CRÔNICA

Por Guilherme Maia e Gracco

 

Algum dia, Deus foi brasileiro?”

(Seu Nonato, vendedor de fósforos da

Central do Brasil por quarenta anos).

Não podia imaginar que no fim era mais uma ilusão bem ao estilo histórico proveniente do Palácio Laranjeiras. Nunca tivemos união e isso entendo agora alguns anos depois. O que houve foi algo programado para iludir e frustrar. Meu nome é Gracco, pensei que, de alguma forma, ao entrar na Corporação estaria lutando pelo ideal de uma sociedade justa para todos, sem violência e pacificada – que grande ilusão!

Já na entrada do Curso de Formação de Soldados, chamou minha atenção tamanha quantidade de gente presente no local. Eram alunos e conscritos – aqueles que poderão ser soldados. Nunca foi usual tanta gente, porque o número de vagas é limitado e existem critérios rígidos para seleção, porém foi chamado um contingente absurdo de pessoas, quase cem vezes mais do que o esperado.

Pessoas que sequer sabiam escrever o próprio nome foram ingressados: isso percebi por acaso ao ver uma ficha de circulação de viatura e constatei garatujas rabiscadas no lugar de assinaturas.

Foi nesse contexto que conheci Fabíola, estrábica e muito acima do peso e que seria futuramente a primeira soldado morta em uma Unidade de Polícia Pacificadora. Essa trágica morte guarda relação com Jaqueline, a policial corajosa que pranchou a mulher do dono do movimento do Alemão logo na primeira ronda. Eram amigas e, por isso, uma pagou com a vida pela outra.

Antes de ser morta, Fabíola salvou a vida de quinze policiais mesmo com suas restrições de aptidão física.

Vejam bem: Fabíola era uma mulher de raça, – atirou contra os inimigos mesmo com o tiro de um 7,62X51 (calibre utilizado desde a II Guerra). Mas foi admitida na Corporação pela sanha louca de dar vez à um programa de Segurança Pública que prometia a Paz Falseada.

Ela teria morrido em uma seleção normal de soldados? Não! Devido às suas limitações físicas para ocupar o cargo, nunca deveria ter sido chamada.

Mas estamos falando de um projeto viciado em sua gênese pela especulação imobiliária que alcançava os bairros da Tijuca e quase todos os outros do Rio de Janeiro. Esses bairros, por serem cercados por comunidades, possuíam valor de mercado depreciado; tanto é que, com a esbaforida anunciação do programa de pacificação – chegavam à casa do milhão imóveis situados na rocinha e no Vidigal.

O projeto de pacificação vinha no bojo de uma expectativa de valorização de áreas degradadas pela ausência do Estado e seus aparelhos, não havia saúde, educação, não havia nada e nessas áreas, obviamente, predominava o comando paralelo, como uma espécie de enclave onde o governo passava às mãos de outro tipo de rei.

Anunciada a pretensa pacificação de áreas excluídas, a usura imobiliária carioca alavancou preços dos imóveis à estratosfera. Exatamente à medida em que essa ânsia, essa fome de dinheiro avolumava, já transparecia o calcanhar de Aquiles do programa de pacificação e, por consequência, Fabíola foi a primeira vítima mortal dessa mentira.

Bom lembrar, para que vocês entendam o afã de produzir policiais em massa, que eu vomitei ainda no curso de ingresso à carreira por ter comido “carne de monstro”, quando quebrei um garfo devido à consistência enrijecida e podre desta vianda. A carne vinha envernizada para disfarçar sua viscosidade e o cheiro insuportável de amônia. Acontece que dois dias antes, na minha escala interna, eu tinha visto no P4, setor de abastecimento do rancho onde os praças comiam, notas fiscais que ostentavam a aquisição de alcatra, camarão e contrafilé para nossa ração diária. O que teria acontecido entre a compra e a mesa do rancho, nosso refeitório?

Tudo sempre ligado ao afã de ejacular soldados nas ruas para adorno do projeto da falsa pacificação, ou melhor, para alavancar preços de imóveis pela falsa expectativa criada.

Nunca se falou na equivalência entre a UPP e os títulos tóxicos expedidos pelos bancos em 2008, mas em ambos os casos podemos constatar a falta de lastro na realidade: não havia realidade na expectativa na ponta quando chegasse a hora de cobrar o anunciado.

Todos são iguais perante à lei” bradava a coronel Almeida, comandante do centro de formação do CEFAP, mulher que realmente acreditava em Direitos Humanos. Só não voltava essa preocupação com a dignidade da pessoa humana quando se tratava dos recrutas: estes apanhavam de pau e levavam choques de manhã à noite.

Nós na visão dela não éramos humanos.

