Depois de ler muito João, há mais sentimento de liberdade para escrever. O João dessas linhas, que traz inspiração de como desenhar as letras, é Guimarães Rosa. Como aqui ciência e filosofia irão se misturar para tratar de termos e conceitos que tanto pesam na organização da vida e podem ser organizados para oprimir ou libertar, a arrumação das letras será tratada em tonalidade de livre trabalho escrito. Como este trabalho, que agora você pode ler, não faz parte da academia, as regras são escolhidas por quem trabalha e organizadas pelas pessoas que se colocarão à leitura.
Eis, portanto, um exemplo empírico do que trabalho pode significar, mas as multiplicidades não param de existir e se compor como produto do fazer. A arte é uma das mais importantes ações existentes na multiplicidade de trabalhos criativos que seres humanos fazem existir em nosso mundo. Este ensaio não surgiu da natureza, por mais que haja muita natureza misturada, alterada e maltratada envolvida neste fazer. Afinal, na construção das letras de um ensaio impresso em papel e criado a partir da utilização de um computador de mesa, há muito de natureza destruída e também de natureza transformada na composição. E, à parte tudo isso, pode-se fazer aqui a primeira sentença necessária para desenrolar o conteúdo principal: trabalho não é sinônimo de emprego.
A ideologia nada de braçada em nosso mundo. Em algumas frações deste grande universo do capital, como no Brasil, nada com ainda mais vigor e trajada de múltiplos disfarces. Para enfrentá-la, devemos contar sempre com o auxílio da teoria acumulada e do conhecimento organizado coletivamente pelos seres humanos na História, com nossos cérebros e nossa liberdade de pensar. Nesse sentido, o desafio de apontar e discernir as diferenças entre termos e conceitos embaralhados por objetivos secundários muito infiltrados constitui um chamado importante.
Há inúmeras ofertas de trabalho aparecendo para quem quer sobreviver ou para quem quer comprar o fazer. A questão, porém, é que essas ofertas não buscam o trabalho em si considerado, mas clamam pela compra, venda ou até doação da força de trabalho, a qual, na maioria das vezes, é duramente explorada. Portanto, o objeto desses anúncios não é o trabalho, mesmo que assim possa parecer para quem faz tal exercício acontecer.
Na verdade, esse é o lugar que o emprego assume na vida, pois é necessário para a sobrevivência da imensa maioria das pessoas neste mundo. A falta de liberdade existente, imposta pela conjunção entre exploração, discriminação e controle – que se ampliam no mundo todo e com mais voracidade em países de formação social semelhante à do Brasil – cria uma arquitetura em que todas as pessoas existentes sobrevivem, mas apenas uma minoria vive.
Neste ensaio sobre emprego, trabalho e liberdade, que tem fôlego potente para compreensão da realidade e um vulto de enorme contribuição para os pensamentos de todos os setores sociais explorados no capitalismo, vale destacar a fresta criada pela arte. Em composição admirável, Gonzaguinha afirma que “sem o seu trabalho, um homem não tem honra e sem a sua honra se morre, se mata”. Mesmo que não se refira propriamente ao trabalho, a arte do poeta impacta a realidade de todas as pessoas que sobrevivem, porque apresenta, com libertária organização artística, a importância do emprego para todas elas, evocando a urgência de assumirem o lugar tão importante de sujeitos que possuem neste mundo.
O termo trabalho utilizado na canção de Gonzaguinha não equivale ao conceito. Nela, o artista mira para a dignidade humana: pretende que os atores sociais do trabalho e do capital compreendam a importância do emprego para uma existência minimamente digna. Porém, as pessoas que somente detêm sua força de trabalho para vender são as proibidas de exercer o trabalho criativo, enquanto são empurradas para disputar entre si empregos que lhes garantem, no máximo, a sobrevivência. O fato de somente uma parcela dos trabalhadores conseguir vender ou sobreviver com os salários oriundos da venda é uma grande e principal questão para compreender e mudar este mundo.
Com ajuda de Louis Althusser, na apropriação importante de uma pequena parte de a corrente subterrânea do materialismo do encontro, pode-se ter noção do conceito de modo de produção, bem útil para o que aqui seguirá desenhado em letras. Há inteligência coletiva acumulada quando o conceito de trabalho é apropriado e tal acúmulo organiza os termos liberdade e emprego em embalagens conceituais fundamentais para que o entendimento crítico organize o muito que há para se fazer neste mundo. Uma breve citação do trabalho já mencionado no texto do autor marxista francês merece destaque, tanto para estimular a busca pelo conhecimento como para demonstrar o lago teórico do qual emerge este escrito e que muito contribuirá para o processo de esclarecimento dialético:
“é necessário falar do modo de produção. Nada negará a importância desse conceito, que serve não só para pensar qualquer ‘formação social’, mas também para periodizar a história, portanto para fundar uma teoria da história”.
Com itálico e negrito libertários colocados por quem escreve, esta citação aqui tem apenas o objetivo de esclarecer que a contribuição deste ensaio se compõe na organização do conceito de modo de produção formulado por Marx e Engels, e se nutre do suspiro de contribuir para a potente, ampla e profunda colaboração da teoria da história. Dito isso e feitos os necessários esclarecimentos, podemos voltar aos elementos que aqui são destacados para organizar neste sucinto ensaio. Outra breve citação retirada do mesmo trabalho de Althusser colabora para o desenvolvimento das questões que aqui serão trabalhadas:
“Em inúmeras passagens, Marx, e não acontece certamente por acaso, nos explica que o modo de produção capitalista nasceu do ‘encontro’ entre o ‘homem com dinheiro’ e o proletário desprovido de tudo, exceto de sua força de trabalho”.
