visto por uma sociedade doente como a nossa, para mim sempre foi algo de sagrado.
– De onde você é, Sayonara?
– Bahia, querido; da terra dos orixás, do amor e da dança.
Enquanto ela adjetivava sua terra natal eu deixei cair um filete de baba pelo canto da boca; eu estava fascinado.
Daí começou uma briga acirrada na entrada daquele andar, onde ficava a recepcionista nua no aguardo dos clientes. Mais um amarelecido de escritório do Centro do Rio chegou, mas esse era diferente, já conhecido do lugar. Nunca soltava uma nota sequer, mas se roçava sobre as recepcionistas. Sua baba escorrendo pela língua viscosa de homem que vê mulheres como carnes era repugnante e suas mãos famintas, sedentas do sacrifício da puta: tudo isso era o anúncio da chegada de um porco
Eu e Durval partimos para cima do animal e o trucidamos, afinal não passava de mais um franguinho da Rio Branco.
Com a cara partida, fugiu no sentido do Largo da Carioca.
– Deixa estar, agora ele teve uma merecida lição.
– Sim! Não se deve nunca babar no pescoço de uma mulher; isso é indigno de um homem e um desrespeito à jugular feminina.
– Que sabedoria, doutor, Por isso é que só trabalho com o senhor, tu sabe das coisa. Imagina lamber as giusguslar dos outro, rapaz!
Quando voltei para minha mesa da Brahma, Sayonara já tinha entrado de novo no Olimpo. Por causa daquele amarelo burocrático nojento eu a tinha perdido e outro frango estava conspurcando a pele solar da minha amada.
– Durval, você ainda tem umas prises de cocaína com você, aí?
– Sempre, meu rei; se dá dor de cabeça ou estômago, não tem remédio melhor!
– Me dá umas cinco, vou tirar Sayonara das mãos desse iconoclasta.
– Pô, chefe. Deve ser brabo esse negócio de iconouscrasta; deve ser pior do que 157, e mais: deve ser crime que se comete só contra putas: um crime putativo!
Tomado ainda pelo resquício de testosterona quando soquei a cara do malfeitor de prostitutas: chutei a porta do armário, que se quebrou tão facilmente que foi aí que me senti o próprio super-homem. Joguei as prises de cocaína na cara do frango e mandei que saísse e as leva-se como forma de compensação.
Imediatamente enlacei Sayonara; levantei-a no estilo de galã de novela das oito e, indiferente aos boquetes que vinha fazendo em sucessivos pênis, beijei-a apaixonadamente.
O Rio cidade do pecado, do tiro e da bunda, não era mais acolhedor para mim e minha rainha.
Juntei meus pertences do escritório (escova de dentes, cuecas, roupas em geral, além de documentos e pastas de processos – eu morava no escritório desde meu divórcio) e fui para a Bahia – eu e Sayonara.