Que raiva ainda guardo de Jurandir, o recruta que, por estar assistindo a mulheres peladas no celular, serviu de justificativa para que a Subcomandante Himenguarda, da companhia de conscritos, obrigasse todo mundo a passar o fim de semana no quartel ao invés de ir para casa no dia de nossa folga.

A subcomandante Himenguarda era uma expert em furor uterino, oficial que subverteu sua vocação natural para trabalhar no Mangue para torturar sadicamente recrutas: o que valia até mesmo tapa na cara e chicote com esporões no dorso e lombar dos pobres coitados. Com lábios carnudos naturalmente vindos de botox emborcava nossas picas assídua e vorazmente como uma leoa em cio constante.

Um parêntesis: um recruta jogado nas áreas de pacificação fora expulso da corporação por ter escrito em sua mídia social que “traficantes estavam finalmente encorajados a mirar seus fuzis em patrulhas”, anunciou isso por que soube que fora alvejada a viatura onde o comandante estava dentro. Ele era um desses que acreditavam em alguma forma de ordem e também que havia um regulamento de conduta ética para policiais, mesmo assim foi expulso por um comentário desses. Tal comentário era uma brisa frente aos nudes e vídeos onde a subcomandante trepava com quatro, cinco, recrutas simultaneamente – ela gostava quando desferíamos nela coronhadas, chamava-nos de Bonequinhas de Luxo.

Assim mantinha-se o “sabe-com-quem-você-está-falando” até mesmo nessa dança tresloucada com o objetivo de jorrar recrutas a qualquer preço nas ruas das áreas destinadas à dita pacificação.

Obesos, estrábicos, míopes, epiléticos, todos estavam prontos para atuar na ostensividade.

Quando eu fui posto em patrulhamento, ainda estava imbuído do sentimento de impor algum tipo de ordem ao caos, tinham me educado a acreditar que havia um laço social que harmoniza os mais diversos grupos de interesses, de banqueiros a mendigos – apenas vi dor e morte de colegas!

Mas de qualquer forma, ao sair do centro de recrutas, me senti liberto de Bob, o rato.

Bob era uma ratazana que insistia em nos assediar quando íamos ao rancho para o almoço. Bob ficava aficionado com as larvas que afundavam nos molhos vermelhos que se passavam como molho de tomate, mas o gosto era de graça de sapato.

A sanha de satisfazer o mercado com a ejaculação de recrutas na rua levava também à precariedade da ração militar.

Quando saí como bola de ferro às ruas, um estagiário posto no serviço ostensivo com um simples bastão de madeira que quebra na primeira desferida em uma omoplata, conquistei a confiança de um dono de botequim da rainha Elizabeth e, com isso consegui me alimentar e não morrer de inanição ou triquinose vinda das lembranças de Bob pelas quentinhas que nos forneciam do rancho.

Fui parar no Arpoador por sorte, porque uma semana antes tinham executado, dentro da viatura, dois egressos do curso do CEFAP na Fonte da Saudade: por isso, eu e Georgete, uma PMFem (policial feminina), fomos locados longe da Sacopã.

Na primeira noite, eu ainda pensando ser um super-herói imortal relembrando filmes de Clint Eastwood e Charles Bomsom, percorri a pedra do Arpoador à procura de traficantes. Tínhamos visto camisinhas e envólucros de droga no meio da mata quando encontramos com um outro policial antigo do Batalhão que nos perguntou se havíamos visto um gay com pinta de grã fino – esse mesmo militar, horas antes, extorquiu uma atriz famosa que estava no local usando maconha –: então, era uma prática comum desse praça antigo auferir arrego de gente bacana naquela área.

Exatamente por isso ele estava alucinado atrás de um senhor gay que no topo da pedra tinha pagado um boquete e, após ser abordado pelo achacador da corporação, fugira correndo a se perder de vista.

Assim foi minha primeira experiência no patrulhamento ostensivo: sem arma letal, sem colete balístico e sem rádio impedido de chamar reforços se necessário: o Palácio tinha me mandado para ser fodido na merda.

Entregue aos policiais achacadores que pagavam ao P1 (quem organiza a escala de serviço) para serem escalados nos pontos onde havia gays abastados, eu estava no meio de uma guerra pelo ponto da extorsão, os policiais se matavam para patrulhar aquele local. Com isso, ao invés de efetuar o policiamento, esses policiais ficavam à procura de arrego dos homossexuais que buscavam se satisfazer nas noites da Praia de Ipanema.

Foi então que entendi haver algo podre e era apenas a ponta de um profundo iceberg.

O famoso projeto era uma farsa, eu era apenas um peão. Não tinha salvação nenhuma para as comunidades e para todo o Rio de Janeiro e todo o ódio acumulado pela história da exclusão estava apenas para ser mais uma vez alimentado por mais um embuste.

O abismo entre acumuladores e excluídos estava para ser acentuado e eu, sem o saber, estava envolvido nisso.