Espera-se, assim, tornar ainda mais compreensível que a grande maioria das pessoas do mundo capitalista são essas que possuem apenas a força de trabalho para vender e o fazem por meio da busca do emprego, isto é, que precisam se colocar à mercê da exploração para sobreviver. Nesse contexto, a tão falada liberdade se reduz a aceitar ou não os parcos salários em busca de melhores formas de sobreviver, conforme as condições e preços salariais correspondentes ao emprego alcançado.
Por tudo que vimos, o emprego torna-se uma necessidade para sobrevivência. Já o trabalho criativo, transformador da natureza, organizador do conhecimento, potente em celebrar o melhor da humanidade, é cada vez mais distanciado da maioria das pessoas. Nesse processo, a liberdade se torna uma ilusão de atos que ostentam individualismo, empurrando a grande maioria das pessoas para hiatos cada vez mais vastos entre ser humano e humanidade.
Todos os aspectos e sentidos da destruição da natureza, seja o meio ambiente ou a fração de natureza que existe em cada homem, mulher e seus coletivos passam por uma imposição da ordem vigente. Considerado esse vetor de morte, o importante e fecundo mito Ubuntu, alvo de “zoações”, preconceitos e descréditos, aponta para uma constatação importantíssima: a inteligência coletiva, unificada, capaz de fazer as sínteses das diferenças, é uma tática fecunda e fundamental para superar o capitalismo.
Infelizmente, as pessoas não conhecem um sistema no qual o investimento no trabalho seja algo fundamental e o emprego não signifique uma dependência para sobreviver. O capitalismo, erguido e sustentado pelo grupo social que organiza a inteligência coletiva para o lucro, produziu o encontro marcante entre o “homem com dinheiro” e o “proletário desprovido de tudo, exceto da força de trabalho”, sustentou o sistema do capital acima de tudo e vem passando pelos tempos.
Desde então, abriu-se um processo histórico que, em todos os pensamentos e sentimentos, passou a atribuir mais relevância às “pessoas das coisas” do que às “pessoas da vida”. Símbolos, mitologias e significados foram corrompidos e moldados para que o serviço da ideologia ampliasse cada vez mais o contágio da forma de sociabilidade capitalista em todas as dimensões.
Veja-se um exemplo. Na mitologia grega, a divindade feminina Fama era responsável pelo trabalho criativo de divulgar as notícias que emanavam dos deuses ou da humanidade. Sob a égide do capital, há muito tempo a expressão “ter fama” significa ser alguém conhecido, com vantagens e privilégios e muito admirados pelos outros: a fama passa a ser a apropriação de um status, como se fosse um movimento individual em um mundo que cultiva, cada vez mais, esta invenção do indivíduo pelas ficções “robinsonadas”.
Todos os movimentos de organização de pensamentos e sentimentos que façam mulheres e homens disputarem com diferentes, mas não com desiguais, são determinantes para tornar o trabalho uma ficção, para que o emprego seja a forma reconhecida e garantida de sobrevivência medíocre e para impedir a liberdade. Esses movimentos compreendem a devastação da natureza, a ampliação da mortes violentas e a apropriação do ar, do mar, das florestas e das terras para o lucro e são centrais para manter o poder e para inflar o desejo das pessoas pelas coisas, não mais pela vida. Apropriar-se, apoderar-se, tomar para si as coisas são atos que exemplificam o léxico da grande e competente organização social pelo lucro. Com o aporte da ideologia e da alienação, essas atitudes influenciam os setores sociais do trabalho a disputar entre si por um emprego melhor, uma vaga na universidade ou a oportunidade de ser um jogador de futebol de renome. Seja como for, assim, a falsa existência do indivíduo assume tanta importância que facilmente todo o coletivo organizado vai, progressivamente, sendo impedido ou dizimado.
Eis, portanto, um dos grandes desafios do nosso tempo: a construção da inteligência coletiva em favor da potência humana para que o bem viver exista e a dignidade seja algo universal. Longe disso estamos, pois a dignidade é barrada para a grande maioria das pessoas que precisam ser “mão-de-obra” das destruições para que a vida inexista e a as coisas se moldem tão profundamente a ponto de transformar seres vivos em objetos. Simples coisa… “São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto”, ensina Drummond. Que a revolta exista para transformar a vida em humanidade existente e não em artigos voltados a perpetuar e organizar o poder. Para tanto, mais do que sempre, pois sempre já nos clama, a hora é de organizar, estudar, acolher, construir inteligência potente para criar ações de transformação em favor da vida. Cada vez mais é evidente que a natureza e a humanidade só podem ter fôlego a partir das ações de pessoas que se assumam como sujeitos, para que a vida seja universal e exista como potência de existir, e não apenas de sobreviver.
Nós, diferentes mas não desiguais, podemos fazer acontecer, com muito trabalho para formação e mudança, outra organização das pessoas no mundo. Uma organização segundo a qual a natureza seja transformada pelo trabalho criativo, sempre coletivo, para apoiar e ampliar a vida.